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Friday, December 9, 2011

CUTI REBATE O PRECONCEITO DE FERREIRA GULLAR

A EMPÁFIA DO POETA GULLAR


 Esse texto de Cuti foi publicado originalmente em:


Por conta da publicação, em quatro volumes, da Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica, organizada pelos professores Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Fonseca, seja pela apresentação gráfica sofisticada da obra, seja pelo seu aporte crítico envolvendo profissionais de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, a questão de ser ou não ser negra a vertente da literatura brasileira que compõe seu conteúdo tem trazido à tona manifestações que vão desde respeitosas e aprofundadas abordagens até esdrúxulos pitacos de quem demonstra sua completa ignorância do assunto, má vontade e racismo crônico. Neste último caso está o que publicou Ferreira Gullar, com o título "Preconceito cultural", no caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, de 04/12/2011.
O autor do Poema Sujo, no qual compara um urubu a um negro de fraque, deve estar estranhando (estranheza é a palavra que ele emprega) que o negro não é uma simples idéia desprezível, mas um imenso número de pessoas, cuja maior parte, hoje, não come carniça, e que aqueles ainda submetidos à miséria mais miserável jamais quiseram fazer o trabalho daquela ave, e que se a "a vasta maioria dos escravos nem sequer aprendia a ler", como diz ele, não é porque não queria. Era proibida. Há vários dispositivos legais e normas que comprovam isso. Havia uma vontade contrária. Há e sempre houve um querer coletivo negro de revolta contra a opressão racista.
Quanto a existir ou não literatura negro-brasileira, deixemos de hipocrisia. No mundo da cultura só existe o que uma vontade coletiva, ou mesmo individual, diz que sim e consegue vencer aqueles que dizem não. Foi assim com a própria literatura brasileira e os tantos ismos que por aqui deixaram seus rastros. Características, traços estilísticos, vocabulário etc, que demarcam a possibilidade de se rotular um corpus literário, no tocante à produção literária negra, já vem sendo estudados. Basta lembrar três antologias de ensaios: Poéticas afro-brasileiras, de 2002, com 259 páginas;
A mente afro-brasileira (em três idiomas), de 2007, com 577 páginas; Um tigre na floresta dos signos, de 2010, com 748 páginas, além de outras reuniões de textos, estudos, dissertações e teses. Por outro lado, se Cruz e Sousa e Machado de Assis, como argumenta Gullar "foram herdeiros de tendências literárias européias", e, portanto, "não se pode afirmar que faziam literatura negra", o que dizer de Lépold Senghor e Aimé Césaire, principais criadores do Movimento da Negritude, embora herdeiros da tradição literária francesa? A literatura não é só resultado de si mesma. Só uma perspectiva genética tacanha desconheceria outras influências do texto literário, tais como a experiência existencial do autor, sua formação política e ideológica, o contexto social, entre tantas mais. Nenhum escritor é obrigado a reproduzir suas influências.
A maneira como o tal poeta cita o samba, a dança, o carnaval, o futebol é aquela que simplesmente aponta o "lugar do negro" que o branco racista determinou, um lugar que serviu de "contribuição" para que os brancos ganhassem dinheiro, não só produzindo sua arte a partir do aprendizado com os negros, mas também explorando compositores diretamente e calando-os na sua autoafirmação étnica. Basta inventariar quantos grandes compositores negros morreram na miséria. A essa realidade o poeta chama de: "nossa civilização mestiça". Mas, pelo visto, a literatura, sendo a menina dos olhos da cultura, deve ser defendida da invasão dos negros. O escritor e crítico Afrânio Peixoto, lá no passado, deixou a expressão bombástica sobre a literatura ser "o sorriso da sociedade". Gullar não pensa isso, com certeza, mas em seus pobres argumentos está a ruminar que a literatura não pode ser negra. Talvez sinta que a negrura pode sujá-la, postura bem ainda dentro do diapasão modernista que abordou o negro pelo viés da folclorização.
A esquerda caolha e daltônica brasileira sempre se negou a encarar o racismo existente em nosso país. Por isso andou e anda de braços e abraços com a direita mais reacionária quando se trata de enfrentar o assunto. Para ela, a mesma ilusão dos eugenistas, tipo Monteiro Lobato, se apresenta como verdade: o negro vai (e deve) desaparecer no processo de miscigenação. Para alguns cristinhos ressuscitados dos porões da ditadura militar e seus seguidores sobreviveria e sobreviverá apenas o operariado branco. Concebem isso completamente esquecidos de que a cor da pele e traços fenotípicos estão inseridos do mundo simbólico, o mundo da cultura. No seu inconsciente, o embranquecimento era líquido e certo, solução de um "problema". Hoje, é provável que os menos estúpidos já tenham se deparado com as estatísticas e ficado perplexos. Gullar, pelos seus argumentos, se coloca como um representante da encarquilhada maneira de encarar o Brasil sem a participação crítica do negro. E, como é de praxe, entre os encastelados no cânone literário brasileiro, incluindo os críticos, não ler e não gostar é a regra. Em se tratando de produção do povo negro, empinam e entortam ainda mais o nariz. Devem se sentir humilhados só de pensar em ler o que um negro brasileiro escreveu e, no fundo, um terrível medo de verem denunciado o seu analfabetismo relativo a um grave problema nacional: o racismo, ou serem levados a cuspir no túmulo de seus avós.
Gullar  diz ser "tolice ou má-fé" se pensar um grande público afrodescendente como respaldo da produção literária negra. Será que ele algum dia teve em seu horizonte de expectativa o leitor negro? Certamente não, como a maioria dos escritores brancos. Isso, sim, é tolice, má-fé e, cá entre nós, uma sutil forma de genocídio cultural, próxima daquela obsessão de se matar personagens negros. E não adianta nesse quesito invocar um parente mulato como, em outros termos, fez o imbecil parlamentar racista Bolsonaro.
Antonio Cândido, em entrevista publicada na revista Ethnos Brasil, em março de 2002, com o título "Racismo: crime ontológico", fazendo sua autocrítica relativa à sua omissão, por muito tempo, do debate sobre a questão racial, argumenta que o "nó do problema" estaria "no aspecto ontológico", e prosseguindo: "está no drama, para o negro, de ter de aceitar uma outra identidade, renegando a sua para ser incorporado ao grupo branco." Façamos um acréscimo ao que disse o consagrado mestre. A questão racial é um problema ontológico no Brasil porque diz respeito também ao ser branco, pois o debate sobre o problema enfrenta a ilusão da superioridade congênita do branco, que o racismo insiste em manter cristalizada na produção intelectual brasileira. Ele, o branco, tem o drama de ser forçado a aceitar uma outra identidade que não aquela de superioridade congênita que o racismo lhe assegurou, de ser obrigado pelo debate a experimentar a perda da empáfia da branquitude, descer do salto alto. Aliás, o sociólogo Guerreiro Ramos nos legou um ensaio elucidativo do assunto, intitulado "A patologia social do branco brasileiro".
A produção intelectual não é tão somente uma exclusividade de brancos racistas, apesar de certa hegemonia ainda presente. Além de brancos conscientes da história do país, negros escrevem, publicam livros e falam não só de si, mas também dos brancos, dos mestiços e de todos os demais brasileiros. Quem não leu e não gostou dessa produção, em especial a do campo literário, já não está fazendo tanta diferença. A crítica binária, baseada no Bem X Mal, está enfraquecida. Um dos propósitos de seus defensores quando pensam negros escrevendo é o de tirar o entusiasmo dos filhos e dos netos daqueles que por muitos séculos lhes serviram a mesa e lhes limparam o chão e mesmo daqueles que ainda o fazem. A vontade coletiva negra está em expansão e não é só no campo literário. Assim, quando o poeta Ferreira Gullar diz que falar em literatura negra não tem cabimento, é de ser fazer a célebre pergunta: "Não tem cabimento para quem, cara-pálida?" A sua descrença no que chama de "descriminação" na literatura, crendo que ela não "vá muito longe" e gera "confusão" é o simples reflexo da baixa expectativa de êxito que a maioria dos brancos tem em relação aos negros, resultado dos preconceitos inconfessáveis, passados de geração para geração, para minar qualquer ímpeto de autodeterminação da população negra.
Para Aristóteles havia os gregos e o resto (os bárbaros). O branco brasileiro precisa superar este complexo helênico de pensar que no Brasil há os brancos e o resto (mestiços e negros). Tal postura é uma das responsáveis pelo descompasso da classe dirigente em face da real população. Certamente, essa é a razão de Lima Barreto, o maior crítico do bovarismo brasileiro, ainda ser muito pouco ensinado em nossas escolas. O daltonismo de Ferreira Gullar, advindo de um tempo de utopia socialista, hoje é pura cegueira. Traços físicos que caracterizam historicamente os negros não são só traços físicos, como quer o articulista, mas representações simbólicas, por isso perfeitamente suscetíveis de gerar literatura com especificidades.
Se o poeta não concebe negros possuidores de consciência crítica no país e as históricas particularidades de sua gente, devia fazer a sua autocrítica e não insistir na cegueira. Não dá mais para negar que a classe C está disputando também assentos no vôo literário, além dos bancos de universidades, nos shoppings e outros espaços sociais. E a população negra também faz parte dela. Quem não quiser enxergar vai continuar vivendo embriagado por esta cachaça genuinamente brasileira, produzida nos engenhos decadentes: o mito da democracia racial. Pena que alguns, de tão viciados, não largam a garrafa.



Luiz Silva (Cuti), escritor, Doutor em Literatura Brasileira. Cuti é um dos idealizadores da série Cadernos Negros (ativa desde 1978).

Monday, October 10, 2011

PRÉ – CONCEITO

(Sobre a Marcha das Vadias Itabuna. Texto publicado originalmente em: http://linguadefogo2.wordpress.com/)


Por Valéria Ettinger


Preconceito no dicionário significa: é Conceito ou opinião formado antes de ter os conhecimentos adequados. 2 Opinião ou sentimento desfavorável, concebido antecipadamente ou independente de experiência ou razão. (http://michaelis.uol.com.br).

Partindo do conceito acima, conclui-se que o preconceito é gerado pela falta de informação, pelo desconhecimento dos fatos, acontecimentos e atitudes. É comum criarmos padrões a partir do que nos foi dito ou revelado, sem antes investigarmos e analisarmos se a opinião do outro ou, se o que o outro manifestou, é verdadeiro. É raro recorrermos ao dicionário ou a própria história para confirmarmos a verdade das palavras e dos comportamentos sociais e, com isso, vamos repetindo atitudes e falas que geram um grave “apartheid” social.
Tenho como exemplo a “marcha das vadias”, que ocorreu em Itabuna no último dia 08/10/2011, ao caminhar pela avenida do cinqüentenário exibindo faixas, cartazes que tratavam de todos os tipos de violência contra mulher, via-se um povo nas calçadas atônitos sem entender o que estava ocorrendo. E muitos perguntavam: o que é isso? O que querem? Mas, muito poucos se juntaram ao bando de manifestantes. Ressalto que foram vistos poucos políticos por lá, mas com certeza esses mesmos que lá não estavam irão construir suas plataformas políticas como defensores da violência contra as mulheres.
Como a passeata estava povoada por professores, sindicalistas, jovens e a comunidade LGBT, alguns, inclusive, acreditaram que era um manifesto político ou dos “gays”, como se chama pejorativamente. No entanto, pouquíssimos perguntaram: por que “marcha das vadias”? Mas muitos, em suas mentes pensantes foram tirando conclusões a partir do que se via e do pouco que se sabia.
Penso que a nossa sociedade está doente e produzindo mais doentes a partir dessa padronização de comportamentos. Vivemos um mundo onde as pessoas, por absorverem os estereótipos, se afastam das pessoas e se conectam com formas pré-concebidas e mercadológicas, sem ao menos investigar sobre a verdade.
Não vejo preconceitos contra políticos corruptos, contra usurpadores da nossa dignidade, contra um padrão de beleza que gera meninas anoréxicas e depressivas, não vejo preconceitos contra a concentração de riquezas, contra os abusos do mercado financeiro que vem provocando a miséria no planeta, não vejo preconceitos contra as imagens negativas veiculadas nos meios de comunicação, contra programas do tipo BBB. Mas vejo muito preconceito contra aqueles que manifestam que 1305 mulheres em Itabuna, no ano de 2011, foram violentadas, seja moralmente ou fisicamente, que manifestam a morte de homens e mulheres que querem ter o direito de escolher a sua orientação sexual, que manifestam a liberdade de culto dos seus ancestrais a partir das energias da natureza, que manifestam o direito de ser criança ou de envelhecer. E ai eu pergunto: que mal essas pessoas estão fazendo? O mal de querer ser livres e serem tratadas como gente, dentro de suas diferentes condições?…
É necessário unirmos forças para acabarmos com os estereótipos, pois só assim poderemos construir uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos (art. 3º CF). E como disse Raul Seixas: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Itabuna-BA, 09 de outubro de 2011.






Valéria Ettinger é  Professora 
Universitária na área do Direito.


Saturday, May 21, 2011

RESISTÊNCIA POPULAR, NEGRA E INDÍGENA NA FESTA DA LAVADEIRA - Entrevista com Eduardo Melo, produtor do evento

Acervo Lavadeira

A Festa da Lavadeira é um grande evento que ocorre anualmente, desde 1987, sempre no dia 1º. de maio, na Praia do Paiva, Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco. Um dos principais objetivos da festa é valorizar a cultura popular e, nessa trajetória, o evento se consolidou como o maior espaço de celebração e resistência popular, negra e indígena.
A Festa da Lavadeira ganhou o Prêmio Projeto Culturas Populares, do Ministério da Cultura (Minc) e o de Melhor Projeto de divulgação da Cultura Popular  no Nordeste, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Neste ano de 2011 o evento enfrentou uma campanha de boicote local, o que se materializou como intensificação repreensiva aos movimentos populares. O blog operária das ruínas, estando solidário com a Festa da Lavadeira, publica esta inédita entrevista com Eduardo Melo, idealizador e produtor do evento.



“A pedra rolou, não caiu
O povo gritou "Agô"
(Avarése - Edenal Rodrigues. “Saravando Xangô”)

“Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se bulí”
(Patativa do Assaré. “Cante lá que eu canto cá”)


Acervo Lavadeira


Operária das Ruínas – Como surgiu a Festa da Lavadeira e de que maneira ela se transformou num dos principais espaços para a valorização da cultura popular?

Côco Raízes de Arcoverde. Acervo Lavadeira
Surgiu de forma espontânea e se fortaleceu com o tempo. O público nunca teve expectativas frustradas, a Festa da Lavadeira é a mesma de 1987. Uma festa da cultura popular que não se deixou seduzir pelas facetas do mercado para atrair público e dinheiro, como a febre dos trios elétricos, pagode, brega, sertanejo - caminho seguido por praticamente todas as festas populares, exceto a Lavadeira.  O evento manteve-se é fiel à música etnológica nordestina e tem Axé!

Eduardo Melo. Acervo Lavadeira
Operária das Ruínas – Como funciona a festa e quais manifestações culturais têm visibilidade durante o evento?
A Festa da Lavadeira é construída por representações tradicionais da nossa diversidade, identidade e histórica cultural. Os folguedos típicos da cultura nordestina são preservados e propagados - os Maracatus, caboclinhos, cirandas, reisados, bois, ursos, bacamarteiros, afoxés, mazurcas, cavalos marinhos, entre outras manifestações. A Festa da Lavadeira é Mãe, todos os grupos são iguais e despertam o sentimento de pertencimento e identificação do público.

Operária das Ruínas – Apesar de completar 25 anos de história, a Festa da Lavadeira, nesta edição de 2011, vem enfrentando a ameaça de proibição da sua realização. Em que consiste essa polêmica? Quais interesses estão em jogo ao se tentar coibir a Festa da Lavadeira?
 As ameaças à Festa da Lavadeira vêm desde 1999, só que não era interessante tornar público esta peleja naquele momento porque poderia nos enfraquecer, já que o poder não estava ao nosso favor. O conflito foi aumentando com o tempo, as instituições públicas começaram a compactuar com a intolerância e preconceito dos empreendedores. Mas o tempo de tornar público foi se aproximando, então lançamos o DVD “Sou do Povo, Sou a Festa”, no segundo semestre de 2009. A partir daí a peleja se tornou pública e o sentimento atual é de vitória e permanente resistência. O interesse em impedir a festa é intolerância, preconceito, abuso do poder econômico e apropriação do espaço público. Ou seja, uma série de crimes consentidos pelo Poder Público, o que é um péssimo exemplo e uma suspeita da nossa democracia.

Festa da Lavadeira 2011. Foto: Thiago Angelin Bianchetti
Operária das Ruínas – Neste momento conturbado a coordenação do evento vem contando com o apoio de quais segmentos sociais?
A Festa da Lavadeira recebeu uma grande força popular, o que de fato é o que mais conta, pois a partir daí conseguimos parceiros importantes neste processo de resistência cultural. Os grupos de cultura popular infelizmente não são organizados, sofrem muito e passam pelos mesmos problemas da Festa da Lavadeira, cada um em sua escala. Os terreiros também não estão organizados, pela própria natureza e essência do Candomblé, que não tem nem precisa de um eixo de poder, normas ou comandos. Mas todos individualmente, e em grupos, estão apoiando a Festa da Lavadeira. Institucionalmente, recebemos o apoio do Ministério da Cultura, no último seis de maio, com a aprovação de uma Moção de apoio à Festa da Lavadeira. Temos também o apoio de longa data do Deputado Federal Fernando Ferro (PT), que esteve na Fundação Palmares articulando proteções para a Festa da Lavadeira. Edilson Silva, candidato a governador de Pernambuco pelo Psol, tem se empenhado e articulado o apoio de mais de cinquenta representações de classe, organizações sociais, diretórios acadêmicos e sindicatos. A Festa da Lavadeira conquistou uma imediata receptividade à causa a partir das redes sociais da internet, os apelos dos brincantes se tornaram públicos. As redes sociais também substituíram a imprensa oficial, que neste ano praticamente em nada se manifestou. Vamos em frente, estamos nos fortalecendo a cada dia!

Operária das Ruínas – Apesar de o mito da democracia racial ser uma das principais crenças brasileiras, as ações de intolerância religiosa (que não são fatos isolados) têm sido cada vez mais freqüentes em todo o país. Considerando o aspecto religioso também vinculado à Festa da Lavadeira, de que maneira o evento se articula com o combate à intolerância?
Acervo Lavadeira

Como disse antes, os terreiros e grupo da cultura popular não estão bem organizados, os folguedos são reféns do Governo Estadual e Municipal. Além disso, não temos representatividade nas Câmaras Municipais nem na Assembléia Legislativa, o que demonstra o “racismo institucional” e o isolamento do nosso Patrimônio Cultural, que normalmente tem um tratamento assistencial e não de protagonismo, qualidade e sustentabilidade. Quanto à Festa da Lavadeira, a única forma de combatermos a intolerância é contar com o apoio do Governo Federal e tentar manter o grande público antenado e envolvido com o evento, com a defesa da nossa cultura ancestral.  
Maracatu Leão da Campina (Festa da Lavadeira 2011). Foto: Thiago Angelin Bianchetti

Operária das Ruínas – Em tempos de ampla divulgação da música para consumo instantâneo, o atual Secretário de Cultura do Estado da Paraíba, o artista Chico Cesar, causou polêmica ao afirmar que nos festejos juninos o poder público irá priorizar os artistas populares. De que maneira você interpreta as reações negativas a essa afirmação, sobretudo aquelas veiculadas pela grande mídia?
Acervo Lavadeira

O que Chico Cesar diz é óbvio e representa o papel e compromisso do Poder Público, incentivar a cultura local, principalmente em suas datas historicamente festivas, como o São João, Carnaval, datas simbólicas, comemorativas. A nossa identidade tem que estar presente, é assim em todo lugar do mundo desenvolvido. Dá pra imaginar uma festa tradicional da Inglaterra ser comemorada com Roberto Carlos?! Comemorar os centos anos de Barcelona com Ivete Sangalo?! Chega a ser bizarro, mas aqui é o comum. Desde as festas municipais que deveriam valorizar suas tradições até as festas comemorativas do Estado, que deslocam a atração principal para algo apenas comercial - isto é um desserviço. Entretenimento, mercado e mídia não deveriam pertencer ao universo do poder público, muito menos em relação à cultura.
Operária das Ruínas – O educador pernambucano Paulo Freire afirmou, na sua última obra, que “não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos”. Aproveitando essas palavras, qual reflexão você pode realizar para encerrarmos esta entrevista?
Mãe Dete (Yalassé Hildeth Roda) ao meio. Acervo Lavadeira
Festa da Lavadeira há algum tempo saiu da “zona de conforto”, é identificada pelo poder econômico como “não grata”, o que traz muitas dificuldades para sua realização, tanto em relação aos patrocínios privados, como na divulgação pela imprensa oficial. Contudo, o reconhecimento do público e o sentimento de pertencimento adquirido se contrapõem com este desafio. Todo ano é um novo jogo, estamos avançando, e é certo que a resistência, a rebeldia e o sentimento público de justiça que se incorporaram definitivamente à história da Festa da Lavadeira a torna praticamente invencível. Do chão ao palco, do palco ao chão, com carro de som ou no grito, nossa cultura se impõe no dia 01 de maio. 
 
Eduardo Melo assim se define: “Ex poeta, ex artista plástico, ainda produtor cultural e quase livre de tudo”. Eduardo é o idealizador da Festa da Lavadeira e atua como produtor do evento desde 1987.


Conheça a Festa da Lavadeira:
Site oficial: www.festadalavadeira.com.br
Blog: www.festadalavadeira.blogspot.com





GALERIA – APRESENTAÇÕES NA FESTA DA LAVADEIRA:


Grupo Fethxá - Índios da Tribo Fulni-ô. Acervo Lavadeira

Grupo Fethxá - Índios da Tribo Fulni-ô. Acervo Lavadeira.

Mestre Ferrugem. Acervo Lavadeira

Côco Tebei de Tacaratu-PE. Acervo Lavadeira.

Selma do Côco. Acervo Lavadeira.

A Burra Calu do Maracatu Leão Vencedor de Carpina. Acervo Lavadeira.

 

A NORMALIDADE DA ANIMALIZAÇÃO NA “REPÚBLICA DOS DELFINS E DOS BOLSONAROS”


 
Na TV, Delfim Netto chama domésticas de animal



Pensa que eu sou um caboclo tolo boboca
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu
Penso dispenso a mula da sua ótica
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica [...]

(Tom Zé . Esteticar (Estética do Plágio), do álbum “Com defeito de fabricação”)



 Por: Daniela Galdino

Estava eu em casa, “bem na minha”, produzindo um texto acadêmico relacionado com a minha pesquisa do Doutorado, quando resolvi fazer uma auto-concessão e fui espairecer a mente numa navegação cronometrada. Tão logo acessei a internet, qual não foi a minha surpresa ao me deparar com esta notícia: “Delfim Netto pede desculpas às empregadas domésticas”. Logo pensei: lá vem polêmica. Geralmente eu não olvido em participar de polêmicas e dali a pouco já estava lendo o texto que acompanhava a manchete (desses textos que intencionam fornecer pílulas do noticiário, sem maiores aprofundamentos). Comecei a investigar o tema, precisava comprovar o que Delfim Netto – esse highlander da política brasileira – havia afirmado (no dia 04 de abril deste ano, num programa televisivo) sobre as empregadas domésticas: "quem teve este animal, teve; quem não teve nunca mais vai ter".

Eu precisava confirmar, não porque duvidei da capacidade “delficínica” de proferir tamanha grosseria, mas sim, porque naquele momento eu já intentava escrever a respeito. Felizmente, sem maiores dificuldades, encontrei, na página da organização “Doméstica Legal”, um vídeo em que o highlander Delfim realmente faz essa esdrúxula afirmação. O contexto: o economista tentava, a partir dessa infeliz comparação, dissertar sobre a mobilidade social no Brasil, assim, para ele, a empregada doméstica seria uma espécie em extinção. Pronto, não deu outra: o meu recreio se converteu em desvio de propósito. E a comichão da escrita começou a se manifestar. Com a indignação acionada, eu não teria outra saída: ou escrevia a respeito ou carregaria um incômodo. Cedi à reflexão e aqui estou para mais um debate.

Para começar, quero lembrar que Delfim acumula diversos títulos de ex, todos eles muito bem conectados com a historicidade da moderna política brasileira. Apenas para rememorar, Delfim Netto: ex-mentor da política econômica dos governos militares de Costa e Silva, Médici e Figueredo, ex-Secretário da Fazenda de São Paulo na década de 60, ex-Ministro da Fazenda de Costa e Silva, ex-embaixador brasileiro na França durante o governo de Ernesto Geisel. Delfim também é  ex-acusado de falsificação dos índices inflacionais de 1973, ex-ministro da Agricultura e ex-Ministro do Planejamento no governo de Figueiredo, e ex-negociador da dívida externa com o FMI nos anos 80. O currículo não se esgota ai: Delfim, ex-deputado constituinte (1986), ex-Deputado Federal pelo PDS, PPR, PPB, PP – o que ao fim e ao cabo dá no mesmo. Bem sabemos dos efeitos de tais contribuições políticas e econômicas... Basta dizer que o “milagre brasileiro” foi um grande embuste e que o famigerado “bolo” da riqueza nacional não foi dividido com as classes populares. Obviamente não estou tratando a questão como um efeito de passe de mágica, falo mesmo dos efeitos desastrosos a médio e longo prazo, muitos dos quais ainda nos são caros.

Por essa “súmula curricular” já se percebe que a prosa de Delfim historicamente não se conecta a um discurso que defenda as classes populares. Daí ser relevante informar que o famoso economista não pediu desculpas por espontânea vontade. Ele foi obrigado pela justiça a fazer isso, a partir de denúncia apresentada pelo Instituto Doméstica Legal – o mesmo que veicula o vídeo supracitado. Tanto é que houve a necessidade de que o pedido de desculpas fosse redigido e registrado em cartório. Ou seja, o erro só foi reconhecido a partir da força de uma ação judicial, fora isso, talvez passasse “batido”, após mais uma polêmica que ganharia espaço, sobretudo, nas redes sociais.

Observemos o conteúdo de algumas dessas polêmicas. Alguém já se esqueceu da intensa campanha difamatória, via internet, que recaiu sobre os migrantes nordestinos, após as eleições presidenciais de 2010? Sob o título de “afogue um nordestino e faça o bem a São Paulo” o absurdo tomou proporções inimagináveis e chegou ao ápice com a imensa ignorância daquela pseudo-estudante de Direito, que foi demitida do escritório de advocacia onde estagiava por veicular conteúdo xenofóbico via twitter. Somado a isso temos os vários ataques a homossexuais na avenida paulista, como ação de jovens autodeclarados skin heads (ou não). Depois passamos a saber das ameaças e perseguições empreendidas contra o Deputado Federal Jean Willys (PSOL-RJ), justamente pela sua defesa, dentre outros pontos, da legalidade da união homoafetiva estável. E tem também a pérola maior do deputado Jair Bolsonaro – veiculada pela TV – em ataque à cantora Preta Gil: numa mesma fala ele conseguiu ser racista e homofóbico. Em termos musicais eu não simpatizo com Preta Gil, o que, obviamente, não me faz deixar de reconhecer que ela foi alvo de discriminação racial e de gênero naquele momento.

Enfim, a lista poderia ser mais extensa. Estou apenas rememorando os acontecimentos que ganharam maior visibilidade. Isso não significa dizer que faço referência a fatos isolados. Ao contrário, acho mesmo que a “república dos Bolsonaros” é mais extensa do que imagina a nossa vã filosofia. Isso, pra mim, é uma grande infelicidade. Por outro lado, a identificação dessa “república dos Bolsonaros” faz cair por terra, por exemplo, o tal “mito da democracia racial brasileira”, a crença compartilhada de que vivemos numa sociedade sem conflitos raciais profundos. Se é possível identificar essa “república” sustentada no racismo, na intolerância, na xenofobia, na discriminação social e de gênero, justificam-se as ações de combate a essas formas de inferiorização. As principais dessas ações são as políticas afirmativas no ensino superior e no serviço público, a Lei Maria da Penha, a criminalização do racismo, o reconhecimento da legalidade da união homoafetiva – que, por sinal, foi reconhecida nesta semana pelo STF. Sou favorável a todas elas e acredito mesmo que tais medidas não são meras invenções dos movimentos sociais ou de intelectuais de plantão.

Mas voltemos à animalização das empregadas domésticas. Esse tema é espinhoso, justamente porque a imagem subalternizada das domésticas repousa no imaginário brasileiro e tem sua gênese no período colonial. A remasterização dessa imagem flutua nas telenovelas, para nos atermos a um produto que foi sendo “consumido” em larga escala pelas famílias brasileiras. A animalização comporta a desproporção risível, a caricatura, o bestialismo, a conjugação de estereótipos (a esse respeito recomendo o excelente documentário de Joel Zito Araújo, “A negação do Brasil”). A repetição dessas estratégias gera um regime de representação que termina por se associar a certos sujeitos, chegando quase a se constituir como única forma possível de se imaginar pessoas ou grupos sociais. Ai envereda-se pelo caminho da naturalização, da normalização. Essa fixação implica em que os animalizados não ultrapassem o “seu limite”. Pois é, ao afirmar que a empregada doméstica é animal, Delfim Netto, “sem querer querendo”, acionou toda essa significação.

            Já ouvi dizer que hoje em dia, no Brasil, está cada vez mais difícil fazer humor, justamente porque a “onda do politicamente correto” impõe restrições aos profissionais do riso. Não se trata de um politicamentecorretismo. É preciso reconhecer que estamos num momento em que os grupos historicamente subalternizados entram na arena para disputar legitimidade com maior intensidade – e isso tem impulsionado medidas legais que visam a combater as desigualdades e formas de inferiorização. A “república dos Bolsonaros” vai sendo implodida num processo de efetivação de conquistas sociais. No entanto, por se tratar de um conjunto de crenças compartilhadas ao longo da historicidade brasileira, os alicerces dessa sociedade bolsonaristica, delfinistica se converteram na mais lídima normalidade cotidiana, o que justifica a lógica do “sem querer querendo”. O que nos resta: expor a tensionalidade das relações sociais e desvelar as práticas discursivas discriminatórias. Desconfiemos da normalidade.

Preciso concluir dizendo que uma pesquisadora/um pesquisador não deve se furtar aos problemas atuais. A atividade acadêmica não deve simbolizar o isolamento numa redoma, em que os olhos do pesquisador se voltam apenas para o que lhe é imediato: o seu tema de pesquisa. Assim, seguirei adotando a estratégia da auto-concessão e nos meus recreios levarei a criticidade para passear, para ficar solta no mundo... Certamente ela vai se deparar com situações cotidianas que irão inflar a indignação (sua companheira), provocar a sensibilidade (sua prima-irmã). E as três, juntas, moverão a vontade de dizer, de escrever, de socializar os meus exercícios de enveredar por terrenos polêmicos. Nem peço desculpas a minha orientadora, ela também concorda que um bom pesquisador se faz com criticidade, indignação e sensibilidade.


Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia

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