“O NEGÓCIO É DO CÉU: NÃO TENHO CULPA SE DEUS
TIROU OS MEUS PEITOS”[1]
Daniela Galdino
À exibição do documentário O rebeliado (Paraíba, 2009), de Bertrand Lira, chama a atenção a multiplicidade de elementos religiosos, os quais convergem para a consciência do pecado, a culpabilização individual e, principalmente, a certeza de uma vigilância divina de caráter perene. Assim é exibida a trajetória do atual pastor Clóvis Bernardo, um ex-travesti que se dedica a promover o encontro entre os que são considerados “doentes” de toda sorte – travestis, lésbicas, prostitutas, ladrões, pistoleiros, bêbados, drogados – e DEUS.
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Clóvis Bernardo como "Anastácia". |
A partir de uma das muitas falas polêmicas emitidas pelo pastor Clóvis, o espectador toma conhecimento da concepção que norteia não só os depoimentos, mas também a própria ação neopentecostal: o homossexualismo é uma aberração da criação divina. Segundo tal forma de entendimento, é preciso empreender um processo de cura, “aquebrantar a carne”, o que só se mostra possível a partir do que se chama de “choque espiritual”.
Lançando mão de uma narrativa dramática de uma luta em busca da salvação, O rebeliado nos permite antever a múltipla condição excludente que envolve a trajetória do protagonista – e também de outros membros da congregação intitulada Assembléia de Deus Missão: o homossexualismo, a pobreza, a negritude. Considerando esse aspecto, podem-se ponderar os motivos que explicam o crescimento do neopentecostalismo em faixas economicamente mais pobres da população brasileira, as quais indicam uma presença majoritariamente negra. Afinal, a ação religiosa pentecostal acentua o desespero da busca pelo júbilo espiritual. A propósito, uma das polêmicas identificadas no documentário de Bertrand Lira reside justamente no momento em que o pastor Clóvis afirma que “todo homossexual tem atração pela macumba”, que as religiões de matriz africana acolhem os homossexuais e por isso mesmo a ação pentecostal deve promover o afastamento da tentação, através de “um evangelho que liberta”.
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Pastor Clóvis em cerimônia de batismo |
O ápice da polêmica, no entanto, se concentra no momento em que o pastor Clóvis e Bevennutty debatem a respeito das tentações. De maneira surpreendente vemos, de um lado, um esforço incontido para não incorrer no pecado – representado por um desejo homossexual refreado pelos adeptos do neopentecostalismo – e, por outro, a revelação de Fernanda: “eu admiro o corpo feminino, mas não concretizo uma relação sexual com mulher... a tentação pode estar aqui [cabeça], mas não aqui [órgão sexual]”. Novamente a afirmação do caráter louvável do documentário, ao investir em formas distintas de compreensão da própria condição homossexual numa sociedade homofóbica.
Além do confronto discursivo, O rebeliado também tem o mérito de investir na dramaticidade dos relatos, com destaque para o episódio em que o pastor Clóvis afirma ter engolido uma bola de fogo enviada pelo Espírito Santo, tendo, em seguida, os seus silicones arrancados dos seios. A imagem do inferno, recorrente em seculares discursos religiosos, vem à tona com a desenvoltura narrativa do protagonista: “Lúcifer... eu tive o desprazer de conhecê-lo”. Portanto, a experimentação da possibilidade de cura e resolução das questões terrenas se dá na coletividade, com cultos bem marcados por episódios de delírios da fé e êxtase religioso. Acredita-se que com os sujeitos – e suas culpas – extenuados(as), alcança-se o rumo da salvação. Há cenas em todo o documentário que ratificam esse sentido apreendido pela coletividade da congregação retratada.
Por tais aspectos O rebeliado é altamente recomendável, sobretudo por já trazer na sua constituição o signo da polêmica. Certamente em qualquer exibição desse trabalho haverá desdobramentos marcados pela contestação de idéias, o que enriquece o pensamento crítico e a ação politizada.
Ficha técnica:
O Rebeliado
Ano: 2009
Direção: Bertrand Lira
Local: Paraíba
Duração: 70 minutos
Patrocínio: Fundo Municipal de Cultura (FMC) de João Pessoa (PB)
Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia
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