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Quando ela era criança na Espanha e lhe faziam a clássica pergunta “O que você quer ser quando crescer?”, ela respondia: “Homem”. Hoje Beatriz Preciado tem 41 anos, é uma filósofa e ativista queer que leciona em Paris, e se declara transgênero. Eu nunca tinha ouvido falar nela antes de uma leitora me indicar sua obra (viram como aprendo com vocês?). 
O livro mais recente de Preciado é Pornotopía, que trata de como a pornografia, a partir dos anos 1950, vira uma cultura de massas (é possível lê-lo aqui). “E a masturbação, que no século 19 era vista como patologia e perda de tempo, depois da Segunda Guerra se converte numa plataforma de produção de capital”, diz ela. Logo, Hugh Hefner, fundador da Playboy, não se vê como pornógrafo, mas como arquiteto, que tenta ajudar os americanos a reconquistar o espaço doméstico. “Mais que uma revista com mulheres nuas, a Playboy tinha o projeto de abrir a casa hétero do modelo de consumo e reprodução para um de prazer e capital” (veja aqui uma palestra de Preciado em espanhol). 
Mas o livro mais famoso de Preciado, um clássico do movimento transgênero ou queer, é Manifiesto Contrasexual, de 2002. Em Testo Yonqui ela fala, entre outras coisas, de como aplica testosterona nela mesma. Yonqui é junkie em inglês, viciad@. Preciado não quer fazer cirurgia pra mudança de sexo. Ao contrário do que dizia na infância, não quer virar homem. É lésbica e se reserva o direito de não querer pertencer a um só gênero (feminino ou masculino). Dois anos atrás, ela deu esta entrevista ao El País. Achei espetacular, muito provocadora, e decidi traduzir alguns trechos. Gostei porque sabe aquele post em que perguntei, de modo totalmente intuitivo e sem nenhum embasamento teórico, se seria possível virar lésbica? Então, Preciado fala algumas coisas bem parecidas. Fico feliz ao ver que eu não falo só besteira! Diz ela: “A sexualidade é muito comparável às línguas. Aprender outra sexualidade é como aprender outras línguas. E todo mundo pode falar as línguas que quiser. Há apenas que aprendê-las, igual à sexualidade. Qualquer um pode aprender as práticas da heterossexualidade, da homossexualidade, do masoquismo...”A jornalista pergunta se não há uma sexualidade materna, assim como há uma língua materna. Para Preciado, “Há uma sexualidade que constitui o seu selo de doutrinação. Aquela que você aprende a reconhecer como natural. Mas enquanto você aprende uma segunda língua você sabe que há mais, que inclusive você pode abandonar a primeira língua sem o menor problema. Eu estive anos sem falar espanhol e o faço bem, não?”Muito bem! Preciado é uma gracinha. Mas não sei se querer é poder. Porque, se a gente pensar que um hétero pode tornar sua sexualidade mais flexível e ser homo, ou bi, a gente também vai acreditar que um homossexual pode ser "convertido" para a heterossexualidade (que é o que os fanáticos religiosos prometem com a graça de deus). Claro que ela está falando o contrário de um religioso -- ela não quer camisas de força. Preciado diz: “Não creio na identidade sexual, me parece uma ficção. Um fantasma em que alguém se pode instalar e viver confortavelmente”. 
Acho que ela está tratando ao mesmo tempo de gênero (feminino/masculino/trans) e de orientação sexual (homo/bi/hétero etc). Por exemplo, o que ela diz pode dar um nó na cabeça não só de héteros quadradinhos como eu mas também na de gays e lésbicas assumidos: “O que observo nas pessoas é uma tensão ainda que inconsciente para adequar-se ao que se supõe que é feminino, masculino, heterossexual ou homossexual. Eu também experimentei a pressão homossexual ao dizer que não sou um cara ou uma cara. Na homossexualidade há restrições, regras precisas. A tensão está ali. A revolução é outra coisa”. Ela vê sexo e gênero como construções biopolíticas: “o masculino é visto como técnica, construção, cultura. O feminino é visto como natureza, reprodução. O que é construído é essa distinção entre natureza e cultura que não existe, que é fictícia. [Os cromossomos XX e XY] são um modelo teórico que aparece no século 20 para tentar entender uma estrutura biológica, ponto”. 
E, por incrível que pareça, ela não acha que vivemos numa cultura hedonista: “O fato de que o que movimenta a cultura seja o prazer não quer dizer que o fim seja hedonista. O objetivo é a produção, o consumo, e, na sua etapa final, a destruição. O desafio para o que deveria ser uma esquerda para o século 21 é tomar consciência desse estado de depressão coletiva. Deve ser diferente da direita, que vive na euforia do consumo, na produção de desigualdades, na destruição. A esquerda tem que dizer: m*rda, já estamos c*gando, e isso tem que levar a um despertar revolucionário. E creio que isso pode vir daqueles que estamos à margem do político: os gays, as lésbicas, os yonquis, as putas. Ali há modos de produção estratégicos para a cultura e a economia, aí sim estão produzindo-se soluções”. 
E aqui algo que concordo 100% com ela, e que eu (e outras feministas) vivo dizendo: “Se há algo que está em crise, é a masculinidade. Desde o feminismo tem havido um trabalho crítico, mas, da parte dos rapazes, nada.”Radical, Preciado propõe ensinar às meninas não técnicas de defesa pessoal (porque, numa cultura bélica como a que vivemos, isso já as colocaria em desvantagem), mas técnicas de ataque pessoal: “Busco alternativas radicais à cultura da guerra, e uma delas é o acesso igualitário às técnicas da violência. Toni Negri dizia: é preciso dar armas ao povo, já que o Estado anda armado. Eu diria: é preciso dar armas às mulheres, já que os homens andam armados. É uma guerra fria: você tem armas, eu também”.
Ahn, não concordo com isso. Quero paz. Quero uma população desarmada. Mas, se eu tivesse filhas, elas fariam alguma arte marcial desde pequeninas. Pra defesa, não pra ataque. Se bem que entendo que isso pode não ser eficaz. Bom, pessoas, vocês já tem pólvora para uma bela discussão. Explodam esta caixa de comentários (mas com delicadeza, educação e, se possível, humor).
Uma leitora me enviou o link para o post de um amigo (que foi publicado no Mídia e Educação no final do mês). Gostei muito, achei que dialogava com este post que escrevi, e pedi permissão pra reproduzir o relato aqui. Então. O autor deste guest post, Cezar Tridapalli, é coordenador de Midia/educação no Colégio Medianeira, em Curitiba, e escritor, autor do romance Pequena Biografia de Desejos. (As fotos, meramente ilustrativas, não são da sua filha).Eu sou pai de uma menina. Ela ainda é bebê.
Era uma vez uma festa entre amigos. Naquela confluência de vozes, conversas com início e sem fim, brincadeiras de toda ordem, tentativas de engatar papos sérios, você conversa com um ouvindo a conversa do outro, eis que vem um amigo, pai de menino, com o seu bebê no colo e diz para ele, referindo-se a mim: “filho, o nome desse tio é sogro”. Eu ri, evidentemente, e não vi qualquer mau gosto no tipo de insinuação brincante que havia no modo como ele me apresentava ao filho menino.
Mas há casos diferentes. Outra vez, já outra era a ocasião, minha filha zanzava em uma sala com outros bebês, meninos e meninas. Um dos meninos, talvez sem ter feito dois anos, se aproximou dela e, incentivado pelos pais, abraçou a minha pequena. Tudo muito cuti-cuti, é claro, mas o discurso vindo dos adultos me deixou com uma pulga atrás de cada orelha. Veja se exagero ou se há alguma razão no que digo: o que vi junto com a tentativa de abraço foi o pai do menino insinuando — insinuando nada, falando às claras — que seu filho já demonstrava todos os indícios de que seria pegador (uma criança de dois anos abraçando um bebê de um ano e meio, alguma novidade?) e que era melhor eu começar a proteger a minha “princesinha”.
Já noutra oportunidade, quando me levantei de uma cadeira para assistir a alguma cena de abraço e beijo similar (todos estavam olhando, ficaria até chato se eu me mostrasse indiferente), vi um coro de vozes se dirigindo a mim: “ah, olha o pai ciumento já querendo proteger a filha” e outras vozes esparsas sugerindo que ela teria muitas dificuldades e que eu não mediria esforços para salvaguardá-la das garras dos lobos maus.Talvez seja divertido pensar em um pai com espingarda em punho obrigando um sujeito a casar com sua filha. Mas isso lá no casamento caipira das festas juninas.
Vou confessar uma coisa da qual me envergonho: critico algumas posturas exageradas, mas sou admirador das lutas feministas. Porém, aí vem o motivo da minha vergonha, eu não reparava tanto assim no quanto elas ainda são vistas como seres-objeto sem vontade, sem pensamento próprio. Parece mesmo que não há um sujeito consciente nesse ser de carnes e ossos, e cérebro. E estou falando para além do clichê mulher-garota-propaganda-de-cerveja.Estou falando de bebês com um ano e meio, dos quais os meninos já parecem prontos para anunciar seu futuro predador quando, na verdade, estão demonstrando um afeto comum em qualquer bebê, às vezes genuíno, às vezes automático, seguindo a cartilha e o comando de voz dos adultos. E às meninas, as tais “princesinhas” (tenho uma cisma muito grande com essa expressão, mas isso é tema para outro post), fica reservado o posto de passivas e indefesas, que dependem de uma figura paterna e, portanto, masculina, para, tal qual a figura do lenhador viril, caçar lobos e restaurar a paz.
Se nenhum adulto falará tão bem uma língua como fala a sua língua materna, talvez haja uma relação entre os valores que aprende já na chamada tenra idade (pura e mera e deslavada especulação minha, ok?). Se bebês já crescem ouvindo que seus papéis biológicos e sociais são pré-definidos e já estão formatados, qualquer outra postura e comportamento na vida adulta só será capaz de ser assumida com muita dor e causando muito choque moralista. Talvez outro clichê, aquele que sempre termina dizendo “vem do berço”, seja bastante aplicável aqui.
Crianças de todo o mundo, uni-vos, abraçai-vos, beijai-vos, transmiti vossos vírus de gripe e vossos piolhos umas às outras, mas não vos deixeis cair na tentação de transmitir o vírus dos estereótipos, dos mitos de fragilidade sem cérebro e da brutalidade viril — e também sem cérebro —, incapazes de se abrirem para a ternura e para o discernimento entre o comportamento humano, social e natural, e o comportamento bestializado dos preconceitos, estes também humanos, mas nem um pouco naturais.
Menina ou menino? Ish, não dá pra saber! Outro dia, no post sobre uma professora americana que tomou a iniciativa louvável de trabalhar gênero já com as crianças da primeira série, um leitor, o André, perguntou: “Quais seriam os benefíc
ios que meu filho teria por brincar de boneca?”. Bom, falar de benefícios já tem um caráter muito utilitarista. Não sei quais seriam os benefícios que seu filho teria brincando de carrinho, por exemplo. Desconheço até que ponto as crianças “se beneficiam” de brincar de alguma coisa, a menos que você considere diversão um benefício (eu considero), e aí brincar de boneca e de carrinho dá na mesma — ambas podem ser divertidas. Mas o fato é que todo brinquedo é pedagógico, didático, educativo, no sentido que a criança apre
nde com ele (não só com ele, lógico) o seu papel no mundo, e aprende o que se espera dela e como deve se comportar. Convenhamos: não é nem um pouco de coincidência que as meninas sejam incentivadas a brincar de casinha, trocar fralda de bebê, e fazer comidinha. Na vida real, é o que se espera delas também — que elas se restrinjam ao ambiente doméstico. Isso tudo é visto como “coisa de menina” (e de mulher). E depois tem gente que fala que a situação tá mudando, porque tem marido “que ajuda” em casa! Concordo mais com uma mãe britânica que, junto com a irmã, lançou a campanha Pinkstinks (rosa fede). Ela teve a ideia depois de ver suas duas filhas numa loja de brinquedos considerarem que animais de fazenda seriam “coisa de menino”. Pa
ra essa mãe, “estamos regredindo”. Acho que sim. Infelizmente, estamos mesmo. Na minha infância e adolescência as lojas não eram tão divididas por gênero. Rosa não era a cor oficial das garotas. Eu podia ter um caderno de escola “neutro”. Podia usar sandália sem salto. Não existia isso de meninas de 5, 8 anos se maquiarem antes de ir pra escola. Chapinha pra criança? Nem pensar. Cirurgia pra adolescentes com menos de 18 anos eram raríssimas. Hoje a idade média de cirurgias plásticas no Brasil é de 15 anos. Então sim, tá pior (e aqui noto um descompasso gigante entre o que muitas acadêmicas feministas — por quem tenho o maior respeito — pesquisam e escrevem sobre eliminação dos gêneros e o que se vê na vida real). Nunca as crianças estive
ram tão generizadas. Talvez isso se deva ao capitalismo estar cada vez mais voraz. Portanto, talvez compense do ponto de vista mercadológico lançar uma versão de Palavras Cruzadas ou Banco Imobiliário ou salgadinhos só para meninas. Talvez seja porque hoje consegue-se saber o sexo do bebê muito antes do nascimento. Então o bebê já é tratrado como menino ou menina ainda dentro do ventre. Quando nascer, a menina já encontrará o quarto decorado de rosa e estará pronta pra assumir seu lugar de “princesinha do papai”. O menino encontrará o quarto azul com motes esportivos e bélicos, e será preparado para protagonizar uma vida de aventuras — longe do ambiente doméstico, que isso é coisa de menina.
Uma americana fez um exercício formidável que eu gostaria que fosse feito aqui (alguém se habilita? Já tem estudo acadêmico?). Ela analisou uns trinta comerciais de TV que tentam vender brinquedos para meninos de 6 a 8 anos, e outros trinta para meninas da mesma idade, e anotou o vocabulário usado para comercializar cada produto. A lista original pode ser vista aqui. Como usei e continuo usando esses gráficos em algumas palestras, decidi traduzir as palavras. Deu mais ou menos isso para os brinquedos de meninas:
Praticamente tudo relacionado à moda, estilo, aparência física, e maternidade. A palavra amor é a que a mais aparece nos comerciais, mas é só ver quem lhe faz companhia pra gente supor a que tipo de amor os publicitários se referem. Amor por consumir, né? Este é o gráfico das palavras que mais aparecem nos comerciais pra meninos:
O vocábulo mais repetido é batalha. Tem também poder, heróis, ação, derrotar, transformar, destruir etc. Amor e bebês não existem para garotos. O Feminist Frequency também fez um vídeo em que analisa alguns desses comerciais. Concluiu que, pros meninos, estimula-se a competitividade e a agressividade, mas também a construção de coisas (nem que seja para destruí-las em seguida). Pras meninas, tudo gira em torno de prendas
domésticas e da sua função decorativa. Aí a gente se pergunta por que há muito mais engenheiros que engenheiras, ou por que apenas 3% dos programadores de videogame são mulheres. Sério que com toda essa lavagem cerebral desde cedo ainda tem gente que acredita em “gosto pessoal” como fator determinante pras escolhas que fazemos na vida?Não vou entrar na questão de que, num mundo mais humano, a propaganda para menores de 12 anos seria proibida (como é na Suécia). Ponto. Este é um assunto complexo que merece um post só pra isso, mas eu não canso de me admirar ao ver pessoas defendendo a total falta de regulamentação pro capitalismo, porque — dizem — quem deve tomar as rédeas da situação e domar as crianças são os pais. Nem pensar em tornar a vida dos pais um tiquinho mais fácil? Por que fazer os pais competirem com indústrias poderosas que, só nos EUA, gast
am 17 bilhões de dólares em estudos de como influenciar as crianças?
Mas, voltando ao questionamento do André sobre os benefícios do filho brincar com boneca, eu queria devolver a pergunta. Você vê algo de errado num mundo que relaciona todos os brinquedos pra meninos com poder, força bruta e guerra? Esses brinquedos, e toda a cultura de “menino não chora” em que seu filho está inserido, não guiam o modo como ele tentará resolver conflitos? E digamos que você dê o azar de ter uma filha. O que esses brinquedos ensinariam a ela? Por que brincar de boneca seria benéfico pras meninas, e não pros meninos? Que tipo de benefício têm as meninas aprendendo que é sua missão no mundo cuidar da casa? E meninos não namoram, se casam e têm filhos quando crescem? Naquele mesmo
post, um comentarista anônimo já veio com uma enorme certeza: “Se dar boneca pros meninos brincarem não é incitar o homossexualismo, então me digam o que é!”. Uau! Santa ignorância, Batman! O leitor confunde sexo biológico com orientação sexual. Bom, assim como meninas não se tornam lésbicas por brincarem de carrinho ou de espada, meninos não viram gays por, ugh!, tocarem numa boneca. E, como a gente vive num mundo em que as “incitações” à heterossexualidade são contínuas e gritantes, você não deve se preocupar. Fecho com Guacira Louro quando ela questiona: “Se a identidade heterossexual fosse, efetivamente, natural [...], por que haveria a necessidade de tanto empenho para garanti-la?” De fato, o medo que temos em combater a homofobia nas escolas (porque isso geraria toda uma multidão de gays e lésbicas!) é um sinal inequívoco da fragilidade da nossa heterossexualidade. Como é fraca a nossa identidade sexual se um menino brincar de boneca o “incitará” a ser gay
!A certeza homofóbica do leitor anônimo não tem muita salvação, mas a dúvida (vou acreditar que genuína) do André a respeito dos benefícios que seu filho teria por brincar de boneca pode ser ampliada: que benefícios teria o nosso mundo se as crianças pudessem crescer para ser tudo aquilo que quiserem ser, sem estar limitadas às amarras de seu gênero?
Pupilos tentam fisgar informações de seu orientadorMesmo que Jogos Vorazes não fosse um bom filme (e ele é; é espetacular), ainda assim teria que ser celebrado. Isso porque sabe
quantos filmes de Hollywood têm uma protagonista mulher? 16%. E esse número inclui comédias românticas, com aquelas protagonistas que só vivem em função do príncipe encantado. Se a gente for pensar em filme de ação, a esmagadora maioria não só é protagonizada por machos, como quase não têm personagens mulheres (não passa no Bechdel Test de jeito maneira). Talvez porque exista uma regra ridícula (e nunca provada) de que garotas vão ao cinema ver filmes “de homem”, mas garotos não seriam encontrados nem mortos numa sala que exibisse filme “de mulher”. Aí pense nos poucos filmes de ação que tinham, não vou nem dizer protagonistas, mas personagens femininas de destaque, e me diga: q
ue roupa elas estavam usando? Aquela roupa, aquelas poses sensuais, tinham mais a ver com luta ou com o conceito de servir um banquete de bandeja pros espectadores? Aí aparece Jogos Vorazes, que está rendendo fortunas na bilheteria, que tem Katniss como protagonista que não usa sainha grudada no corpo, e que, além do mais, é um filme feminista, questionador e de esquerda, pois faz a gente torcer pro povo, contra o império (e pare de me recomendar este post que alega que Jogos é um embuste anti-feminista. Já li e discordo de tudo, obrigada. E já escrevi sobre o que considero um filme feminista). Uma das primeiras falas de Katniss é dirigida a um amigo que talvez um dia se transforme em friend with benefits: ela diz que não quer ter filhos. Ele respo
nde que quer, desde que seja longe dali. Mas Katniss não se voluntaria pro jogo de vida ou morte pra conseguir homem, e sim pra substituir a irmãzinha. É verdade que bem mais pra frente Katniss irá se envolver com Peeta, um participante também do seu distrito, mas permanece ambíguo se ela o beija e o ajuda porque está interessada nele ou pra entrar no esquema e angariar simpatia dos patrocinadores.
De um jeito ou de outro, o relacionamento entre os dois é uma grande inversão de gêneros. Peeta é sensível, romântico, apaixonado -- todas essas características atribuídas só às mulheres. Pô, ele até faz decoração de bolo! E ela, que é durona e fria? Quantas vezes ela diz pro Peeta “Confie em mim”, e ele confia? Quantas vezes ela salva sua vida? Eu contei pelo menos quatro: ao encontrá-lo na caverna e ajudá-lo, ao trazer o medicamento (que não viria sozinho), ao atirar em Cato, ao não matá-lo
assim que as regras do jogo são mudadas. Quantas vezes ele a salva? Nenhuma? Inclusive, o momento em que ela quase morre (quando Peeta se junta aos profissas) está mal-explicado. E no final, quando ela diz que “Nós nos salvamos um ao outro”, ocorre uma mistura de falsidade com prêmio de consolação. É um instante estranho, como um outro, antes, em que Peeta diz pra ela que ele levará o arco e flecha. Ela, exímia atiradora, olha estranho pra ele, e ele responde que está brincando. O que significa essa cena? Peeta nem parece ter senso de humor.
Tem gente que acha que Katniss é menos guerreira por salvar Peeta, e por se colocar em situações de perigo para salvá-lo. Desculpe, mas acho esse argumento besta. Primeiro que ela faria isso por outras personagens também que não fossem seu interesse romântico (Rue, por exemplo). Segundo que a gente gostaria menos dela, ela seria menos heróica, se não se sacrificasse pra salvar os outros. Terceiro que os heróis masculinos se sacrificam pra salvar os frascos e comprimidos o tempo todo, e ninguém acha que eles são menos heróicos por causa disso (pelo contrário: seria uma droga ter um herói que só se preocupasse com sua própria pele.
Não seria herói!). Mas, por ser uma heroína mulher, ohhhhh, qualquer cena d'ela salvando um cara é render-se à heteronormatividade e à fábula do príncipe encantado! Não é por aí. Não tenho nada contra Katniss namorar um ou dois (pra quê desperdiçar um outro carinha bonitão afinzão nela?), casar com ele ou eles, ter filhinhos... desde que, no final do dia, ela ainda lidere a revolução pra derrubar o sistema. E engana-se quem pensa que o final represente uma falta de autonomia de Katniss. O final, crítico e realista, mostra que a humanidade não tem jeito mesmo. O
final feliz é extremamente infeliz. É feliz porque quem a gente queria que ganhasse, ganha. Mas é infeliz porque quem ganha de fato é o sistema, que se perpetua. Katniss é sugada pelo sistema, e no fim parece uma prom queen posando ao lado de seu tão admirado galã, muito mais que uma guerreira que vai libertar o povo explorado (fiquei esperando que o presidente Snow jogasse um balde de sangue de porco nela, à la Carrie). Mas este é o final do primeiro filme. Espero que, até o fim da trilogia, Katniss faça a revolução. Este é um filme em que mulheres e homens lutam de igual pra igual. Não há um “jogos vorazes” p
ra cada gênero. Os uniformes são os mesmos. O treinamento é igual, e em nenhum momento as garotas sorteadas são vistas como inferiores ou menos competitivas que os rapazes. Até porque um combate não depende só de força bruta, mas também de estratégias. Rue é uma menina pequena, e ainda assim habilidosa em sobreviver. E a favorita nas apostas é Katniss. A fala de Peeta já diz tudo: “Minha mãe falou que o Distrito 12 finalmente tem alguém que pode ganhar os jogos. E ela não estava se referindo a mim”. Ai! Essa doeu, né, mascus?Se as convenções de gênero são deixadas de lado durante os jogos, elas aparecem com tudo fora deles. Apesar de mulheres e homens serem iguais na batalha, aquela sociedade ditatorial é também patriarcal. Nos dis
tritos, os “pais de família” trabalham fora, enquanto as mulheres cuidam da casa e dos filhos. Todas as posições de comando estão nas mãos de homens. Na capital, os homens se maquiam e cuidam da aparência, mas as mulheres devem se vestir de um jeito hiperfeminino, com espartilho e boca em forma de coração (se as roupas do Distrito 12 lembram as dos miseráveis da depressão, as dos ricos da capital são da era vitoriana. Os homens parecem dandies). E quem desponta como rebelde com causa e grandes chances de desafiar esse mundo patriarcal? Uma mulher, Katniss. Por enquanto, só ela e mais ninguém.Fiquei muito otimist
a com Jogos Vorazes, e quero acreditar que alguma coisa está mudando. Além deste filme, que é uma revolução (o romance da mocinha é tratado como uma performance de gênero), nos trailers passaram À Toda Prova, em que uma agente enfrenta mil e um profissionais que querem matá-la. E a Pixar vai lançar Valente. Permita-me estar uivando pra lua neste momento de exaltação.
Gênero (feminino/masculino) é uma questão importantíssima, mas que raramente é discutida nas escolas. Como mencionei ontem, eu fiz Pedagogia, e não me lembro de um
a aula sequer em que tratamos do assunto. Gostaria de acreditar que a situação mudou dez anos depois, mas duvido. E isso que a orientação sexual (que englobaria gênero) é um dos Temas Transversais dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) desde 1997.Vou deixar com vocês um lindo relato de uma professora que ensina gênero na primeira série. Está em inglês, e eu fiz um resumo (mal) traduzido. Se vocês souberem de livros infantis em português apropriados pra abordar gênero com crianças, por favor, avisem nos comentários.Era uma vez uma professora de primeira série. Na mesma escola, nos EUA, alguns anos antes, ela tinha considerado estranho uma colega falar sobre gênero no maternal. Achou exagerado, seria cedo de
mais! Mas depois de ter duas filhas e perceber toda a divisão que há entre os “sexos opostos” (opostos a quê? Por que essa oposição?), esta professora mudou de ideia. Ademais, ela teve uma aluna, Allison, que preferia ser chamada de Allie, que não tinha um gênero muito definido. As crianças muitas vezes se referiam a Allie como menino. A professora ligou pros pais (compreensivos) de Allie, que perguntaram a ela o que queria que fosse feito: ela, a professora, deveria corrigir quem chamasse Allie de menino, ou não dizer nada? Allie pediu pra corrigir. Quando a professora disse pra turma pela primeira vez que Allie era menina, alunos f
izeram perguntas na sala: “Por que Allie se veste como menino?”, “Se você é menina, por que se parece com um menino?” Esta professora então decidiu a começar a falar com alunos sobre gênero. Primeiro, trouxe um livro infantil sobre um menino que queria uma boneca mais do que nada (veja vídeo em inglês), contra os desejos de seu pai. Em seguida, ela fez duas colunas, meninas e meninos, e pediu que as crianças citassem brinquedos para cada gênero. Quando as duas colunas estavam cheias, ela passou a perguntar se meninas podiam brincar de Lego, por exemplo. A maior parte não viu problema nenhum nisso. Perguntou se meninos podiam brincar de boneca. Como havi
am acabado de ler o livro, não houve oposição. “Será que alguma menina aqui brinca de carrinho?”. “Eu! Eu!”, algumas responderam. Só houve hesitação quando chegaram na parte de esmalte e maquiagem. Nisso as crianças pareciam irredutíveis: aquilo era só pra meninas. A professora então lembrou que alguns roqueiros usavam maquiagem. Alguns alunos começaram a se lembrar de casos, inclusive casos na família: “Meu tio pinta as unhas de preto”. E as barreiras de gênero foram se misturando. Allie tinha vergonha de ir ao banheiro, e quase nunca ia. Nas vezes e
m que queria ir, a professora lhe dava a chave para um banheiro que não era nem para meninos nem para meninas. Mas o problema persistia porque, como tantas professoras, esta também pedia para as crianças fazerem duas filas, uma para cada gênero. A professora pensou em novas maneiras de fazer as crianças se dividirem em duas filas: “Quem gosta mais de gatos fica nessa fila. Quem gosta mais de cachorro, fica nesta”. Ela testou várias categorias, que eram variadas diariamente, e as crianças adoravam: leite ou suco, calor ou frio, futebol ou basquete, praia ou piscina, sorvete ou bolo. Ela também passou a adotar termos como “crianças”, em vez de “meninos e men
inas”. Como um garoto havia sido alvo de brincadeiras por ter um estojo da Hello Kitty, e sua irmã, por ter um estojo com caveiras, a professora usou alguns livros de Tudo Bem Ser Diferente (ela já havia usado outros livros da série, como Tudo Bem Usar Óculos, Tudo Bem Vir de Outro Lugar, Tudo Bem Ser de Outra Cor). Ela começou perguntando quantos já tinham ouvido que não podiam fazer determinada coisa por serem meninos ou meninas. Muitas mãos foram levantadas. Ela leu um livro em que um garoto é bullied por preferir dançar a praticar esportes. As crianças empatizaram com o personagem. Já que a professora queria não apenas ampliar as fronteiras de gêner
o, mas também contestá-las e eliminá-las, ela pediu aos alunos para fazer desenhos para ilustrar o tema de “Tudo Bem Ser Diferente”. Uma aluna desenhou duas noivas. Os desenhos foram expostos no mural da escola.Allie continuou enfrentando muitos problemas, mas pelo menos a situação na escola melhorou pra ela. E, lógico, melhorou para as outras crianças. Todo mundo ganha em viver num mundo mais tolerante, mais inclusivo.A professora diz que seu papel não é responder perguntas como “Por quê?” ou julgar -– é ensinar, e ela não pode ensinar se as crianças estão desconfortáveis na sala. E que seu trabalho é preparar alunos para serem parte da sociedade e conviver com todos os tipos de pessoas. Ela termina o relato contando que uma manhã recebeu uma men
sagem de uma mãe: “Andrew diz que quer uma boneca de ninar e ele não liga se é só pra meninas. Obrigada, Ms. Melissa!”.Claro que em muitas escolas a reação dos pais talvez não fosse "Obrigad@!". É preciso transformar a todos, não só as crianças. Mas pra isso a gente tem que se dar conta que a segregação por gêneros, esta divisão binária e ultrapassada, é nociva pro mundo.
José Tarcísico Costa tem 25 anos, é de Campinas e está morando na Europa desde agosto de 2010. Depois de um ano na França, agora está em Estocolmo, onde cursa mestrado em Física. Em suas palavras: "Sempre tenho interesse
em fazer uma imersão na cultura do país em que estou vivendo. Acho um desperdício de oportunidade morar num país diferente e ficar só focado na Física. Por essa razão procurei conhecer pessoas nativas e também estudar mais sobre a cultura local e acabei descobrindo essa disciplina voltada pra estrangeiros, na faculdade onde estou". Então vamulá. Acho que vocês vão gostar do que o Zé tem a dizer.
Acompanho seu blog como um religioso e sempre acho muita coisa interessante. Hoje estava discutindo com uns amigos sobre a igualdade entre os sexos, machismo, feminismo e etc, quando me dei conta de que muitos homens usam a "diferença natural" dos sexos pra justificar certas atitudes machistas, algo que eu achei absurdo. Contei para eles sobr
e a minha experiência na Suécia e muitos não acreditaram que as coisas aqui realmente são do jeito que são. Inclusive eu não acreditava muito antes de viver aqui, então achei uma boa ideia te escrever pra contar sobre isso. Não sei se você conhece bem como as coisas funcionam aqui, mas em todo caso...Eu sempre ouvi falar da extrema igualdade entre os sexos na Suécia, mas nunca tive ideia da real extensão disso até vir morar em Estocolmo e cursar uma disciplina chamada "Sociedade e Política Suecas" no Instituto Real de Tecnologia (KTH) e, claro, viver dentro dessa sociedade. A primeira coisa que aprendi e, não tinha a menor ideia, é que a "licença maternidade" por aqui dura 480 dias, que podem ser divididos entre os pais (sendo o mínimo de 60 dias obrigatório para cada um deles).
Entretanto, a igualdade aqui vai além das leis, ela já está bem imersa na cultura dos suecos devido à ed
ucação pela igualdade que eles recebem desde a infância. Eu conversei com algumas garotas mais novas do que eu, na faixa dos seus 20 anos, e perguntei como ocorria o flerte por aqui. Isto é, perguntei como elas agiam quando se interessavam por algum rapaz e a resposta foi unânime: "Vamos falar com ele, oras." Continuei e perguntei se isso não fazia com que os rapazes as vissem como fáceis ou algo do tipo, e pra isso recebi caretas de desaprovação: "Como assim? Por que eu seria julgada como sendo fácil ao conversar com um garoto que me interessa? Não é isso que eles fazem quando estão interessados em alguém?" Tentei explicar pra elas como as coisas funcionam no meu país de origem e vi qu
e elas acharam tudo um pouco absurdo. Para ter certeza de que elas não estavam só falando isso da boca para fora, resolvi conversar com rapazes na mesma faixa da idade e, novamente por unanimidade, todos eles me confirmaram que o sistema por aqui é de mão dupla: "Se nós estamos interessados em uma garota vamos falar com ela, se elas estão interessadas em um de nós elas vêm conversar conosco. Nada de mais."Decidido a levar o assunto um pouco mais a sério e a fundo, resolvi sair com um grupo de amigos e ir a um bar e depois a uma balada para tentar observar o comportamento das pessoas. Em princípio não vi muitas diferenças em comparação à vida noturna no Brasil ou na França (país onde eu vivia anteriormente), mas depois de algum tempo pude constatar o que tinha ouv
ido. As coisas por aqui realmente acontecem em mão dupla, não existe essa de mulher ter que ficar fazendo "charminho" para que o homem vá falar com ela. Se ela está realmente interessada, ela vem e conversa, e não há nenhum problema nisso. Após essa experiência, voltei a conversar sobre esse assunto com vários suecos e suecas de diferentes idades, e também com estrangeiros que vivem por aqui há algum tempo já. O que eu achei engraçado foi o depoimento que recebi de uma argentina que me disse que "a igualdade entre os sexos aqui era um saco porque acabou com o romantismo." Pedi para que ela me falasse mais sobre isso e ela me disse que um sueco não manda flores, não abre a porta do carro, etc. Levei esse assunto pra um grupo de nativos e eles me disseram que na verdade não era bem assim. Algumas garotas disseram que não viam razão para o rapaz abrir a porta do carro, uma vez que ela poderia fazer isso sozinha e, caso ele fizesse questão de fazer isso, ela faria o mesmo pra ele em algumas situações, por que não? Quanto às flores, todos diss
eram que na verdade eles mandam flores sim, nada impede você de fazer isso. Segundo eles, o romantismo fica até maior, porque não só os homens mandam flores, como as mulheres também.
Além disso, o homem sueco é mais participativo no lar, ele lava pratos, ele cuida das crianças, ele limpa a casa, sem que isso seja um problema para a sua masculinidade.Eu achei tudo isso fantástico e, no meu ponto de vista, o mais importante é que mostra que é sim possível uma sociedade igualitária entre os sexos e que essa desculpa do "naturalmente diferentes" não cola. Reparei que existem muitas mulheres policiais por aqui, assim como muitos homens professores do maternal, coisa um pouco diferente do que acontece no Brasil. Para finalizar, fiquei sabendo de uma escola onde a igualdade é levada mais a cabo ainda, o que gerou e ainda gera uma certa controvérsia por aqui. Nos subúrbios de Estocolmo existe uma escola ch
amada "Egalia" onde os professores evitam ao máximo "influenciar" a definição do gênero nos seus alunos. Nas palavras de um professor [ou professora?], Jenny Johnsson: "A sociedade espera que as meninas sejam sempre agradáveis e bonitas e os meninos viris e desinibidos. A Egalia lhes dá uma fantástica oportunidade de ser quem eles querem ser." Isso vai desde o espaço físico ao vocabulário utilizado. Em sueco han significa ele e hon significa ela; entretanto, nessa escola, foi inventado um novo termo, hen, que não existe oficialmente na língua sueca, pra ser usado em determinadas ocasiões. A diretora da escola Lotta Rajallin disse que esse termo é empregado em algumas situações como por exemplo quando um bombeiro, eletricista, policial etc vem visitar a escola. As crianças não sabem se será um
profissional homem ou mulher, então a escola dizez "Hen vem amanhã nos visitar", o que, segundo Rajallin, aumenta a perspectiva das crianças. Por que dizer "ele" ou "ela" quando não se sabe o sexo da pessoa que virá?
O espaço físico também evita definições. Na sala de brinquedos podemos ver blocos de construção ao lado de fogõezinhos, assim como carrinhos misturados às bonecas. As crianças podem escolher qualquer um deles pra brincar, não existe isso de que alguns brinquedos são de meninas e outros de meninos. Na biblioteca há livros com histórias infantis que tratam de temas como mães solteiras, casais homo e bissexuais, tudo com grande naturalidade. Cabe lembrar que essa escola é única, e esse não é o tipo generalizado de pedagogia utilizada na Suécia. Em suma, posso dizer que
a minha experiência por aqui realmente está sendo fantástica. Eu sempre fui um defensor da igualdade entre os gêneros e sempre achei fraco o argumento de "diferenças naturais". Agora vivendo por aqui, eu pude ver que realmente essas "diferenças" podem ser superadas e a igualdade sim pode ser alcançada. Não é à toa que a Suécia é o primeiro país do mundo em igualdade, e um dos primeiros em termos de qualidade de vida. Se as coisas funcionam por aqui, por que não poderiam funcionar em outros lugares?