Thursday, December 2, 2010


DE ÂNCORAS, ÂNSIAS, REMOS E MEDOS:
O TRATADO DAS VEIAS, DE RITA SANTANA

Daniela Galdino



“Sou esse fruto peco das diásporas [...]
Desacato porque sou poeta”.
(Rita Santana. Bênção)



Rita Santana
Tratado das Veias, de Rita Santana, é uma obra em que se nota uma fortíssima relação entre o erotismo feminino e o processo criador em literatura, dada a intensidade das nuances poéticas advindas desse diálogo. Numa visão panorâmica, nota-se a recorrência ao caráter mais inusitado das palavras – familiares e estranhas -, agora já convertidas em imagens. Em relação direta a tal aspecto, torna-se visível, nesse vôo por sobre a poesia de Rita Santana, o esforço para demarcar um território governado pela visão feminina, em que o maior desafio está na instituição de uma outra cartografia corporal da mulher associado a um novo tratamento da experiência sexual, amorosa, existencial, logo, humana, demasiado humana[1].
A obra, publicada pelo selo As Letras da Bahia, foi contemplada em seleção da Fundação Cultural do Estado, vindo ao conhecimento do público em 2006. A essa altura Rita Santana já estava consolidada no mundo das artes, seja pelas atuações cênicas – iniciadas em Ilhéus nos anos 80 -, incursões pelo cinema e pela televisão, ou até mesmo pela sua premiada obra Tramelas, livro de contos vencedor do Prêmio Braskem 2004. No campo da poesia destaca-se a participação de Rita na antologia Mão Cheia (2005).
É possível aproximar a autoria de Rita Santana à opção radical de comprovar a inadequação da linguagem masculina para significar as sensações femininas Dentre as muitas aproximações possíveis, destaca-se aqui uma relação com a escritora francesa Anais Nin, que durante o século XX viveu a intensidade desse desafio cotidiano, ao afirmar, nos seus “Diários”, que a literatura por ela produzida consistia num conjunto de “esforços iniciais de uma mulher  em um mundo que fora de domínio dos homens” (Nin, 2005, p. 14).
Em tal percurso reflexivo, não se deve omitir que,o associado ao processo criador em literatura, tem-se os questionamentos: quantas espirais devem ser percorridas até que se chegue ao poço fundo da feminilidade (ou, no dizer da própria Rita Santana: “No poço fundo dos meus mistérios”)? Quais símbolos devem ser decifrados, quantos signos dispersos devem ser postos em relação? Esses questionamentos cruciais estão diluídos no Tratado das Veias – na verdade estão consubstanciados no próprio título da obra. Consciente da ameaça de um mundo governado pelo silêncio imposto, Rita Santana torna-se incisiva ao longo desse tratado íntimo.
Com isso é inaugurado o que aqui se denomina como cartografia corporal feminina. Esse aspecto – enquanto recurso poético – certamente provoca o arrebatamento do leitor, pois o que se nota é justamente um percorrer sinestésico.  Nesse mapeamento, o corpo não é vazio de sensações, portanto, não é representado de forma a dissociá-lo dos desejos. No entanto, o que mais se constitui como elemento arrebatador é uma conjugação de abalos sísmicos que percorrem esse corpo representado; no que se pode antever o consubstanciamento do leitor, em virtude da força que emerge das imagens poéticas, potência da representação dos desejos, mas, sobretudo, dos efeitos desses desejos, como se percebe:

Ardo! Ardo como asfalto nos verões do Rio.
Ardo porque sou mulher.
E sorrio, fresca, como que ardendo, como que queimando.
Ardo porque enfarto a toda hora,
Sem u-tê-is, sem confessionário.
Ardo porque, de ordinário, sou flama.
(Coração de ardências)

A cartografia corporal impulsiona o percurso por pontos familiares, porém concentrados/redimensionados em imagens inusitadas: “cova roxa”, “ovários revoltos”, “fibras duras”, “pele escura de negra dura e mole”, “meus seios moles de vaca parida”, “meu mênstruo de vinhas negras”. É como a propagação de uma onda de impacto que devasta o que é encontrado pela frente. Daí a constatação: “Meu coração era um mosaico de ardências” (Coração de ardências). Daí a seqüência de auto-imagens dessa voz feminina que enuncia:

Vem, homem, ofereço-te fibras duras
Da doida serpente que me guarda.
De paz sei pouco, dinamito em gritos.
[...]
Diz-me adorar meus seios flácidos, minha embriaguez de puta.
Lambe com disputa asceta os meus meios, meus fundos.
(Amásia)

Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de galinha.
[...]
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.
(Bênção)

Sou mulher de calos na língua,
Não sou de arestas.
Enfio o dedo em palavras grossas:
Banjo e abelha.                                                                             (Melão de cera)

Com essas formas de auto-percepção, tem-se um exercício reflexivo que faz dilatar a consciência, em verdade, uma consciência dramática.  A melhor forma de percepção desse exercício simbólico é o diálogo das matizes da consciência: da dor, da perda, das temporalidades, do desejo. A conjugação de tais elementos abre fissuras no cotidiano, de onde esse sujeito enunciativo vai construindo formas de conferir significados a si, ao outro, às coisas do mundo, à experiência sexual.

Acreditas na maldita sina-serpente
Que faz de mim
Um arrastar eterno de sonhos e dores?
(Jardim)

Adiante se verá o meu passado,
Engarrafado em tulipas amarelas.
As dores nuas gritarão em cofres,
E os amores se amarão nas celas.

(Instalação)
Minha boca pede água,
Somente meus pés pedem língua.
Tenho cansaço nas veias
De tanto deixar tecidos
Soltos no caminho.
(Langor)
Sobrevém a imagem da mulher convicta de que essa dramaticidade não lhe traz uma posição confortável, pois essa consciência é pesada e desafia aquelas que a experimentam justamente porque, a partir de experiência tão desafiadora, torna-se impossível qualquer forma de regeneração.  Todas as formas de percepção são radical e profundamente alteradas, gerando outros fluxos de memória, sensações dilatadas, expectativas distorcidas. Daí o ritmo dissoluto das linhas traçadas por Rita Santana, daí a “faca amolada”, punhal simbólico cravado no íntimo desse ser para o qual não há a impassibilidade dos disfarces. Portanto, novamente têm-se os impactos visíveis no corpo representado:

Deu de abrir fissuras na minha boca
Porque ele partiu.
E eu fiquei oca,
Fiquei seca,
Virei louça,
Vivi morta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
(Ai de mim!)

Estou em apuros porque sobrevivi até mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a Maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
(Azul)

Dei de acender velas ao sol,
Querendo-as ainda mais quentes.
Dei de querer ser santa e fazer milagres da minha espera:
Quando chega a primavera, eu viro chuva
E saio a te buscar por toda a terra.
(Coita insana)

Argumenta-se em favor de uma não linearidade no Tratado das Veias, de Rita Santana. Ou seja, ao lê-la, tem-se a sensação de estar diante de uma obra sinuosa, constituída a partir de uma delicada e arrebatadora trama de sentimentos. Salientam-se os seguintes fragmentos, como materialização de tal aspecto:

Precipito-me em despenhadeiros em busca de água fria,
Pois que fervo em larvas,
Pois que de labaredas dramáticas tenho feito existência.
(Desconfiança)
Uma lente de aumento vê um desespero sem fim,
Já quis ardores demais, e não tive tudo.
(Faz-de-conta)

Nesse sentido, faz-se necessário redimensionar o olhar sobre a poética de Rita Santana, a qual reclama um vôo panorâmico, sob pena de se realizar uma leitura parcial, logo, insuficiente. Portanto, articulando-se: i) as relações entre erotismo e escrita feminina; ii) a cartografia corporal da mulher; iii) a consciência dramática e iv) a arrebatadora e delicada trama de sentimentos, a análise abarca o sentido caleidoscópico do Tratado das Veias. Essa caleidoscopia implica na projeção de várias imagens desconcertantes cuja matriz é a feminilidade. Como diz a própria autora, “meu enigma é enxergar o sol de quem vive à sombra”. O enigma da leitura será antever esses espelhos e recompô-los, para, à maneira de Rita Santana, compreender os mistérios que cercam o ser feminino.






SANTANA, Rita. Tratado das veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006.







[1] Referência ao filósofo Nietzsche.


Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia



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