Friday, January 21, 2011

ALICE NO VÃO DA LITERATURA


Por Daniela Galdino


“… que todos me perdoem, mas escrever agora é recolher vestígios do impossível...”  (Caio Fernando Abreu. In: Estranhos estrangeiros)


Há alguns anos, quando li a célebre aula de Roland Barthes, chamou a minha atenção a idéia de dupla trapaça proporcionada pela literatura: a trapaça com a linguagem / a trapaça da linguagem. Porque nisso reside o caráter desvelador do texto literário, podemos falar das provocações e transformações que a literatura exerce no leitor. Se à literatura recai a crítica da inutilidade social – ela, por si só, não transforma a sociedade -  não acredito que isso minimize a sua função. Até porque as forças de liberdade que caracterizam a literatura se relacionam com os deslocamentos exercidos sobre a língua, logo, sobre os sujeitos. Novamente concordo com Barthes.
Pois sim, eram os idos 2005... eu dava aulas de Literatura na Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus, Bahia, Brasil). Naquele segundo semestre fui responsável pela disciplina Literatura Infanto-juvenil. E no curso de Pedagogia tive uma experiência que fez dilatar – ainda mais – o meu olhar literário.
Na sala de aula encontrei um tímido sujeito nascido em Ipiaú (BA). Aos poucos, demonstrou aguçado interesse pela literatura; exalava sensibilidade e manipulava o texto literário como uma criança que se encanta ao ver, pela primeira vez, o brinquedo. Álvaro, tal qual uma criança, queria compreender o funcionamento do texto/brinquedo. Desmontava-o, desobedecia às regras do “bom brincar” e instituía uma maneira própria de dialogar com as obras. Esbarrou no mundo de Alice, não deu outra: potencializou as maravilhas imaginadas por Lewis Carrol.
O emaranhado de enigmas, os dilemas da estatura, a sensação de não caber nos ambientes, a constatação de que há muito de ilógico nas leis cotidianas, a fascinação, o medo, a curiosidade. A cada sensação experimentada, a cada passo dado pela personagem fictícia, o tímido sujeito correspondia em torrentes de identificações. Daí em diante, uma exigência: preferia que a chamassem de Alice.
Nos diálogos literários ouvi a sua confissão: uma agonia, um debater-se todos os dias com a incabível angústia de desejar a transição do seu sexo de nascimento para o oposto. A ilogicidade de um corpo significando enorme – mas não intransponível – barreira.  Caracóis de palavras escondiam tamanho incômodo que remontava a tempos idos, tardes de criança intranqüila com frágeis regras sociais. Passou a freqüentar as nossas aulas trajando roupas e adereços femininos. Não dirigia a menor atenção às frases sarcásticas e aos olhares atravessados que lhes eram lançados durante o trajeto: portões, escadarias e corredores da universidade. A essa altura já se aproximava da Teresa criada por Caio Fernando Abreu. E usava a literatura como escudo.
Aquela experiência não poderia ficar restrita às aulas de literatura infanto-juvenil. Aceitou o desafio de contar histórias – e a sua história - para uma grande platéia durante um evento acadêmico. As centenas de pessoas atravessaram o seu olhar plácido. Medrou, silenciou, estatificou. Foi aplaudida de pé por um auditório superlotado. E com palavras trêmulas revelou-se.
Anos depois soube de Alice. Estava no interior de São Paulo. Lutava pela cirurgia de adequação. Precisava estirpar o que, em seu corpo, impedia o florescer da sua plenitude. Precisava provar a sua família que não enlouquecera. Precisava comprovar que não estava endemoniada – ela garantia que Deus havia compreendido e dado o aval a sua decisão. Precisava passar a sua temporada no inferno dos preconceitos – que é exatamente aqui – para, em seguida, esbravejar, ao seu modo, feito personagem de Hilda Hilst: “[...] esquecendo a cor do tempo fui espumando um ser-mulher a meu gosto [...]”.
Tamanha experiência, potencializada a partir do contato direto com a Literatura, representou um atravessar o vão da linguagem para reconhecer-se e reconhecer outras possibilidades, outros mundos. Ao penetrar camadas mais profundas da leitura da palavra, Alice comprovou que Literatura é vida e à vida retorna. E essa sua “outridade” foi componente fundamental aos nossos encontros, nos quais as palavras continham sangue… e pulsavam.
Nesse começo de 2011 lembro de Alice - hoje uma transsexual - ao desejar que as portas da criticidade sejam escancaradas, que haja respeito ao outro, que a diferença realmente seja um direito – inalienável, eu diria! –, que cada sujeito exerça a sua autoridade e autonomia para se representar e possa experienciar, ao seu modo, as transformações cruciais associadas a sua humanidade. 
  

Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia

No comments:

Post a Comment

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...