Saturday, May 21, 2011

GUEST POST: QUEREM ALGEMAR A LÍNGUA TAMBÉM

Na terça recebi o email de uma doutoranda em Linguística Aplicada na UFRN recomendando o vídeo que logo foi transmitido pra todo o Brasil, o da professora Amanda Gurgel, que falou corajosamente, explicando a greve dos professores no RN, para a Assembleia Legislativa. Se você ainda não viu, veja, porque o discurso da Amanda é excelente e merece toda a repercussão que está tendo (li que amanhã ela vai aparecer no Faustão). Ironicamente (porque o discurso da Amanda, uma sindicalista, uma mulher de esquerda, vai contra os interesses da direita), no mesmo dia a Globo começou um bafão sobre o livro didático do MEC.
Na quarta, uma leitora muito carinhosa, a Angélica, me enviou um longo (e gostoso) email. Pedi autorização a ela para transformar parte dele num guest post. Angélica tem 26 anos, é advogada, mora em Belo Horizonte, e vem de uma família que ela define como de grandes mulheres. Sua mãe, por exemplo, além de feminista, é técnica em edificações e há 41 anos trabalha em obras de construção civil por todos os cantos do Brasil. O email da Angélica é de indignação -- tanta indignação quanto da Amanda.

Sou uma mulher bem sucedida de classe média e não consigo compreender posicionamentos políticos que só observam aqueles agraciados pelas benéfices das condições materiais. Me sinto mal e não me envolvo numa discussão quando percebo que o ouvinte é surdo para o debate da consciência em prol da inclusão e da melhora social que alcance o maior número possível de indivíduos. Não posso compreender mentes que consideram políticas públicas como medidas “eleitoreiras e populistas, coisas para os politicamente corretos”, ou aqueles que acreditam que o pobre agora tem mais filhos para conseguir mais um Bolsa Família. É deplorável. E eu, no topo da arrogância do meu conhecimento, negligencio a discussão e permito que a boçalidade permaneça no meu ambiente de convívio diário (como no trabalho, por exemplo).
Sofro. Não posso compreender uma mente reacionária. Não compreendo a Globo. Não consigo pensar em nenhuma justificativa para a mente de uma pessoa formadora de opinião, que utiliza da inderrotável força da mídia para disseminar a barbárie da ignorância. Terça pela manhã, tomava café em um hotel que tinha uma televisão ligada na Globo. Foi o suficiente para embrulhar meu estômago. Os “brilhantes intelectuais” que apresentam o jornal expunham uma matéria que já começou com a manchete: “o MEC dessa vez passou dos limites! Aprovou um livro de língua portuguesa que não tem certo ou errado, mas coloca como adequada ou inadequada a forma de expressar o idioma! OOOOHHH!”.
A situação só piorou. Depois da chamada asquerosa, a belíssima repórter, com cara de “muito indignada”, continuou balbuciando asneiras. “O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (dando ênfase ao órgão) está a favor da queda de qualidade no ensino. Alexandre Garcia!” (veja o vídeo). Nesse momento eu quis ir embora. Considero o Alexandre Garcia um reacionário do mal, um privilegiador das classes altas. Mas permaneci para me embriagar de asco. Ele, sem surpreender, foi soltando afirmações grotescas de uma ignorância profunda, dizendo que agora estamos nivelando a educação por baixo, que ninguém mais vai aprender como se fala a língua portuguesa, que o politicamente correto é o fim, que nada presta neste país.
Meu deus, Lola. Meu deus do céu. Quanta ignorância. Cheguei ao trabalho querendo acender uma vela para a Santa Ignorância Padroeira dos Reacionários. Eu saí enjoada do café, com um sentimento de tamanha revolta com essa droga que é a Globo, com essa mentalidade mesquinha da classe média que lê Veja. Senti que eu precisava dizer algo a esse jornal ruim, a esse jornalista ruim e à Globo.
Queria dizer primeiramente que eu, que nasci em 1985, cresci assistindo a bons programas infantis na televisão, como Rá Tim Bum, Castelo Rá Tim Bum, Xis Tudo, Glub Glub. No intervalo de todos esses programas, passava um programinha rápido chamado Nossa Língua Portuguesa, apresentado pelo famoso Professor Pasquale, que eu e as minhas irmãs adorávamos. Não tínhamos senso crítico suficiente para saber a corrente de ensino da língua que ele seguia ou se era uma forma ruim de ensinar, mas o programa era rápido, passava no intervalo dos programas infantis e sempre utilizava nos exemplos trechos de músicas brasileiras ou de livros conhecidos. Algo que sempre chamou a nossa atenção (a minha e das minhas irmãs) era que o Professor sempre dizia que não havia problema em falar dessa ou daquela maneira, que no nordeste há expressões que não são utilizadas no sudeste e vice-versa. Ele afirmava que o que tínhamos que fazer era aceitar a todos, com a forma de expressão que tiverem, mas que deveríamos saber sempre a linguagem como ela é, com suas teorias complexas todas, como ela nasceu, para que isso fosse um instrumento para ser usado, uma emancipação, visto que a língua é a maior expressão da cultura, é um liame objetivo que nos une e que, dessa forma, deve ser observada de forma dinâmica, para acompanharmos o reflexo da língua no povo e o reflexo do povo na língua. Ele utilizava, dentre vários exemplos, as adaptações de expressões em língua estrangeira que iam sendo incorporadas. Eu internalizei isso.
A empregada de casa falava tudo “errado”, ela tinha vindo da roça, não concordava plurais ou sujeitos e verbos. Mas ela foi essencial na construção do meu caráter. O lugar que os ensinamentos dela preencheram na minha pessoa, nenhum professor erudito da universidade alcançou tão profundamente. Eu cresci num ambiente que fazia questão de ver brilho em todos. Eu e as minhas irmãs estudamos 100% em escolas públicas, do ensino fundamental às universidades. Comemos merenda, tivemos colegas sem família, brincamos com os filhos de empregadas domésticas, que eram maioria na nossa escola. Ainda assim, o ensino que nos foi dado foi suficiente para fazermos vestibulares em escolas federais e passarmos de primeira. Aprendemos a gramática "correta", sabendo que a linguagem coloquial prevalecia.
Até agora não tenho certeza por que motivos Alexandre Garcia, no meio do assunto do livro de português, teria colocado a opinião estúpida de que o presidente do FMI não seria algemado no Brasil. Ahm, seria para dizer o tanto que ele acha que o país está ruim e o tanto que ele acha que “lá fora é que é bom”? Quanta ignorância. Assistimos a crises longas e graves em países ricos e antigos, percebemos que no Brasil estamos à frente em diversas correntes de pensamento. Mas essa vantagem intelectual é tomada pela sagaz opinião reacionária como “chiliques do politicamente correto” e o excesso de zelo da “galerinha dos direitos humanos”.
Alexandre, meu amigo, saia da sua novela de Manoel Carlos, onde todo mundo é lindo, limpo, mora no Leblon e viaja para Paris no final do ano. Aqui, onde as pessoas reais existem e são maioria (desprivilegiada, claro), fala-se o português coloquial. Aqui onde residem as crianças da escola pública, onde o Estado não chega com tanta eficácia quanto para você, com suas ruas asfaltadas e seus vinhos caros do Pão de Açúcar, há um sentimento fomentado de raiva e desilusão quanto a essa exclusão. Aqui, no universo das pessoas que se alimentam de merenda escolar (quando tem), o Estado não fornece condições dignas para que estas se esquivem da triste realidade de quem sofre necessidades primárias. A inclusão dessas pessoas na língua portuguesa seria até um ato de dignidade. Mas para você, pouco importa, elas vão sofrer a negligência do Estado e, mais tarde, serão algemadas, espancadas, julgadas e condenadas ao fogo do inferno. Enquanto isso, você estará no paraíso com a Ana Maria Braga, o Rafinha Bastos, o Bolsonaro e todos os reacionários que aplaudem a barbárie, as galés, o horror. Vocês estarão lá suplicando pela pena de morte.
Se “lá fora” é tão bom assim, vocês não são cidadãos que fazem falta, podem ir viver com eles.
Aqui devem permanecer as pessoas que estão construindo um país mais unido, agregado, debatendo ideias de forma humana e sabendo que somos todos idênticos. Aqueles que diferenciam brasileiros de qualquer forma por preconceito e ignorância, não estão tentando fazer o todo crescer, melhorar, evoluir. Estão tentando segregar mais (vide Rafinha Bastos) para expor as cabeças dos segregados em praça pública, como Vargas fez com o bando de Lampião, para que possam aplaudir o sangue escorrer.
Para vocês eu aconselho que saiam, sim. Que vão para bem longe, para cessar o prejuízo de mentalidades desperdiçadas como estas. Não é necessário ninguém para segregar. Precisamos de pessoas para unir, fortalecer, trazer respostas. Enquanto vocês difundem apenas a crítica por capricho, o preconceito e a manutenção do privilégio social, não precisam ficar. Podem ir embora para onde se defendem as algemas, e deixem o Brasil para aqueles que quando falam em público, quando representam o povo, querem ouvir o que o povo tem a dizer e a reclamar, mesmo que em português inadequado.

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