Tuesday, November 23, 2010

“O NEGÓCIO É DO CÉU: NÃO TENHO CULPA SE DEUS
TIROU OS MEUS PEITOS”[1]

Daniela Galdino


À exibição do documentário O rebeliado (Paraíba, 2009), de Bertrand Lira, chama a atenção a multiplicidade de elementos religiosos, os quais convergem para a consciência do pecado, a culpabilização individual e, principalmente, a certeza de uma vigilância divina de caráter perene. Assim é exibida a trajetória do atual pastor Clóvis Bernardo, um ex-travesti que se dedica a promover o encontro entre os  que são considerados “doentes” de toda sorte – travestis, lésbicas, prostitutas, ladrões, pistoleiros, bêbados, drogados – e DEUS.
Clóvis Bernardo como "Anastácia".

A partir de uma das muitas falas polêmicas emitidas pelo pastor Clóvis, o espectador toma conhecimento da concepção que norteia não só os depoimentos, mas também a própria ação neopentecostal: o homossexualismo é uma aberração da criação divina. Segundo tal forma de entendimento, é preciso empreender um processo de cura, “aquebrantar a carne”, o que só se mostra possível a partir do que se chama de “choque espiritual”.

Lançando mão de uma narrativa dramática de uma luta em busca da salvação, O rebeliado nos permite antever a múltipla condição excludente que envolve a trajetória do protagonista – e também de outros membros da congregação intitulada Assembléia de Deus Missão: o homossexualismo, a pobreza, a negritude. Considerando esse aspecto, podem-se ponderar os motivos que explicam o crescimento do neopentecostalismo em faixas economicamente mais pobres da população brasileira, as quais indicam uma presença majoritariamente negra. Afinal, a ação religiosa pentecostal acentua o desespero da busca pelo júbilo espiritual. A propósito, uma das polêmicas identificadas no documentário de Bertrand Lira reside justamente no momento em que o pastor Clóvis afirma que “todo homossexual tem atração pela macumba”, que as religiões de matriz africana acolhem os homossexuais e por isso mesmo a ação pentecostal deve promover o afastamento da tentação, através de “um evangelho que liberta”.


Pastor Clóvis em cerimônia de batismo
Concomitante a essa fala de cunho redentor, o diretor opta por confrontar o discurso enunciado pela representação da ASTRAPA (Associação de Travestis da Paraíba), na pessoa de Fernanda Benvenutty. Nisso reside o grande mérito do documentário, em virtude da intensidade da polêmica e demarcação de formações discursivas bastante distintas. Fernanda, que afirma exercer a função de parteira, chega a afirmar a dádiva que representa ajudar a trazer um ser humano ao mundo, ao que afirma: “naquele momento não importa se será homossexual ou homofóbico”. É quase impossível não comparar essa fala com outra exibida anteriormente, em que o pastor Clóvis afirma: “eu tenho nojo abominável do meu passado”.  A isso tem-se a perspectiva adotada por Fernanda Benvenutty: homossexualismo não é aberração.
O ápice da polêmica, no entanto, se concentra no momento em que o pastor Clóvis e Bevennutty debatem a respeito das tentações. De maneira surpreendente vemos, de um lado, um esforço incontido para não incorrer no pecado – representado por um desejo homossexual refreado pelos adeptos do neopentecostalismo – e, por outro, a revelação de Fernanda: “eu admiro o corpo feminino, mas não concretizo uma relação sexual com mulher... a tentação pode estar aqui [cabeça], mas não aqui [órgão sexual]”.  Novamente a afirmação do caráter louvável do documentário, ao investir em formas distintas de compreensão da própria condição homossexual numa sociedade homofóbica.
Além do confronto discursivo, O rebeliado também tem o mérito de investir na dramaticidade dos relatos, com destaque para o episódio em que o pastor Clóvis afirma ter engolido uma bola de fogo enviada pelo Espírito Santo, tendo, em seguida, os seus silicones arrancados dos seios. A imagem do inferno, recorrente em seculares discursos religiosos, vem à tona com a desenvoltura narrativa do protagonista: “Lúcifer... eu tive o desprazer de conhecê-lo”. Portanto, a experimentação da possibilidade de cura e resolução das questões terrenas se dá na coletividade, com cultos bem marcados por episódios de delírios da fé e êxtase religioso. Acredita-se que com os sujeitos – e suas culpas – extenuados(as), alcança-se o rumo da salvação. Há cenas em todo o documentário que ratificam esse sentido apreendido pela coletividade da congregação retratada.
Por tais aspectos O rebeliado é altamente recomendável, sobretudo por já trazer na sua constituição o signo da polêmica. Certamente em qualquer exibição desse trabalho haverá desdobramentos marcados pela contestação de idéias, o que enriquece o pensamento crítico e a ação politizada.


Ficha técnica:
O Rebeliado
Ano: 2009
Direção: Bertrand Lira
Local: Paraíba
Duração: 70 minutos
Patrocínio: Fundo Municipal de Cultura (FMC) de João Pessoa (PB)




[1] Fala retirada do documentário O rebeliado (2009), no depoimento do pastor Clóvis Bernardo.




Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia

NOTA DE REPÚDIO


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BAIANOS REGIONAIS - KÀWÉ


 
Por se constituir uma Universidade, a UESC não pode se esquivar de reconhecer raízes da concepção e formas de expressão da cultura regional. Nesse sentido, faz-se necessário seu envolvimento com os sujeitos, atores e segmentos sociais de seu território de abrangência.
O Kàwé – Núcleo de Estudos Afro-Baianos Regionais busca dialogar com a realidade sócio-cultural da Região Sul da Bahia em consonância com os objetivos da UESC, voltado para a construção do conhecimento sobre afrodescendentes.
Recentemente fomos surpreendidos pela notícia de domínio público sobre a agressão policial sofrida pela Sr.ª Bernadete Ferreira de Souza, do assentamento D. Helder Câmara, na localidade de Banco do Pedro, Ilhéus, BA, pessoa iniciada na Religião do Candomblé.
  Relatam as notícias que a Sr.ª Bernadete, Ialorixá do Terreiro Ilê Axé Odé Omim Uá, sofreu vilipêndio moral e físico por parte de policiais militares do Batalhão 70.ª CIPM, de Ilhéus, BA, sob a acusação verbal de que havia, no assentamento do qual a Sr.ª Bernadete faz parte, uma suposta carga de drogas e armas enterradas. Segundo as notícias veiculadas, a invasão ao território e ao domicílio da assentada não tinha autorização judicial. E a violência desencadeada contra aquela Senhora se deveu à sua resistência ao ato que se configurava como invasão. 
  Bernadete foi presa e conduzida à cadeia, após ser arrastada pelos cabelos e depositada em cima de um formigueiro. Segundo as notícias, os policiais agiram assim sob alegação de que o procedimento tinha como objetivo “retirar o Satanás” que estava possuindo Bernadete, pois a mesma, no meio do conflito, entrou em transe de orixá.
Os estudiosos e pesquisadores do Kàwé afirmam publicamente sua indignação e protesto contra tal ato de bárbara selvageria contra a mulher, contra a mulher negra, contra a religião do Candomblé, contra os afrodescendentes.
 Os integrantes do Kàwé entendem que, se a sociedade civil e as estâncias de poder constituído não fizeram frente a tal estado de coisas, a civilização sucumbirá ao peso da ignorância, da prepotência, do preconceito, da arrogância, do poder de mando e da discriminação que se mostraram evidentes nesse episódio, no Sul da Bahia.
Se aqueles que têm a obrigação de defender e proteger os cidadãos, mantidos com recursos oriundos de nossos impostos, agem assim, a quem recorreremos diante da violência assoladora? 

Campus Soane Nazaré de Andrade, 9 de novembro de 2010
Equipe Kàwé

Bernadete Souza exibe as marcas da tortura: picadas de formigas


Tuesday, November 16, 2010

POESIAS ESCORREM PELAS MINHAS PERNAS

          
Foto: Celly Grapiúna
Acordes emitidos pela ação masculina ecoaram, estrondosamente, pela Casa dos Artistas. Era sábado indeciso: um calor que abafava as melhores das intenções dividia o tempo com uma chuva insistente. Coisas do sul da Bahia. 13 de novembro, por pouco, não caiu numa sexta-feira...
Muitos imprevistos pelo meio do caminho: Itabuna – essa triste cidade – sem energia elétrica no início da noite. Dificuldades para rumar em direção a Ilhéus. Cheguei no escorrimento da hora, nos derradeiros minutos, exalando tensões de atrasamentos. Diálogos adiados para que a constituição da cena fosse experimentada. Uma rápida pausa na Barrakitika. Percebemos a insuficiência de qualquer verbo e...
Foto: Celly Grapiúna
Foto: Celly Grapiúna
Subimos ao palco do teatro Pedro Matos – como não lembrar de Pedro?. Dividimos mais de uma hora com intensidade de sem ponteiros. Eram acordes masculinos e palavra de mulher. O verbo e a lâmina. Sincronicidade de desconhecimento de guerra entre sexos. Pura extasia. O poema requisitava a música, a música atraía o poema. Vivenciamentos ainda não imaginados, muito sob a sem lei do agora. Ainda bem... a abertura do desconhecido se fez.
Foi como a experimentação de pisar em estrelas sem cuidado e com muito apreço... Eis como dividi o palco com os rapazes do Dr. Imbira (Cabeça, Sonoro, Murilo, Alberth) no Rock e Poesia II...

Que venham os próximos sábados, com:
Entropia e Piligra – 20/11
Ricardo Maciel/Convidados e Heitor Brasileiro - 27/11
  Meu amor e uns centavos e George Pelegrini – 04/12
Infected Minds e Rubem Garcia – 11/12

Para quem não se fez presente no dia 13/11, eis o link para escutar o rock do Dr. Imbira:   http://www.myspace.com/drimbirarockandroll








Friday, November 5, 2010

Bandido deve ser tratado como tal, não como cidadão, diz cardeal Eugenio Sales

Sábado, quando a Catedral Metropolitana do Rio abrir as portas para uma missa em homenagem aos 90 anos do cardeal Eugenio de Araújo Sales, os fiéis vão encontrar uma pessoa diferente da que comandou a Arquidiocese do Rio por 30 anos (de 1971 a 2001).

O homem sisudo, de voz e passos firmes, deu lugar a um senhor que caminha com dificuldade, fala baixo e ri.
Suas ideias, contudo, não mudaram. Diz que bandido deve ser tratado como bandido, não como cidadão.

Folha - O sr. foi sagrado bispo aos 33 anos e tornou-se cardeal aos 48. É uma trajetória rara na igreja, não?

Eugenio de Araújo Sales - Não é comum, mas não me julgo uma pessoa excepcional por isso. Apenas procurei cumprir meus deveres. Sempre disseram que eu era tradicionalista, mas nunca me classifiquei assim.
Incomodava ser chamado de tradicionalista enquanto, durante a ditadura, o sr. ajudou entre 4.000 e 5.000 perseguidos políticos a sair do país?
Eu não achava bom ser chamado de tradicionalista. Mas continuava meu trabalho da mesma forma.

O sr. ligou mesmo para o então ministro do Exército, general Sylvio Frota [ministro do presidente Ernesto Geisel, de 1974 a 1977], e disse: "Se receber a comunicação que estou protegendo comunistas no Palácio [São Joaquim, sede da arquidiocese], saiba que é verdade"?

Disse, mas não para agredir. Estava revelando amizade, mas independência também. Não houve reação negativa dele. Uma vez fui chamado para receber a Medalha do Pacificador [concedida pelo Exército], mas não quis porque a situação era muito difícil. Frota entendeu que não fazia aquilo como afronta. Eles sabiam que eu não era comunista.
Hoje temos a questão da violência, do tráfico. Qual o papel da igreja nesse cenário?
O mesmo daquela época. Por mais de uma vez bandidos armados pararam meu carro quando eu subia para o Sumaré [região do alto da floresta da Tijuca]. Quando viram que eu estava no carro, mandaram seguir. Depois disso, sempre passo com as luzes internas acessas.
É sempre um susto. Eles conhecem o carro e procuram esconder armas. Entendo o sofrimento deles, mas isso não justifica seus atos.
Bandidos têm que ser tratados como bandidos, não como cidadãos. Bandido tem direitos humanos. Não tem direito de ser bandido, mas não pode ser injustiçado.

Como o sr. vê o crescimento das igrejas evangélicas?
Elas têm presença forte e avançam, mas não me alarmo. Já participei de várias celebrações com pastores.
Não queremos agradar para conquistar, mas expor nossos pontos de vista.
É trabalho de entendimento, mas não com todos os protestantes. Esses donos de TV e rádio atacam a igreja. Não vou atacar porque fui atacado. A questão não é o número de fiéis, mas viver em Deus.

Como o sr. vê o debate sobre aborto e união homossexual?
A igreja tem doutrina. O casamento é homem e mulher, foi ensinado por Jesus.
A igreja é contra o homossexualismo, mas não se deve desprezar o homossexual. Ele deve ser tratado com caridade. A adoção por parte de homossexuais é outro problema. Não se pode expor uma criança a isso.
A igreja enfrenta graves acusações de ter acobertado casos de pedofilia. Como o sr. encarou isso?
A igreja agiu, mas talvez não com muito rigor. Precisava ter sido mais enérgica. Porém, parece ter havido um complô de ataques à igreja, aproveitando-se de um fato e generalizando para o todo.

O sr. chegou a ser considerado candidato ao papado. Imaginou que pudesse ser papa?
Nunca sonhei em chegar aonde cheguei. Ser papa é um sacrifício e jamais pensei nessa possibilidade.
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