Mesmo que Jogos Vorazes não fosse um bom filme (e ele é; é espetacular), ainda assim teria que ser celebrado. Isso porque sabe
quantos filmes de Hollywood têm uma protagonista mulher? 16%. E esse número inclui comédias românticas, com aquelas protagonistas que só vivem em função do príncipe encantado. Se a gente for pensar em filme de ação, a esmagadora maioria não só é protagonizada por machos, como quase não têm personagens mulheres (não passa no Bechdel Test de jeito maneira). Talvez porque exista uma regra ridícula (e nunca provada) de que garotas vão ao cinema ver filmes “de homem”, mas garotos não seriam encontrados nem mortos numa sala que exibisse filme “de mulher”. Aí pense nos poucos filmes de ação que tinham, não vou nem dizer protagonistas, mas personagens femininas de destaque, e me diga: q
ue roupa elas estavam usando? Aquela roupa, aquelas poses sensuais, tinham mais a ver com luta ou com o conceito de servir um banquete de bandeja pros espectadores?
Aí aparece Jogos Vorazes, que está rendendo fortunas na bilheteria, que tem Katniss como protagonista que não usa sainha grudada no corpo, e que, além do mais, é um filme feminista, questionador e de esquerda, pois faz a gente torcer pro povo, contra o império (e pare de me recomendar este post que alega que Jogos é um embuste anti-feminista. Já li e discordo de tudo, obrigada. E já escrevi sobre o que considero um filme feminista).
Uma das primeiras falas de Katniss é dirigida a um amigo que talvez um dia se transforme em friend with benefits: ela diz que não quer ter filhos. Ele respo
nde que quer, desde que seja longe dali. Mas Katniss não se voluntaria pro jogo de vida ou morte pra conseguir homem, e sim pra substituir a irmãzinha. É verdade que bem mais pra frente Katniss irá se envolver com Peeta, um participante também do seu distrito, mas permanece ambíguo se ela o beija e o ajuda porque está interessada nele ou pra entrar no esquema e angariar simpatia dos patrocinadores. 
De um jeito ou de outro, o relacionamento entre os dois é uma grande inversão de gêneros. Peeta é sensível, romântico, apaixonado -- todas essas características atribuídas só às mulheres. Pô, ele até faz decoração de bolo! E ela, que é durona e fria? Quantas vezes ela diz pro Peeta “Confie em mim”, e ele confia? Quantas vezes ela salva sua vida? Eu contei pelo menos quatro: ao encontrá-lo na caverna e ajudá-lo, ao trazer o medicamento (que não viria sozinho), ao atirar em Cato, ao não matá-lo
assim que as regras do jogo são mudadas. Quantas vezes ele a salva? Nenhuma? Inclusive, o momento em que ela quase morre (quando Peeta se junta aos profissas) está mal-explicado. E no final, quando ela diz que “Nós nos salvamos um ao outro”, ocorre uma mistura de falsidade com prêmio de consolação. É um instante estranho, como um outro, antes, em que Peeta diz pra ela que ele levará o arco e flecha. Ela, exímia atiradora, olha estranho pra ele, e ele responde que está brincando. O que significa essa cena? Peeta nem parece ter senso de humor.
Tem gente que acha que Katniss é menos guerreira por salvar Peeta, e por se colocar em situações de perigo para salvá-lo. Desculpe, mas acho esse argumento besta. Primeiro que ela faria isso por outras personagens também que não fossem seu interesse romântico (Rue, por exemplo). Segundo que a gente gostaria menos dela, ela seria menos heróica, se não se sacrificasse pra salvar os outros. Terceiro que os heróis masculinos se sacrificam pra salvar os frascos e comprimidos o tempo todo, e ninguém acha que eles são menos heróicos por causa disso (pelo contrário: seria uma droga ter um herói que só se preocupasse com sua própria pele.
Não seria herói!). Mas, por ser uma heroína mulher, ohhhhh, qualquer cena d'ela salvando um cara é render-se à heteronormatividade e à fábula do príncipe encantado! Não é por aí. Não tenho nada contra Katniss namorar um ou dois (pra quê desperdiçar um outro carinha bonitão afinzão nela?), casar com ele ou eles, ter filhinhos... desde que, no final do dia, ela ainda lidere a revolução pra derrubar o sistema.
E engana-se quem pensa que o final represente uma falta de autonomia de Katniss. O final, crítico e realista, mostra que a humanidade não tem jeito mesmo. O
final feliz é extremamente infeliz. É feliz porque quem a gente queria que ganhasse, ganha. Mas é infeliz porque quem ganha de fato é o sistema, que se perpetua. Katniss é sugada pelo sistema, e no fim parece uma prom queen posando ao lado de seu tão admirado galã, muito mais que uma guerreira que vai libertar o povo explorado (fiquei esperando que o presidente Snow jogasse um balde de sangue de porco nela, à la Carrie). Mas este é o final do primeiro filme. Espero que, até o fim da trilogia, Katniss faça a revolução.
Este é um filme em que mulheres e homens lutam de igual pra igual. Não há um “jogos vorazes” p
ra cada gênero. Os uniformes são os mesmos. O treinamento é igual, e em nenhum momento as garotas sorteadas são vistas como inferiores ou menos competitivas que os rapazes. Até porque um combate não depende só de força bruta, mas também de estratégias. Rue é uma menina pequena, e ainda assim habilidosa em sobreviver. E a favorita nas apostas é Katniss. A fala de Peeta já diz tudo: “Minha mãe falou que o Distrito 12 finalmente tem alguém que pode ganhar os jogos. E ela não estava se referindo a mim”. Ai! Essa doeu, né, mascus?
Se as convenções de gênero são deixadas de lado durante os jogos, elas aparecem com tudo fora deles. Apesar de mulheres e homens serem iguais na batalha, aquela sociedade ditatorial é também patriarcal. Nos dis
tritos, os “pais de família” trabalham fora, enquanto as mulheres cuidam da casa e dos filhos. Todas as posições de comando estão nas mãos de homens. Na capital, os homens se maquiam e cuidam da aparência, mas as mulheres devem se vestir de um jeito hiperfeminino, com espartilho e boca em forma de coração (se as roupas do Distrito 12 lembram as dos miseráveis da depressão, as dos ricos da capital são da era vitoriana. Os homens parecem dandies).
E quem desponta como rebelde com causa e grandes chances de desafiar esse mundo patriarcal? Uma mulher, Katniss. Por enquanto, só ela e mais ninguém.
Fiquei muito otimist
a com Jogos Vorazes, e quero acreditar que alguma coisa está mudando. Além deste filme, que é uma revolução (o romance da mocinha é tratado como uma performance de gênero), nos trailers passaram À Toda Prova, em que uma agente enfrenta mil e um profissionais que querem matá-la. E a Pixar vai lançar Valente. Permita-me estar uivando pra lua neste momento de exaltação.


Aí aparece Jogos Vorazes, que está rendendo fortunas na bilheteria, que tem Katniss como protagonista que não usa sainha grudada no corpo, e que, além do mais, é um filme feminista, questionador e de esquerda, pois faz a gente torcer pro povo, contra o império (e pare de me recomendar este post que alega que Jogos é um embuste anti-feminista. Já li e discordo de tudo, obrigada. E já escrevi sobre o que considero um filme feminista).
Uma das primeiras falas de Katniss é dirigida a um amigo que talvez um dia se transforme em friend with benefits: ela diz que não quer ter filhos. Ele respo


De um jeito ou de outro, o relacionamento entre os dois é uma grande inversão de gêneros. Peeta é sensível, romântico, apaixonado -- todas essas características atribuídas só às mulheres. Pô, ele até faz decoração de bolo! E ela, que é durona e fria? Quantas vezes ela diz pro Peeta “Confie em mim”, e ele confia? Quantas vezes ela salva sua vida? Eu contei pelo menos quatro: ao encontrá-lo na caverna e ajudá-lo, ao trazer o medicamento (que não viria sozinho), ao atirar em Cato, ao não matá-lo


Tem gente que acha que Katniss é menos guerreira por salvar Peeta, e por se colocar em situações de perigo para salvá-lo. Desculpe, mas acho esse argumento besta. Primeiro que ela faria isso por outras personagens também que não fossem seu interesse romântico (Rue, por exemplo). Segundo que a gente gostaria menos dela, ela seria menos heróica, se não se sacrificasse pra salvar os outros. Terceiro que os heróis masculinos se sacrificam pra salvar os frascos e comprimidos o tempo todo, e ninguém acha que eles são menos heróicos por causa disso (pelo contrário: seria uma droga ter um herói que só se preocupasse com sua própria pele.

E engana-se quem pensa que o final represente uma falta de autonomia de Katniss. O final, crítico e realista, mostra que a humanidade não tem jeito mesmo. O

Este é um filme em que mulheres e homens lutam de igual pra igual. Não há um “jogos vorazes” p

Se as convenções de gênero são deixadas de lado durante os jogos, elas aparecem com tudo fora deles. Apesar de mulheres e homens serem iguais na batalha, aquela sociedade ditatorial é também patriarcal. Nos dis

E quem desponta como rebelde com causa e grandes chances de desafiar esse mundo patriarcal? Uma mulher, Katniss. Por enquanto, só ela e mais ninguém.
Fiquei muito otimist

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