“PELO MUNDO ADENTRO”: EXPERIÊNCIAS NA CROÁCIA
Por Claudia Albuquerque de Lima*
“O nomadismo do pensamento é isso, viagem na intensidade, numa Babel que só o sonho concebe e o despertar interrompe para que se renove a sensação de um novo começo de mundo.”
(Francisco Elinaldo Teixeira, 2008)
Nos primeiros anos de 1990 o Brasil vivia um cenário político marcado pela polarização Collor X Lula. Esse aspecto marcou a minha geração, que foi conduzida pelo compasso das bandas de pop e rock, tais bandas debochavam da sociedade, de tudo e de todos. Em pleno boom da era da informação eu fazia Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, em Recife, e era uma jovem que queria fazer parte do processo de mudança do mundo e da sua sociedade. Naquele momento analisávamos em sala de aula e nos bares do entorno o prenúncio de uma nova era televisiva e discutíamos temas, como a Guerra do Golfo e os "Caras Pintadas", mobilizados por uma forte campanha de mídia clamando pelo impeachment do presidente Fernando Collor.
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Visto |
Nem imaginava que pouco tempo depois eu estaria vivendo de perto os conflitos de uma guerra. Em junho de 1991 inscrevi-me num curso de intercâmbio de inglês por dois meses em Brighton, na costa sul da Inglaterra, indo depois visitar parte da Europa. Lá mantive contato com uma família de croatas-sudaneses pelos quais fui convidada para conhecer a Croácia, que havia acabado de clamar independência da antiga Iugoslávia, iniciando assim uma guerra que atingiu toda a região dos Bálcãs. Este fato representava, inclusive, uma pequena parcela do colapso do Comunismo e a entrada visceral do capitalismo naquela região e no mundo, o que posteriormente foi qualificado de globalização. Naquele momento despertei para o tema do meu projeto final de curso, e por isso mergulhei a fundo para tentar traduzir ou interpretar o que acontecia naquela região e os motivos de tal batalha. O gosto pela imagem, inicialmente a videográfica e, posteriormente, a fotográfica, foi um norteador para a escolha que viria a fazer na área de conclusão do curso, o vídeo documentário Croácia: tradução de uma guerra.
Aceitei o convite e parti às vésperas do natal de 1992 para aquele estranho mundo que antes não havia escutado falar. Viajava de carro com meu ex-namorado, filho de mãe croata e pai sudanês, desde a Inglaterra até a fronteira entre a Áustria e a Eslovênia. Era noite, fazia muito frio e neblinava, estávamos com fome e cansados. Após uma grande subida pelas cordilheiras dos Alpes passamos por um túnel entre as rochas, víamos lá longe fracas luzes de pequenos casebres quase medievais, e nos deparamos com um grande galpão em aço, tudo muito iluminado e com policiais altos, loiros e fortemente armados, que nos exigiram passaportes e visto. Checaram todo o carro, acredito que em busca de contrabando, armas ou drogas. Fizeram algumas perguntas numa língua semelhante ao russo, demoraram um pouco para nos liberar. A espera foi me dando um desespero, pois a cena lembrava filmes como O Expresso da meia noite, ou outros sobre a Guerra Fria, ou mesmo de ficção científica. Diferentemente de todos os outros países por onde havíamos passado, como Alemanha e Áustria, e quase todos os outros da Europa, em viagens anteriores, onde se entrava e se saía sem perceber diferenças territoriais, agora existia uma grande, imponente e futurística fronteira. Foi aí que me dei conta de que havia entrado realmente num outro mundo, ali havia uma enorme barreira física e cultural entre a Europa ocidental e a oriental ou a capitalista e a comunista (na época). Depois de liberados, paramos numa taverna onde comemos algo e vimos muitas prostitutas lindas, em seus casacos de pele, e bêbadas (o consumo de álcool e drogas era alto nesta região). Depois disso chegamos finalmente à Zagreb, capital da Croácia, por volta de meia noite, e fomos recebidos por um simpático casal de idosos Teta (Tia) Kata e Stanko, que nos aguardavam com uma sopa (juha) e um pão (kruh) caseiro, alimentos típicos da região.
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Vistos Croácia e Egito |
A Croácia é um país de língua e cultura eslava, palco de grandes revoluções, um povo de religião católica que convive com antigos e atuais inimigos, muitas vezes muito próximos dentro de casa, pois é comum casamentos entre croatas, bósnios, sérvios, italianos, russos e alemães. É um caldeirão de etnias, religiões e línguas. A família que me abrigou era metade católica e metade muçulmana (sudaneses e bósnios) e adotava características de ambas as culturas numa miscigenação ainda mais ampliada, pois moravam a um bom tempo na Inglaterra. Numa mesma conversa ouvia-se inglês, croata e árabe, e em alguns raros momentos também o português.
Auxiliada por todos, principalmente pelos carismáticos croatas, que me receberam e me concederam grandes relatos, a exemplo de um trio de irmãos adolescentes refugiados da belíssima região de Dubrovnik, localizada no extremo sul da Dalmácia, desenvolvi meu primeiro vídeo retratando, através do olhar de estrangeira, o gelado e violento “pós-guerra” Croata. E desta forma pude relatar como os encantos da liberdade contrastavam com os genocídios desloucados, destruição de lares e monumentos históricos, estupros, desemprego, corrupção, crise econômica local. A população que já havia sofrido com outros conflitos de ordem mundial, como a primeira e a segunda guerras, reclamava de fome ocasionada pela crise no abastecimento de alimentos, num contexto em que até soldados da ONU também eram acusados de desviar alimentos doados pela ajuda humanitária. De volta ao Brasil, finalizei meu vídeo, que foi bem recebido, e assim, em junho de 1993, me formei jornalista e não tive tempo para divulgar tal façanha, pois viajei novamente, só que dessa vez para viver na Inglaterra e Croácia por dois anos.
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Claudia Albuquerque |
Deixei minha casa para me estabelecer como brasileira em terras desconhecidas. Já vivendo na República Hervatska, nome do país em croata, vivenciei as transformações e dificuldades daquele lugar onde se via, mesmo com a burocracia imperante do antigo regime comunista, uma mudança na organização econômica mundial que provocava um aumento da capacidade de produzir um discurso contendo uma superabundância dos signos das culturas de consumo e de fetiche. Esta não seria apenas uma nova fase do capitalismo, mas uma nova forma de ver a sociedade e seus bens culturais e simbólicos. A mídia auxiliava no desenfreado consumo de peças e modelos de vida européia. As vitrines das lojas do centro da capital expunham produtos importados, principalmente da Itália, e deixavam essa nova realidade à mostra. Os preços indicavam valores absurdos (em dinar croata e em marco alemão) para o padrão do país, cuja maioria da população não poderia naquele momento alcançar, exclusiva a uns poucos que se fartaram com as regalias do sistema, no final não tão igualitário assim, e àqueles que retornavam de outros países, principalmente da Alemanha e da Itália.
Em Zagreb presenciei o contraste de uma cidade cosmopolita: cafés charmosos e prédios suntuosos - do período do Império Austro-Húngaro - dedicados à arte e à cultura; ao mesmo tempo, cenas de terceiro mundo: pedintes e mutilados de guerra pelas ruas em praças e em feiras públicas. Carros da Organização das Nações Unidas (ONU) circulavam a todo instante, pois a cidade era base para as forças armadas na luta contra os Sérvios. Tais fatos nos atentavam para o não esquecimento do momento em que nos situávamos, as carências, impotências frente a tudo, e principalmente à guerra que ainda imperava. A todo instante chegavam notícias de bombardeios no país. Não via a hora das sirenes acionarem para que descêssemos ao abrigo anti-bombardeio (Slonish), do prédio onde morava. No período em que fiquei lá isso não foi necessário, só o visitei uma ou duas vezes para fazer a filmagem do meu vídeo. Contatos mais próximos com o conflito aconteceram duas vezes: uma quando um enorme estrondo assustou toda a capital, pois parte do quartel onde eram mantidos arsenais de guerra explodiu, não ferindo ninguém; e outra após uma viagem (para renovar meu visto) à cidade de Lubjana, capital da Slovênia (primeiro país a se libertar dos domínios da antiga Iugoslávia), ao longo da estrada podíamos ver casas seculares bombardeadas. Nesta visita também conheci a cidade de Pula, que tem um coliseu (arena) semelhante ao de Roma. No caminho de volta fomos avisados na fronteira de que deveríamos pegar um caminho alternativo, pois a estrada da Croácia estava sofrendo ataques Sérvios.
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Coliseu na cidade de Pula |
Aquém destes problemas relatados tentei viver aos moldes da vida croata, pois não tinha contato com ninguém que falasse português, conseguia me virar falando em inglês e arranhando a língua local. Lá procurei informações para cursar Mestrado ou fazer um curso na minha área. No entanto, deparei-me com o alto custo de financiamento destes, e decidi fazer um curso de língua croata e algumas poucas atividades relacionadas com comunicação. É bom lembrar que nestes países a educação e a saúde são princípios básicos do estado. Por isso, existem boas escolas, universidades, hospitais e postos de saúde, porém os estrangeiros às vezes não têm fácil acesso. No Hospital Geral de Zagreb, por exemplo, a prioridade era dada aos pacientes dos campos de batalha e para doentes graves, quando tive necessidade precisei, portanto, procurar um posto de saúde, onde recebi um bom tratamento e acompanhamento.
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Passagem para Zagreb |
Em busca do que fazer inscrevi-me para uma seleção de prestação de serviços na ONU, porém não fui selecionada. Passei então a auxiliar na montagem e divulgação de uma loja de roupas feminina. No mais, passeava, principalmente no verão escaldante, pelo grande Parque Florestal e pelo estádio de futebol, bem próximos de minha casa, e pelas ruas de Zagreb, especialmente pela bela praça central Jelacica (Praça Ban Josip Jelačić- herói nacional), de onde partem todos os trens elétricos urbanos (tranvais) e os ônibus (autobus). O país tem uma paisagem moldada conforme a estação da época, tudo rigorosamente como aprendemos nos livros, o centro é entrecortado por ruas largas imensas e às vezes ruelas com casas de construções seculares, praças agradáveis, prédios frios, cinzas, quadrados do antigo regime comunista, que exalavam fumaça pelas chaminés, deixando a cidade mais cinza e com um forte cheiro de lenha queimada em contraste com construções de prédios modernos. Os encontros eram sempre regados a muita cachaça (rákia), fiambre, café turco e muitas gargalhadas, em casas pequenas, com poucos cômodos. Ás vezes passava os finais de semana num pequeno sítio de Teta Kata e Stanko, onde se plantavam amoras e maçãs, destas últimas faziam as tradicionais tortas e cachaças (rákia) artesanais no alambique caseiro da propriedade. Também fiz algumas incursões pelo Mar Adriático, este considerado um dos principais motivos pelas constantes batalhas na região, pois é porto de passagem aos diversos países da região. A deslumbrante estrada nos levava até Rijeka e Split, duas das mais bonitas praias da Croácia, com ares de costa francesa com muitos bares, restaurantes e casas luxuosas, de propriedade principalmente de estrangeiros, costumávamos ficar na casa de um casal de amigos da família (ela sérvia- Teta Lubtza, e ele croata).
A capital apresentava uma impressionante força cultural, ora tradicional, a exemplo das músicas, danças e trajes típicos, ora moderna, como as boates eletrônicas e o cine-clubismo, com um circuito semanal alternativo no qual existia a prática do debate pós-exibição de filmes com algum especialista e depois a conversa informal no café da galeria, com uma dimensão formativa de especial relevo para quem, como eu, buscava um aprofundamento em história, estética e técnica audiovisual ou discurso político-social.
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Gruta eslovena |
Parti às vésperas do natal de 1994 para não mais retornar àquele país, desta vez olhando do alto do avião, deixando para trás um lugar que estava se reerguendo de mais um de seus múltiplos conflitos, acredito que hoje o país vive uma outra história. Desta experiência restou-me uma lição: a de que o ser humano é mutável e capaz de ser multicultural, o apego ao enraizamento e ao tradicionalismo servem para nos localizar enquanto indivíduos e comunidades socialmente organizadas, mas que estas a qualquer instante podem se oxigenar, se misturar em intercâmbios que estão além das políticas e das fronteiras geográficas. Depois desta temporada de dois anos entre a Inglaterra e a Croácia voltei ao Brasil no ano de 1995, porém, antes do retorno fiz uma excursão como turista ao Egito. Bem, mas esta é uma outra história...
E agora num eixo de deslocamento, ao longe daquelas terras, que não passam de vestígios de minhas memórias, e também daquela que um dia foi a minha primeira residência (Recife), poder visualizar e assim melhor entender as diversas culturas, inclusive, as raízes do Nordeste, e por que não agora no Recôncavo da Bahia, a raiz do Brasil. Sendo efetivamente recifense, tornar-me, afinal, nativa do Nordeste e montar definitivamente minha casa, juntamente com meu marido e filhos, em Santo Antônio de Jesus (Bahia), vivendo pequenos conflitos inerentes ao cotidiano.
Cláudia Albuquerque de Lima é Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Políticas Culturais Regionais. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia, lotada no Campus V, onde atua no Colegiado de Letras e desenvolve pesquisas na área de Narrativas.
E-mail: claudiaalima1969@gmail.com
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