Na TV, Delfim Netto chama domésticas de animal
Pensa que eu sou um caboclo tolo boboca
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu
Penso dispenso a mula da sua ótica
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica [...]
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica [...]
(Tom Zé . Esteticar (Estética do Plágio), do álbum “Com defeito de fabricação”)
Por: Daniela Galdino
Estava eu em casa, “bem na minha”, produzindo um texto acadêmico relacionado com a minha pesquisa do Doutorado, quando resolvi fazer uma auto-concessão e fui espairecer a mente numa navegação cronometrada. Tão logo acessei a internet, qual não foi a minha surpresa ao me deparar com esta notícia: “Delfim Netto pede desculpas às empregadas domésticas”. Logo pensei: lá vem polêmica. Geralmente eu não olvido em participar de polêmicas e dali a pouco já estava lendo o texto que acompanhava a manchete (desses textos que intencionam fornecer pílulas do noticiário, sem maiores aprofundamentos). Comecei a investigar o tema, precisava comprovar o que Delfim Netto – esse highlander da política brasileira – havia afirmado (no dia 04 de abril deste ano, num programa televisivo) sobre as empregadas domésticas: "quem teve este animal, teve; quem não teve nunca mais vai ter".
Eu precisava confirmar, não porque duvidei da capacidade “delficínica” de proferir tamanha grosseria, mas sim, porque naquele momento eu já intentava escrever a respeito. Felizmente, sem maiores dificuldades, encontrei, na página da organização “Doméstica Legal”, um vídeo em que o highlander Delfim realmente faz essa esdrúxula afirmação. O contexto: o economista tentava, a partir dessa infeliz comparação, dissertar sobre a mobilidade social no Brasil, assim, para ele, a empregada doméstica seria uma espécie em extinção. Pronto , não deu outra: o meu recreio se converteu em desvio de propósito. E a comichão da escrita começou a se manifestar. Com a indignação acionada, eu não teria outra saída: ou escrevia a respeito ou carregaria um incômodo. Cedi à reflexão e aqui estou para mais um debate.
Para começar, quero lembrar que Delfim acumula diversos títulos de ex, todos eles muito bem conectados com a historicidade da moderna política brasileira. Apenas para rememorar, Delfim Netto: ex-mentor da política econômica dos governos militares de Costa e Silva, Médici e Figueredo, ex-Secretário da Fazenda de São Paulo na década de 60, ex-Ministro da Fazenda de Costa e Silva, ex-embaixador brasileiro na França durante o governo de Ernesto Geisel. Delfim também é ex-acusado de falsificação dos índices inflacionais de 1973, ex-ministro da Agricultura e ex-Ministro do Planejamento no governo de Figueiredo, e ex-negociador da dívida externa com o FMI nos anos 80. O currículo não se esgota ai: Delfim, ex-deputado constituinte (1986), ex-Deputado Federal pelo PDS, PPR, PPB, PP – o que ao fim e ao cabo dá no mesmo. Bem sabemos dos efeitos de tais contribuições políticas e econômicas... Basta dizer que o “milagre brasileiro” foi um grande embuste e que o famigerado “bolo” da riqueza nacional não foi dividido com as classes populares. Obviamente não estou tratando a questão como um efeito de passe de mágica, falo mesmo dos efeitos desastrosos a médio e longo prazo, muitos dos quais ainda nos são caros.
Por essa “súmula curricular” já se percebe que a prosa de Delfim historicamente não se conecta a um discurso que defenda as classes populares. Daí ser relevante informar que o famoso economista não pediu desculpas por espontânea vontade. Ele foi obrigado pela justiça a fazer isso, a partir de denúncia apresentada pelo Instituto Doméstica Legal – o mesmo que veicula o vídeo supracitado. Tanto é que houve a necessidade de que o pedido de desculpas fosse redigido e registrado em cartório. Ou seja, o erro só foi reconhecido a partir da força de uma ação judicial, fora isso, talvez passasse “batido”, após mais uma polêmica que ganharia espaço, sobretudo, nas redes sociais.
Observemos o conteúdo de algumas dessas polêmicas. Alguém já se esqueceu da intensa campanha difamatória, via internet, que recaiu sobre os migrantes nordestinos, após as eleições presidenciais de 2010? Sob o título de “afogue um nordestino e faça o bem a São Paulo” o absurdo tomou proporções inimagináveis e chegou ao ápice com a imensa ignorância daquela pseudo-estudante de Direito, que foi demitida do escritório de advocacia onde estagiava por veicular conteúdo xenofóbico via twitter. Somado a isso temos os vários ataques a homossexuais na avenida paulista, como ação de jovens autodeclarados skin heads (ou não). Depois passamos a saber das ameaças e perseguições empreendidas contra o Deputado Federal Jean Willys (PSOL-RJ), justamente pela sua defesa, dentre outros pontos, da legalidade da união homoafetiva estável. E tem também a pérola maior do deputado Jair Bolsonaro – veiculada pela TV – em ataque à cantora Preta Gil: numa mesma fala ele conseguiu ser racista e homofóbico. Em termos musicais eu não simpatizo com Preta Gil, o que, obviamente, não me faz deixar de reconhecer que ela foi alvo de discriminação racial e de gênero naquele momento.
Enfim, a lista poderia ser mais extensa. Estou apenas rememorando os acontecimentos que ganharam maior visibilidade. Isso não significa dizer que faço referência a fatos isolados. Ao contrário, acho mesmo que a “república dos Bolsonaros” é mais extensa do que imagina a nossa vã filosofia. Isso, pra mim, é uma grande infelicidade. Por outro lado, a identificação dessa “república dos Bolsonaros” faz cair por terra, por exemplo, o tal “mito da democracia racial brasileira”, a crença compartilhada de que vivemos numa sociedade sem conflitos raciais profundos. Se é possível identificar essa “república” sustentada no racismo, na intolerância, na xenofobia, na discriminação social e de gênero, justificam-se as ações de combate a essas formas de inferiorização. As principais dessas ações são as políticas afirmativas no ensino superior e no serviço público, a Lei Maria da Penha, a criminalização do racismo, o reconhecimento da legalidade da união homoafetiva – que, por sinal, foi reconhecida nesta semana pelo STF. Sou favorável a todas elas e acredito mesmo que tais medidas não são meras invenções dos movimentos sociais ou de intelectuais de plantão.
Mas voltemos à animalização das empregadas domésticas. Esse tema é espinhoso, justamente porque a imagem subalternizada das domésticas repousa no imaginário brasileiro e tem sua gênese no período colonial. A remasterização dessa imagem flutua nas telenovelas, para nos atermos a um produto que foi sendo “consumido” em larga escala pelas famílias brasileiras. A animalização comporta a desproporção risível, a caricatura, o bestialismo, a conjugação de estereótipos (a esse respeito recomendo o excelente documentário de Joel Zito Araújo, “A negação do Brasil”). A repetição dessas estratégias gera um regime de representação que termina por se associar a certos sujeitos, chegando quase a se constituir como única forma possível de se imaginar pessoas ou grupos sociais. Ai envereda-se pelo caminho da naturalização, da normalização. Essa fixação implica em que os animalizados não ultrapassem o “seu limite”. Pois é, ao afirmar que a empregada doméstica é animal, Delfim Netto, “sem querer querendo”, acionou toda essa significação.
Já ouvi dizer que hoje em dia, no Brasil, está cada vez mais difícil fazer humor, justamente porque a “onda do politicamente correto” impõe restrições aos profissionais do riso. Não se trata de um politicamentecorretismo. É preciso reconhecer que estamos num momento em que os grupos historicamente subalternizados entram na arena para disputar legitimidade com maior intensidade – e isso tem impulsionado medidas legais que visam a combater as desigualdades e formas de inferiorização. A “república dos Bolsonaros” vai sendo implodida num processo de efetivação de conquistas sociais. No entanto, por se tratar de um conjunto de crenças compartilhadas ao longo da historicidade brasileira, os alicerces dessa sociedade bolsonaristica, delfinistica se converteram na mais lídima normalidade cotidiana, o que justifica a lógica do “sem querer querendo”. O que nos resta: expor a tensionalidade das relações sociais e desvelar as práticas discursivas discriminatórias. Desconfiemos da normalidade.
Preciso concluir dizendo que uma pesquisadora/um pesquisador não deve se furtar aos problemas atuais. A atividade acadêmica não deve simbolizar o isolamento numa redoma, em que os olhos do pesquisador se voltam apenas para o que lhe é imediato: o seu tema de pesquisa. Assim, seguirei adotando a estratégia da auto-concessão e nos meus recreios levarei a criticidade para passear, para ficar solta no mundo... Certamente ela vai se deparar com situações cotidianas que irão inflar a indignação (sua companheira), provocar a sensibilidade (sua prima-irmã). E as três, juntas, moverão a vontade de dizer, de escrever, de socializar os meus exercícios de enveredar por terrenos polêmicos. Nem peço desculpas a minha orientadora, ela também concorda que um bom pesquisador se faz com criticidade, indignação e sensibilidade.
Daniela Galdino. Professora da UNEB, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO/UFBA, Professora da Rede Estadual da Bahia
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