Thursday, December 30, 2010


NOVAS IMAGENS NAS TERRAS SULBAIANAS



Durante o período de 09 a 13 de janeiro de 2011 Ilhéus, Bahia, Brasil irá sediar o I Festival de Cinema Baiano, um evento organizado pelo NUPROART (Núcleo de Produções Artísticas). O FECIBA conta com o apoio de diversas instituições e será realizado com financiamento público, concedido pelo Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia (IRDEB), a partir do l Edital de Mostras e Festivais Audiovisuais. A seguir, uma entrevista realizada por Operária das Ruínas, na qual se tem um bate papo com um dos organizadores do evento, o comunicólogo Victor Aziz.


Operária das Ruínas - De que maneira nasceu a proposta do I Festival de Cinema Baiano?

Victor Aziz - O objetivo é apresentar um panorama do cinema produzido por realizadores baianos, natos ou naturalizados.
Tendo em vista o atual contexto das produções audiovisuais na Bahia, onde por um lado encontramos um elevado número de bons Títulos, e por outro, ainda enfrentamos um impedimento muito grande nos campos da exibição e distribuição dessas obras, buscamos construir um espaço que possibilita a relação do público com a obra e com os realizadores.
Com o projeto pretendemos trazer a produção baiana para o público através de 3 mostras com filmes de longas-metragens e 2 mostras com filmes de curtas-metragens, são elas respectivamente: Mostra Atualidade com exibições de filmes premiados do cinema baiano; a Mostra Retrospectiva em comemoração aos 100 anos da cinematografia baiana no ano de 2010;  Mostra Sexualidades, que traz o debate sobre cinema, sexualidade e sociedade; Mostra Competitiva de curtas-metragens que premiará 5 títulos através do Júri Popular; Mostra Paralela, com a exibição de curtas enviados para o endereço que está no site www.feciba.com.br até o dia 20 de dezembro de 2010. Desta forma promoveremos uma ação de descentralização dos bens audiovisuais.
Para viabilizarmos financeiramente o projeto, a proposta do Festival de Cinema Baiano foi inscrita e aprovada no Edital de Mostras e Festivais Audiovisuais do Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia

Operária das Ruínas - Como você avalia o atual cenário da produção cinematográfica na Bahia?

Victor Aziz - Estamos caminhando progressivamente na busca por uma consolidação da produção. Editais, Leis de Incentivo Fiscal, Patrocínio Direto, Independentes, Universitários, enfim... Atualmente, há uma gama de possibilidades para a produção cinematográfica. Com as novas tecnologias também, produzir tornou-se mais fácil. Não é mais primordial registrar a imagem em película. Agora pode ser feito com uma câmera fotográfica ou de celular.
Hoje, existe uma quantidade de profissionais familiarizados com a técnica e a estética da produção cinematográfica, vários realizadores exibindo seus filmes em diversos festivais estaduais, nacionais, internacionais e sendo premiados. Temos cursos universitários voltados para a produção cinematográfica. Desta forma, além de fomentar a produção aos novos realizadores, conferem-lhe referencial teórico.
É preciso agora trabalhar numa rede que articule estas produções, que gere constantemente escoamento das produções, nos seus diversos formatos e principalmente que trabalhe no aumento da quantidade de salas de exibição e formas de distribuição em todo o estado. Assim, conseguiremos consolidar a produção e ter espaço para a devida exibição. 

Operária das Ruínas - Quais os entraves para a democratização do acesso a essas produções em nosso Estado, sobretudo no que se refere aos municípios do interior?
Victor Aziz - Podemos citar, inicialmente, a quantidade de salas de cinema no Brasil e constatar que temos 2.098 e destas, 71 estão localizadas na Bahia, sendo que 72% estão localizadas na cidade de Salvador. Ou seja, são cerca de 206 mil habitantes para cada sala de cinema do nosso estado. A concentração das salas na capital, inclusive, é um dos fatores que influencia nesta democratização do acesso.
Em outras épocas, todas as cidades de interior tinham um Cine Teatro, os quais atuaram diretamente na construção da memória coletiva daquela população. Mas, após o advento da televisão, do DVD, do computador e da internet, inseridos numa sociedade cada vez mais dinâmica, tornou o homem, escravo do comodismo. O ritual para ir ao cinema, antes seguido por diversas pessoas, hoje é praticado por poucos.
Ainda temos poucos cineclubes em nosso estado. Uma alternativa muito importante para suprir esta demanda que atua também diretamente na formação de público. Desta maneira, observamos uma fragilidade do ciclo produtivo que acaba por causar impedimento para o acesso às produções.

Operária das Ruínas - Quais têm sido as principais contribuições do NUPROART na reconfiguração do cenário artístico-cultural no sul da Bahia?
Victor Aziz - Acreditamos que nossa principal contribuição para a região neste momento está na formação de público, estímulo a produção de artistas locais e promoção e valorização da cultura regional. Através de ações em parceria com a Panorâmica Produções como o Festival de Cinema Baiano (2011), o documentário Memórias do Rio Cachoeira (2011 Direção Victor Aziz) a Mostra Universitária Salobrinho de Audiovisual – MUSA 2010, a exposição Afrofilisminogravura de Ayam U´brais (2010), realização do video-clipe "Jeep" (2009 Direção Edson Bastos) da banda Mendigos Blues. Apoio a Produções Independentes como o vídeo clipe "África"(2009 direção Briza Aziz) da banda Manzuá, o documentário “Santinho” (2010 Direção Lina Penalva).  A promoção de oficinas gratuitas de flauta, violão e bateria em parceria com o Instituto de Flauta Carlos Oliveira (Itabuna) para crianças do bairro Manoel Leão em Itabuna, na sede do NUPROART.
Nos projetos que realizamos priorizamos sempre a troca de conhecimentos e experiências, por meio de oficinas, palestras, trabalhos coletivos. 

Operária das Ruínas - O poder público local tem se engajado nesse desafio?
Victor Aziz - Do poder público local até agora só recebemos não. Por outro lado, temos feito parcerias muito importantes e duradouras com algumas instituições públicas que atuam na região como, por exemplo, a Universidade Estadual de Santa Cruz e seus diversos departamentos, núcleos, centros e colegiados, a Fundação Cultural de Ilhéus. Algumas instituições privadas e pessoas físicas.

Operária das Ruínas - A proposta do I FECIBA é (felizmente) bastante pretensiosa. A organização do evento espera mobilizar um público constituído por qual perfil?
Victor Aziz - Estudantes secundaristas e do ensino superior, professores, profissionais da área cultural, pesquisadores, artistas, cineastas, videoartistas, teatrólogos, roteiristas, escritores, VJ’s, DJ’s, profissionais liberais, profissionais da área do audiovisual, turistas, cinéfilos, músicos, atores. Pessoas interessadas em assistir as produções baianas e participar das discussões e oficinas voltadas para o audiovisual.

Operária das Ruínas - Os organizadores do I FECIBA vislumbram quais desdobramentos advindos da realização do evento?
Victor Aziz - Sabe o que escutamos aqui? Comentários como: “Fazem cinema aqui na Bahia? Nossa estes filmes devem ser horríveis! Vocês vão precisar arrastar as pessoas da rua para entrar no cinema.” Ou comentários como este: "O cinema brasileiro já não é uma grande coisa ……..salve engane lá de década em década aparece alguma coisa (TROPA DE ELITE).  Imagina cinema  baiano." (http://www.pimenta.blog.br/?p=60750)
Portanto, o que queremos neste momento é fazer essa ponte entre as obras e o público do interior do estado, mostrar que existe uma cinematografia baiana e muito bem feita, para em seguida, depois do público formado, abrir as fronteiras dos seus pensamentos para todas as outras possibilidades de filmes.
Pretendemos também, através das oficinas gratuitas de Roteiro com Clarissa Rebouças, Produção, com Paula Gomes e Direção de Arte, com Carol Tanajura incentivar a formação para o audiovisual. As inscrições estão disponíveis no site: www.feciba.com.br

Wednesday, December 22, 2010

PELOS DIREITOS HUMANOS DE ELAINE CESAR, SEU FILHO
E O TEATRO OFICINA

Por: José Celso Martinez Corrêa



São 06:16. Acordei, apesar de estar exausto por excesso de trabalho pelos trabalhos de realizar meu maior desejo em 30 anos, de apresentar a partir de 6ª feira as DIONIZÍACAS no Teatro de Estádio que levantamos no Ex-Estacionamento do Baú da Felicidade mas não consigo dormir porque não estou mais suportando a ENORME INJUSTIÇA que aSOCIEDADE BRASILEIRA está cometendo com ELAINE CESAR, que neste momento está na UTI, correndo risco de vida.

Este caso não é diferente do de Sakineh no Irã, do de Lu Xiaobo na China e de Assange na Inglaterra. Vim pro computador porque até agora não conseguí fazer chegar nossas vozes de defesa aos DIREITOS HUMANOS desta Mãe Artista, Diretora de Video do Teatro Oficina Uzyna Uzona, que na semana passada, perdeu em duas jogadas:
• 1º, a guarda de seu filho THEO, de 3 anos de idade.
• 2º, seus instrumentos de trabalho confiscados, seus HD’s, que também são do Oficina, com todo material gravado de pelo menos 30 anos de Oficina Uzyna Uzona, e de outros trabalhos seus, e de artistas como Tadeu Jungle.
É um atentado à liberdade de produção artística, um sequestro só comparável à invasão do CCC em 1968 a “Roda Viva”.
E agora esta mulher está incapacitada de estar à frente do trabalho que adora, de comandar a direção de Video e das filmagens das Dionizíacas esta semana, e tem de ver a sociedade, a Mídia sempre tão escandalosa, impassível com este fato.

Porque tudo isso ?

Porque um ex-marido ciumento, totalmente perturbado, teve acolhidos por autoridades da Vara da Família, para esta praticar uma ação absolutamente anti-democrática, para não dizer nazista, todos seus pedidos mais absurdos de ex-marido ególatra, doente, de arrancar o filho do convívio da Mãe, acusando Elaine de trabalhar num “Teatro Pornográfico” e para lá levar o filho: o Teatro Oficina. Fez oficiais de justiça sequestrarem os HD’s deste Teatro, com um texto de uma obscenidade rara, para procurar cenas de pedofilia e práticas obscenas que Elaine e seu atual marido, o ator Fred Stefen, do Teatro Oficina, teriam cometido com o filho de Elaine, o menino Theo.
Quase todas as 90 pessoas que trabalham na Associação Oficina Uzyna Uzona têm se manifestado por escrito, pois tiveram contato permanente com Theo, Elaine e Fred dentro do teatro e fora dele e não se conformam com a falta de eco de seus protestos.

Porque tudo isso ?
A revolução cultural da liberdade que uma grande parte dos seres humanos vem conquistando determina uma reação absolutamente inquisitorial, fascista, como é o caso dos homofóbicos da Av. Paulista e no caso, não do Estado Brasileiro, mas da própria Sociedade Reacionária incorformada, querendo novamente impor censura à Arte, aos costumes, e pior à vida dos que escolheram viver livremente o Amor.
E é incrível aqui, a liberdade de imprensa tão fervorosa em escândalos moralistas, se cala totalmente diante de um atentado a dois seres humanos, Elaine, a Mãe, e Theo seu filho, e a um teatro de 52 anos como o Oficina, e não toca no assunto, como se fosse o Partido Comunista Chinês, os Republicanos dos EEUU e os fundamentalistas islâmicos do Irã.
Tenho feito inúmeras reportagens sobre as DIONIZÍACAS, e falado no assunto, mas a divisão ainda tayloriana de trabalho impede que os jornalistas levem a sério o que estou dizendo, por não estar no limite das matérias que estão fazendo comigo.
Enquanto isso uma mulher, ELAINE CESAR, praticamente corre risco de vida na UTI e o Teatro Oficina censurado estreia as DIONIZÍACAS tendo por exemplo de fazer sua propaganda para a TV com material ainda filmadas no edifício do Teatro Oficina, pois as imagens do Teatro de Estádio erguido pelo Brasil em 2010 estão sequestradas pela Vara da Família.
O moralismo desta instiuição, que parece odiar os Artistas como criminosos, dá proteção a um macho ciumento, invejoso, doente, mordido de ciúmes, que está tendo delírios sexuais, projetando em ações discricionárias como as que tem praticado, e pior com apoio da injustiça [...]

Leia mais em: http://teatroficina.uol.com.br/menus/45/posts/423

Friday, December 17, 2010

UNESCO e MEC consolidam parceria e disponibilizam o download gratuito da Coleção História Geral da África (8 volumes)


Informativo do site do MEC sobre a Coleção História Geral da África


 
Em 1964, a UNESCO dava início a uma tarefa sem precedentes: contar a história da África a partir da perspectiva dos próprios africanos. Mostrar ao mundo, por exemplo, que diversas técnicas e tecnologias hoje utilizadas são originárias do continente, bem como provar que a região era constituída por sociedades organizadas, e não por tribos, como se costuma pensar.

Quase 30 anos depois, 350 cientistas coordenados por um comitê formado por 39 especialistas, dois terços deles africanos, completaram o desafio de reconstruir a historiografia africana livre de estereótipos e do olhar estrangeiro. Estavam completas as quase dez mil páginas dos oito volumes da Coleção História Geral da África, editada em inglês, francês e árabe entres as décadas de 1980 e 1990.

Além de apresentar uma visão de dentro do continente, a obra cumpre a função de mostrar à sociedade que a história africana não se resume ao tráfico de escravos e à pobreza. Para disseminar entre a população brasileira esse novo olhar sobre o continente, a UNESCO no Brasil, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), viabilizaram a edição completa em português da Coleção, considerada até hoje a principal obra de referência sobre o assunto.

O objetivo da iniciativa é  preencher uma lacuna na formação brasileira a respeito do legado do continente para a própria identidade nacional.


O Brasil e outros países de língua portuguesa têm agora a oportunidade de conhecer a Coleção História Geral da África em português. A coleção foi lançada em solenidade, em Brasília, com a presença dos ministros de Educação e Cultura.



Fonte:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16146&Itemid=872


Coleção História Geral da África download gratuito (somente na versão em português):

Thursday, December 9, 2010

WILSON ARAGÃO: POETA CANTADOR, "VIRADO NO DIABO" E "RETADO COM VOCÊ"

 

 

Aqui, a re-publicação da entrevista realizada com o artista Wilson Aragão, compositor da música “Capim Guiné”, gravada por Raul Seixas nos anos 80. Um agradecimento aos companheiros Paulo Magalhães e Paulo Magalhães Filho, que gentilmente autorizaram a postagem da entrevista, a qual foi originalmente divulgada  no site http://www.brasildefato.com.br/, em 2008

 

 Por: Paulo A. Magalhães, Paulo A. Magalhães Fº e Vagner Carneiro, de Salvador (BA)

Wilson Aragão

ARTISTA IDEALISTA, pedagogo e engajado na luta do povo, o sem-terra Wilson Aragão é natural de Piritiba, mas morou muito tempo na roça, em Mira Serra e Morro do Chapéu. É filho de um pedreiro negro com uma professora primária, descendente de portugueses, e neto de uma cabocla da mata, que “foi pega no laço pra casar com seu avô”, como ele diz. Lúdico e imprevisível, conciliou, por um período de sua vida, a arte com a burocracia, ao trabalhar no setor de recursos humanos de grandes empresas em São Paulo e no Pólo Petroquímico de Camaçari, sem permanecer por mais de dois anos em cada. Militou no movimento sindical ao lado do governador do Estado, Jacques Wagner, e fez política partidária junto com Capinam, Gonzaguinha, Fábio Paes e Jorge Portugal. Gravou três CDs, e suas músicas foram interpretadas por artistas de várias gerações. Atualmente, sobrevive apenas de música e é integrante do Assentamento Eldorado (“Pitinga”), do MST, em Santo Amaro, onde é muito querido pela comunidade.
A conversa que se segue, sintetizada aqui nos trechos mais significativos, ocorreu na Secretaria do MST, em Salvador, entre risadas e goles de cervejas ingeridas pelo entrevistado, que traçou um rico painel da sua trajetória de vida e musical. Das mágoas com setores de esquerda aos sonhos de contribuir com a luta do MST, além de suas composições e das pinturas ao lado da sua companheira, que promove aulas de artesanato no assentamento em que reside e comercializa produtos.
Para iniciar, fale de sua experiência no campo. Você plantou num sítio no sertão de Piritiba, pegando na enxada como pega um catingueiro, como conta na música “Capim-Guiné”?
Wilson Aragão(Risos!...) Trabalhei muito com meu pai, na foice. Ele era um bom pedreiro, construiu dez casinhas simples de adobe, depois vendeu e comprou um sítio no sertão de Piritiba. Mais tarde, compraria o outro lado da estrada. Enquanto capinava, abrindo as covas, eu ia jogando as sementes e tapando as 70 ou 80 tarefas de feijão, milho, banana, aipim, mandioca, caju, jaca, entre outras culturas. Catei muita mamona e puxei carro de boi para pegar madeira da floresta. Lembro que na roça ele tinha um rádio de seis faixas, e quando a gente estava trabalhando ele aumentava o volume pra gente escutar a música, numa distância de 50 a 100 metros. Gostava de ouvir Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Carlos Nobre e Jackson do Pandeiro. E assim passei a infância e a adolescência, recebendo todas essas influências.
E lá pras bandas de Piritiba, Morro do Chapéu e Mira Serra, havia virtuosos violeiros? Sempre surgia novidade na feira; homens vindos da Paraíba, foragidos da seca, procurando emprego nas roças, que traziam a cultura de lá. Eu achava muito bonito o pessoal batendo pandeiro e dizendo versos. Lá em Mira Serra tinha até um sujeito que fazia um som maravilhoso, uma mistura de cavaquinho com viola, extraído de um instrumento inventado por ele, num formato de lata de óleo, com cordas de arame de estender roupa.
Aprendeu a tocar lá instrumentos; o violão, por exemplo?
Eu ficava cutucando, mas vim aprender a tocar um pouquinho de violão já depois de casado. Minha vida toda foi no Evangelho, minha família sempre foi prebisteriana, era igreja quarta, sexta, domingo. Meu pai dizia que violão era coisa de vagabundo, e não deixava aproximar do violão. Eu disse que quando fosse dono do meu nariz, compraria um violão. E realmente, quando meu pai separou de minha mãe e eu fui pra São Paulo trabalhar, comprei um violão.

Kika e Raul Seixas, Wilson, Salvador-BA, 1983. Acervo W. A.

Era uma época de euforia, da ideologia “Brasil, potência do mundo”; da conquista do tricampeonato mundial de futebol; da proliferação das torturas nos porões da ditadura; e da pornochanchada nas telas do cinema brasileiro. Os militares estavam no auge da sua popularidade, por conta do chamado “Milagre Econômico”: “ninguém segura esse país”, “ame ou deixe-o”...
Eu morava em Piritiba já pleiteando algum emprego, mas toda a minha família era de oposição. Os políticos de direita da cidade eram da ARENA e não deixaram que eu trabalhasse na prefeitura, nem no Banco da Bahia. Sem opção de trabalho formal, só me restou ganhar algum dinheiro como artista, fazendo desenhos e pintura. A prefeitura era obrigada a me engolir porque eu produzia todas suas faixas.
Desenhava ainda escudos do colégio etc. Na 1º Exposição de Arte da cidade, conquistei três prêmios, inclusive o 1º lugar de desenho, imaginação e pintura. Cantava ainda no coral e nos muitos grupos que formávamos, como o grupo musical “Os Helps”, que tinha muita influência dos Beatles, e depois virou “Os Horríveis” (risos...).

Você percebeu que a cidade era pequena para suas inquietações...
No dia em que fui pra São Paulo, minha mãe correu atrás do ônibus, tropeçou e caiu no meio da rua. Na metrópole, meu tio me deu abrigo por um ano, aí dividimos um quartinho, eu e um amigo. Mais tarde, fui promovido na fábrica Companhia Brasileira de Alumínio, na cidade de Mairinque, onde eu também morava, e, pra estudar Pedagogia na Universidade de Sorocaba, eu tinha que viajar diariamente 60 a 70 km de distância. Passei a admirar um professor comunista chamado Álvaro Vanucchi, que foi preso na ditadura militar, expulso do Brasil e depois voltou. O sobrinho dele era estudante de medicina e foi morto numa praça em São Paulo, em plena luz do dia. Eu fui assimilando estas histórias e tomando conhecimento do que era a ditadura militar. Quando bateu a saudade, eu vim me embora, em 1978, com greves estourando em tudo que é canto. Como eu era especialista em Recursos Humanos, as empresas se interessaram por mim. Comecei a trabalhar no Pólo Petroquímico ganhando 21 salários mínimos, um dinheirão pra época. Montava planos de cargos e salários, convênios e assistência médica. Quando me chamavam para tocar em algum lugar, eu dispensava cachê. Ah, se eu soubesse que esse tempo ia passar...

Parece que a sua composição de maior sucesso, “Capim-Guiné”, foi feita neste período. Fale um pouco sobre a música.
Em 1979, nas horas vagas do trabalho, compus “Capim-Guiné”, que é um protesto contra a grilagem de terras na ditadura militar. Ocorreu que um fazendeiro de Tapiramutá, cheio de pistoleiros, invadiu de madrugada a propriedade de meu pai, que era evangélico e não tinha armas. No outro dia, meu pai foi à delegacia prestar queixa e o delegado não gostou. Seguiu então para Salvador, a fi m de conversar com o governador. Houve um telegrama do gabinete do governador perguntando quem era o meu pai. Quando souberam que se tratava de um homem de oposição, do MDB, disseram: “pode invadir as terras”. O fazendeiro cortava o arame e botava o gado para comer a nossa plantação. Nós emendávamos e ele novamente cortava. Meu pai foi a Brasília conversar com o presidente Geisel, e este também enviou uma mensagem. Quando foi informado de que a família era de oposição, disse que não podia fazer nada.
Ouvindo hoje “Capim-Guiné”, tem-se a impressão que há na letra algumas metáforas para ludibriar a censura.
Há sim, mas nessa época era proibido falar palavrão, e a música não passou na censura. Veio uma carta para todas as emissoras de rádio proibindo tocar “Capim- Guiné”. É bom esclarecer que a cara de veado à qual me referi era o presidente Geisel, pois qualquer barulhinho para o veado, ele pára, escuta atentamente, mas não toma atitude. Já o Caxinguelê é um esquilo brasileiro. Quanto a “não planto capim-guiné pra boi abanar rabo”, é porque eu não iria mais fazer roça pra bandido vir e tomar, desfrutando de tudo...


Esclareça a dúvida que paira entre os ouvintes de MPB: “Capim-Guiné” é apenas sua ou tem parceria com Raul Seixas? Como foi mesmo que você conheceu Raul?
Em 1982, em Piritiba, eu já havia conquistado um festival de música com “Capim- guiné”, antes de conhecer Raul. Na época, Elba Ramalho estava surgindo com muito sucesso, e eu fi cava sentado na porta dos hotéis esperando ela acordar. Aí, eu perguntava: “Gostou de Capim- Guiné?”, ela respondia: “Ouvi a fi ta e gostei de todas suas músicas, mas me dá um tempo, porque meu disco já está cheio”. Continuei colado com Elba. Um dia, os músicos me falaram: “Elba ensaiou Capim-Guiné, e está de arrombar, mas o diretor de produção pediu pra tirar e gravar uma música do Gonzaguinha, “Casca do Ovo”, porque ninguém sabe quem é esse Aragão”. Aí fi quei chateado e tive um “pega pra capar” com ela. A gente era amigo e ficamos diferentes até hoje.
Um conterrâneo de Piritiba, chamado Beto, me convenceu oferecer a música a Raul Seixas e mandou-a pra São Paulo. Um dia, ligamos para ele do orelhão e ele falou que havia gostado, mas queria propor pequenas alterações. Em vez, por exemplo, da frase “comprei um sítio, plantei jabuticaba, dois pés de guabiraba” etc. elaborado por mim, ele propôs “plantei um sítio no sertão de piritiba...”, homenageando a minha cidade, e misturou guabiraba com as pindaíbas, que eram as cachaças que ele bebia, botou guataíba, que não existe, e gravou.
No lançamento do disco, em 1983, no Esporte Clube Periperi, a nossa amizade foi se estreitando. Ficamos num hotel, na Barra, o dia todo na beira da piscina “comendo água”. Gostei muito dele, suas palavras tinham sentimento, um coração bom, um jeito meio ameninado e meio maluco. Passei dois dias na casa dele em São Paulo, e enquanto ele cheirava muito éter e lança-perfume, eu tomava minhas cervejas. Depois, ele veio pra minha casa em Salvador e fez uma verdadeira revolução no Engenho Velho de Brotas, pois saiu bebendo cachaça em tudo que era boteco, e todo mundo querendo conhecê-lo. Também demos um passeio pelo sul da Bahia, fomos em Ibirataia, Barra do Rocha e Ipiaú.

Wilson Aragão no S. João de Piritiba-BA, 2006


Sua música mais conhecida é “Capim-Guiné”, mas qual é a que você mais gosta?
Sou apaixonado por “Sertões e Sertões”, do primeiro disco. Fiz quando eu tava sofrendo porque tiraram o trem de ferro, a Leste Brasileira, de Piritiba: “Ó mira, mira bem para o resto da estrada de ferro. Quantos braços cravados, quantos dormentes para ouvir o trem na curva apitar, apitou pra nunca mais”. Eu estava em São Paulo quando minha mãe me escreveu uma carta. Cheguei em casa e chorei.
E as feridas da vida?
Eu tenho uma mágoa danada. A gente que é de esquerda sempre foi boicotado. Quando a esquerda conquistou o poder, não abriu espaço para a nossa arte. As prefeituras do PT aqui da Bahia quase nenhuma me contrata. Só querem Calypso e Calcinha Preta, que deseduca a população. É a indústria da anti-cultura. Esse povo nunca foi forró. A cultura brasileira sempre foi voltada para os mesmos, se concentrando em torno dos poderosos. A Rádio Educadora aí tem dias que tocam dez músicas do Caetano, oito do Djavan, e nenhuma dos outros. Por que não divide o espaço? Convidam a gente para participar de reunião, de discussão, mas na hora de contratar e pagar o cachê, continuam os mesmos.
A gente tem que valorizar aquela coisa de raiz, Bule-bule, repentistas, samba de roda... Na região de Cachoeira e Santo Amaro tem grandes sambistas. No nosso assentamento, Eldorado, tem Luizinho, Delis e Rebeca, uma menininha de 4 anos.
As emissoras de rádio massacram os ouvidos, pegam qualquer besteira, pagam jabá pra tocar 50 vezes por dia e sonegam direitos autorais. Tem algumas que nem pagam porque alegam que a rádio dá prejuízo. Se dá prejuízo, porque não passa pra gente do MST? Cantei muito, sem cobrar cachê, para o Sindicato dos Bancários, da Construção Civil, dos Metalúrgicos e Eletricitários. Hoje, estão fortalecidos e não lembram da gente. Eu colocava minha música a serviço das lutas sindicais, e hoje esquecem que a gente sobrevive dos cachês.
Quem é
Wilson Aragão é compositor. Fez política partidária junto com Capinam, Gonzaguinha, Fábio Paes e Jorge Portugal. Suas músicas foram gravadas por artistas de várias gerações. Possui três CD’s gravados. Recentemente (setembro de 2010), Wilson obteve aprovação no edital Vivaldo Ladislau – Apoio à  circulação de shows musicais (Secretaria de Cultura do Estado da Bahia/Fundação Cultural do Estado da Bahia)
Links:
  • Raul Seixas canta "Capim Guiné", de Wilson Aragão:
http://www.youtube.com/watch?v=HpU_wooz4qg
  • Wilson Aragão canta "Guerra de Facão" (1988):
http://www.youtube.com/watch?v=D6I26khHUzg



Thursday, December 2, 2010

ABRAM ALAS À PERENE POESIA ...” (Jorge de Souza Araújo)


Mais conhecida fora da Bahia por conta da obra de Jorge Amado e Adonias Filho, a região Grapiúna, cujas cidades pólo são Ilhéus e Itabuna, onde se desenvolveu o cultivo do cacau, também viu nascer poetas de fundamental importância para a literatura baiana, como Adelmo Oliveira, Ildásio Tavares, Abel Pereira e Florisvaldo Mattos, apenas para citar alguns.
Calcados nessa forte tradição, uma nova geração de poetas grapiúnas foram apresentados em Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna (Ilhéus/Itabuna: Via Litterarum/Editus, 2009), obra organizada pelo poeta e ensaísta Gustavo Felicíssimo. Aos dez antologiados da primeira edição – Edson Cruz, Heitor Brasileiro Filho, Noélia Estrela, Piligra, George Pellegrini, Rita Santana, Fabrício Brandão, Daniela Galdino, Mither Amorim e Geraldo Lavigne – juntam-se, agora, em segunda edição, mais dois poetas – André Rosa e Marcus Vinícius Rodrigues – dessa vez com sete poemas cada um, contra cinco da primeira edição. São doze poetas (alguns deles bastante premiados) que já estão inseridos entre aqueles que produzem a melhor poesia baiana, quiçá brasileira, deste início de século.
          Como afirma o crítico de arte Henrique Wagner, “a segunda edição de um livro de poemas é acontecimento incomum, infelizmente, em nossos dias – e em verdade sempre o foi, mas tem sido cada vez mais incomum, a ponto da primeira edição já ser, ela mesma, uma raridade. Se tal acontece, é porque um milagre chegou perto de acontecer, se não aconteceu, de fato”.
Com palavras envolventes, com a maestria de quem acumula longa e reconhecida navegação pelas Letras – seja como poeta, ficionista, ensaísta, professor, pesquisador – o Prof. Dr. Jorge de Souza Araújo (UEFS) apresenta ao público, num prefácio honroso, a sua análise a respeito da segunda edição (revista e ampliada) da antologia “Diálogos: panorama da nova poesia grapiúna” (Editus, Via Litterarum, 2010, organização Gustavo Felicíssimo). Eis as palavras do nosso bardo:

“[...] A presente antologia revela que o organizador se baseia em critérios estéticos e paradigmas particulares. Os antologiados e o organizador se afastam com prudência recomendável do que possa ser confundido com o simples aflorar da emoção noviça prestando-se também ao sediço da pressa, da reles imitação, ou mesmo do pacto facilitário entre o discurso pedante e a composição discursiva, ideológica ou sentimental. Cada poeta aqui reunido em Diálogos expõe suas vísceras existenciais em signos impressivos de uma personalidade em vigília, expondo também as marcas referenciais da leitura de outros poetas, alguns canônicos, outros icônicos. Assim ecoam Cabral, Drummond, Bandeira, Adélia Prado, Fernando Pessoa, Mallarmé, sem que se perceba uma tautologia barata, fruto da mímese deslavada e, não raro, preguiçosa. Os antologiados dialogam entre si opondo estilos distintos, mesclando experiências múltiplas e influxos renovadores, conforme filosofia de composição, metafísica e ontologia diferenciadas, resultado de processos estéticos e estilísticos de acordo com variáveis de pesquisa formal, intuição, labor e artesanato, naturismo temático, espontaneidade da emoção domada, técnica ou ausência dela etc. etc [...]”

A segunda edição, revista e ampliada, de Diálogos, será lançada no próximo dia 11 de dezembro, às 18 horas, na Academia de Letras de Ilhéus (Rua Jorge Amado, nº 21, Centro, Ilhéus –BA.), oportunidade em que haverá um bate-papo com Jorge de Souza Araújo (poeta e Prof. da UEFS), prefaciador da obra, e Aleilton Fonseca (ficcionista e Prof. da UEFS) sobre a poesia baiana contemporânea.

DE ÂNCORAS, ÂNSIAS, REMOS E MEDOS:
O TRATADO DAS VEIAS, DE RITA SANTANA

Daniela Galdino



“Sou esse fruto peco das diásporas [...]
Desacato porque sou poeta”.
(Rita Santana. Bênção)



Rita Santana
Tratado das Veias, de Rita Santana, é uma obra em que se nota uma fortíssima relação entre o erotismo feminino e o processo criador em literatura, dada a intensidade das nuances poéticas advindas desse diálogo. Numa visão panorâmica, nota-se a recorrência ao caráter mais inusitado das palavras – familiares e estranhas -, agora já convertidas em imagens. Em relação direta a tal aspecto, torna-se visível, nesse vôo por sobre a poesia de Rita Santana, o esforço para demarcar um território governado pela visão feminina, em que o maior desafio está na instituição de uma outra cartografia corporal da mulher associado a um novo tratamento da experiência sexual, amorosa, existencial, logo, humana, demasiado humana[1].
A obra, publicada pelo selo As Letras da Bahia, foi contemplada em seleção da Fundação Cultural do Estado, vindo ao conhecimento do público em 2006. A essa altura Rita Santana já estava consolidada no mundo das artes, seja pelas atuações cênicas – iniciadas em Ilhéus nos anos 80 -, incursões pelo cinema e pela televisão, ou até mesmo pela sua premiada obra Tramelas, livro de contos vencedor do Prêmio Braskem 2004. No campo da poesia destaca-se a participação de Rita na antologia Mão Cheia (2005).
É possível aproximar a autoria de Rita Santana à opção radical de comprovar a inadequação da linguagem masculina para significar as sensações femininas Dentre as muitas aproximações possíveis, destaca-se aqui uma relação com a escritora francesa Anais Nin, que durante o século XX viveu a intensidade desse desafio cotidiano, ao afirmar, nos seus “Diários”, que a literatura por ela produzida consistia num conjunto de “esforços iniciais de uma mulher  em um mundo que fora de domínio dos homens” (Nin, 2005, p. 14).
Em tal percurso reflexivo, não se deve omitir que,o associado ao processo criador em literatura, tem-se os questionamentos: quantas espirais devem ser percorridas até que se chegue ao poço fundo da feminilidade (ou, no dizer da própria Rita Santana: “No poço fundo dos meus mistérios”)? Quais símbolos devem ser decifrados, quantos signos dispersos devem ser postos em relação? Esses questionamentos cruciais estão diluídos no Tratado das Veias – na verdade estão consubstanciados no próprio título da obra. Consciente da ameaça de um mundo governado pelo silêncio imposto, Rita Santana torna-se incisiva ao longo desse tratado íntimo.
Com isso é inaugurado o que aqui se denomina como cartografia corporal feminina. Esse aspecto – enquanto recurso poético – certamente provoca o arrebatamento do leitor, pois o que se nota é justamente um percorrer sinestésico.  Nesse mapeamento, o corpo não é vazio de sensações, portanto, não é representado de forma a dissociá-lo dos desejos. No entanto, o que mais se constitui como elemento arrebatador é uma conjugação de abalos sísmicos que percorrem esse corpo representado; no que se pode antever o consubstanciamento do leitor, em virtude da força que emerge das imagens poéticas, potência da representação dos desejos, mas, sobretudo, dos efeitos desses desejos, como se percebe:

Ardo! Ardo como asfalto nos verões do Rio.
Ardo porque sou mulher.
E sorrio, fresca, como que ardendo, como que queimando.
Ardo porque enfarto a toda hora,
Sem u-tê-is, sem confessionário.
Ardo porque, de ordinário, sou flama.
(Coração de ardências)

A cartografia corporal impulsiona o percurso por pontos familiares, porém concentrados/redimensionados em imagens inusitadas: “cova roxa”, “ovários revoltos”, “fibras duras”, “pele escura de negra dura e mole”, “meus seios moles de vaca parida”, “meu mênstruo de vinhas negras”. É como a propagação de uma onda de impacto que devasta o que é encontrado pela frente. Daí a constatação: “Meu coração era um mosaico de ardências” (Coração de ardências). Daí a seqüência de auto-imagens dessa voz feminina que enuncia:

Vem, homem, ofereço-te fibras duras
Da doida serpente que me guarda.
De paz sei pouco, dinamito em gritos.
[...]
Diz-me adorar meus seios flácidos, minha embriaguez de puta.
Lambe com disputa asceta os meus meios, meus fundos.
(Amásia)

Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de galinha.
[...]
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.
(Bênção)

Sou mulher de calos na língua,
Não sou de arestas.
Enfio o dedo em palavras grossas:
Banjo e abelha.                                                                             (Melão de cera)

Com essas formas de auto-percepção, tem-se um exercício reflexivo que faz dilatar a consciência, em verdade, uma consciência dramática.  A melhor forma de percepção desse exercício simbólico é o diálogo das matizes da consciência: da dor, da perda, das temporalidades, do desejo. A conjugação de tais elementos abre fissuras no cotidiano, de onde esse sujeito enunciativo vai construindo formas de conferir significados a si, ao outro, às coisas do mundo, à experiência sexual.

Acreditas na maldita sina-serpente
Que faz de mim
Um arrastar eterno de sonhos e dores?
(Jardim)

Adiante se verá o meu passado,
Engarrafado em tulipas amarelas.
As dores nuas gritarão em cofres,
E os amores se amarão nas celas.

(Instalação)
Minha boca pede água,
Somente meus pés pedem língua.
Tenho cansaço nas veias
De tanto deixar tecidos
Soltos no caminho.
(Langor)
Sobrevém a imagem da mulher convicta de que essa dramaticidade não lhe traz uma posição confortável, pois essa consciência é pesada e desafia aquelas que a experimentam justamente porque, a partir de experiência tão desafiadora, torna-se impossível qualquer forma de regeneração.  Todas as formas de percepção são radical e profundamente alteradas, gerando outros fluxos de memória, sensações dilatadas, expectativas distorcidas. Daí o ritmo dissoluto das linhas traçadas por Rita Santana, daí a “faca amolada”, punhal simbólico cravado no íntimo desse ser para o qual não há a impassibilidade dos disfarces. Portanto, novamente têm-se os impactos visíveis no corpo representado:

Deu de abrir fissuras na minha boca
Porque ele partiu.
E eu fiquei oca,
Fiquei seca,
Virei louça,
Vivi morta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
(Ai de mim!)

Estou em apuros porque sobrevivi até mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a Maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
(Azul)

Dei de acender velas ao sol,
Querendo-as ainda mais quentes.
Dei de querer ser santa e fazer milagres da minha espera:
Quando chega a primavera, eu viro chuva
E saio a te buscar por toda a terra.
(Coita insana)

Argumenta-se em favor de uma não linearidade no Tratado das Veias, de Rita Santana. Ou seja, ao lê-la, tem-se a sensação de estar diante de uma obra sinuosa, constituída a partir de uma delicada e arrebatadora trama de sentimentos. Salientam-se os seguintes fragmentos, como materialização de tal aspecto:

Precipito-me em despenhadeiros em busca de água fria,
Pois que fervo em larvas,
Pois que de labaredas dramáticas tenho feito existência.
(Desconfiança)
Uma lente de aumento vê um desespero sem fim,
Já quis ardores demais, e não tive tudo.
(Faz-de-conta)

Nesse sentido, faz-se necessário redimensionar o olhar sobre a poética de Rita Santana, a qual reclama um vôo panorâmico, sob pena de se realizar uma leitura parcial, logo, insuficiente. Portanto, articulando-se: i) as relações entre erotismo e escrita feminina; ii) a cartografia corporal da mulher; iii) a consciência dramática e iv) a arrebatadora e delicada trama de sentimentos, a análise abarca o sentido caleidoscópico do Tratado das Veias. Essa caleidoscopia implica na projeção de várias imagens desconcertantes cuja matriz é a feminilidade. Como diz a própria autora, “meu enigma é enxergar o sol de quem vive à sombra”. O enigma da leitura será antever esses espelhos e recompô-los, para, à maneira de Rita Santana, compreender os mistérios que cercam o ser feminino.






SANTANA, Rita. Tratado das veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006.







[1] Referência ao filósofo Nietzsche.


Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia



Tuesday, November 23, 2010

“O NEGÓCIO É DO CÉU: NÃO TENHO CULPA SE DEUS
TIROU OS MEUS PEITOS”[1]

Daniela Galdino


À exibição do documentário O rebeliado (Paraíba, 2009), de Bertrand Lira, chama a atenção a multiplicidade de elementos religiosos, os quais convergem para a consciência do pecado, a culpabilização individual e, principalmente, a certeza de uma vigilância divina de caráter perene. Assim é exibida a trajetória do atual pastor Clóvis Bernardo, um ex-travesti que se dedica a promover o encontro entre os  que são considerados “doentes” de toda sorte – travestis, lésbicas, prostitutas, ladrões, pistoleiros, bêbados, drogados – e DEUS.
Clóvis Bernardo como "Anastácia".

A partir de uma das muitas falas polêmicas emitidas pelo pastor Clóvis, o espectador toma conhecimento da concepção que norteia não só os depoimentos, mas também a própria ação neopentecostal: o homossexualismo é uma aberração da criação divina. Segundo tal forma de entendimento, é preciso empreender um processo de cura, “aquebrantar a carne”, o que só se mostra possível a partir do que se chama de “choque espiritual”.

Lançando mão de uma narrativa dramática de uma luta em busca da salvação, O rebeliado nos permite antever a múltipla condição excludente que envolve a trajetória do protagonista – e também de outros membros da congregação intitulada Assembléia de Deus Missão: o homossexualismo, a pobreza, a negritude. Considerando esse aspecto, podem-se ponderar os motivos que explicam o crescimento do neopentecostalismo em faixas economicamente mais pobres da população brasileira, as quais indicam uma presença majoritariamente negra. Afinal, a ação religiosa pentecostal acentua o desespero da busca pelo júbilo espiritual. A propósito, uma das polêmicas identificadas no documentário de Bertrand Lira reside justamente no momento em que o pastor Clóvis afirma que “todo homossexual tem atração pela macumba”, que as religiões de matriz africana acolhem os homossexuais e por isso mesmo a ação pentecostal deve promover o afastamento da tentação, através de “um evangelho que liberta”.


Pastor Clóvis em cerimônia de batismo
Concomitante a essa fala de cunho redentor, o diretor opta por confrontar o discurso enunciado pela representação da ASTRAPA (Associação de Travestis da Paraíba), na pessoa de Fernanda Benvenutty. Nisso reside o grande mérito do documentário, em virtude da intensidade da polêmica e demarcação de formações discursivas bastante distintas. Fernanda, que afirma exercer a função de parteira, chega a afirmar a dádiva que representa ajudar a trazer um ser humano ao mundo, ao que afirma: “naquele momento não importa se será homossexual ou homofóbico”. É quase impossível não comparar essa fala com outra exibida anteriormente, em que o pastor Clóvis afirma: “eu tenho nojo abominável do meu passado”.  A isso tem-se a perspectiva adotada por Fernanda Benvenutty: homossexualismo não é aberração.
O ápice da polêmica, no entanto, se concentra no momento em que o pastor Clóvis e Bevennutty debatem a respeito das tentações. De maneira surpreendente vemos, de um lado, um esforço incontido para não incorrer no pecado – representado por um desejo homossexual refreado pelos adeptos do neopentecostalismo – e, por outro, a revelação de Fernanda: “eu admiro o corpo feminino, mas não concretizo uma relação sexual com mulher... a tentação pode estar aqui [cabeça], mas não aqui [órgão sexual]”.  Novamente a afirmação do caráter louvável do documentário, ao investir em formas distintas de compreensão da própria condição homossexual numa sociedade homofóbica.
Além do confronto discursivo, O rebeliado também tem o mérito de investir na dramaticidade dos relatos, com destaque para o episódio em que o pastor Clóvis afirma ter engolido uma bola de fogo enviada pelo Espírito Santo, tendo, em seguida, os seus silicones arrancados dos seios. A imagem do inferno, recorrente em seculares discursos religiosos, vem à tona com a desenvoltura narrativa do protagonista: “Lúcifer... eu tive o desprazer de conhecê-lo”. Portanto, a experimentação da possibilidade de cura e resolução das questões terrenas se dá na coletividade, com cultos bem marcados por episódios de delírios da fé e êxtase religioso. Acredita-se que com os sujeitos – e suas culpas – extenuados(as), alcança-se o rumo da salvação. Há cenas em todo o documentário que ratificam esse sentido apreendido pela coletividade da congregação retratada.
Por tais aspectos O rebeliado é altamente recomendável, sobretudo por já trazer na sua constituição o signo da polêmica. Certamente em qualquer exibição desse trabalho haverá desdobramentos marcados pela contestação de idéias, o que enriquece o pensamento crítico e a ação politizada.


Ficha técnica:
O Rebeliado
Ano: 2009
Direção: Bertrand Lira
Local: Paraíba
Duração: 70 minutos
Patrocínio: Fundo Municipal de Cultura (FMC) de João Pessoa (PB)




[1] Fala retirada do documentário O rebeliado (2009), no depoimento do pastor Clóvis Bernardo.




Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia
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