Wednesday, May 4, 2011

CLÁSSICOS DUVIDOSOS: I SPIT ON YOUR GRAVE / Põe duvidoso nisso!

No remake de 2010, a vingança é mais sangrenta

I Spit on Your Grave (literalmente, Cuspo na sua Cova) é um filme mais famoso pelo seu título que por qualquer outra coisa. Pra você ter uma ideia, ouvi falar do troço bem no começo da década de 80, quando as locadoras de vídeo engatinhavam e só tinham filmes piratas (veja o trailer). Mas só vim a ver o filme alguns anos atrás, quando morava em Detroit. Foi na mesma época em que vi outro famoso exploitation, Ms. 45 (Anjo da Vingança), sobre o qual já escrevi aqui. I Spit é disparado o mais conhecido, tanto que foi refilmado no ano passado, recebendo o título de Doce Vingança (trailer aqui).
Primeiro sobre o original, que foi lançado em 78 com o infame nome de Day of the Woman (Dia da Mulher), e que só passou a fazer relativo sucesso quando foi relançado dois anos depois, já com seu título apelativo. Era uma produção pequena, independente, baratinha, trash, com atores quase anônimos (se bem que a protagonista, Camille Keaton, tem parentesco com Buster Keaton). O diretor Meir Zarchi conta que decidiu fazer o bagulho depois de auxiliar uma vítima de estupro. Mas, né, vamos admitir: nenhuma produção com esse poster tem a menor intenção de discutir um assunto. Quer mais é explorá-lo, e é por isso que esse tipo de cinema é chamado de exploitation (às vezes, sexploitation). Ele segue uma fórmula: na sua primeira metade, uma mulher jovem, bonita e independente é barbaramente estuprada e espancada por vários homens. Na segunda parte, essa mulher parte pra se vingar dos seus algozes. O público (masculino, que é o público-alvo desse tipo de filme) é encorajado a gostar de ambas as partes. O crítico de cinema Roger Ebert narra que teve a infelicidade de ver o filme num cinema em Chicago daqueles tempos, e que ficou chocado com a reação da plateia. Os homens riam, gritavam, aplaudiam ― primeiro torciam pelos estupradores, em seguida pra vítima vingativa. I Spit foi proibido em vários países por glorificar a violência contra a mulher.
Corta pro século 21. Trinta anos depois, eis que surge o remake, produzido por Zarchi. Os tempos são outros, tempos de Jogos Mortais e similares que receberam a alcunha de torture porn. Ou seja, a violência deve prevalecer sobre o sexo. Portanto, as cenas de estupro na refilmagem são muito mais curtas e suaves que no original. Já as cenas de vingança são detalhadas e sangrentas. Esse desequilíbrio entre o que a protagonista sofre e o sofrimento que ela inflige é bom e é ruim ao mesmo tempo. É bom porque não explora tanto cenas de estupro (como faz, só pra citar um caso notório, Irreversível, com nove intermináveis minutos de estupro), que são quase impossíveis de assistir para boa parte das espectadoras. É ruim porque o público pode achar que a vítima exagera na vingança, e que o que aconteceu com ela não foi tão grave, em comparação. Esse tipo de opinião lamentavelmente aparece nos fóruns de discussão do imdb. Além de montes de carinhas afirmando que se excitaram (ugh!) com as sequências de estupro e perguntando pras leitoras se a gente gostou, já que essa é, segundo eles, uma típica fantasia feminina, e que é improvável que uma moça bonita seja escritora (indagam eles: por que ela usaria a cabeça se tem um corpo legal?), eles ainda defendem os estupradores, dizendo que eles não mereceram a castração, enforcamento, afogamento por ácido, ser comido vivo por corvos etc etc que acontece com eles. Um dos comentaristas ainda diz que estupro é só sexo, e que não acharia nada de mais se quatro ou cinco mulheres o estuprassem. Outro se empatizou com a vítima e profetizou: “O tema principal é a relação do homem com a mulher. O homem quer apenas comer a mulher e descartá-la. Fez-me sentir vergonha de ser homem. Se o homem não mudar a sua postura com relação a mulher, ela o elimina”.
Algo que me chamou a atenção no original foi a independência e ausência de noção da protagonista. Ela fica numa casa sozinha no meio do nada, vários caipiras se aproximam dela, e não há nenhum traço de temor no seu rosto. Pelo jeito ela nunca ouviu falar em estupro. Não é que a moça dê trela pros rapazes, mas ela podia acordar pra realidade um pouco antes. No remake, ela sabe muito bem o risco que corre desde a hora que um dos caras põe a cara na porta.
Em ambas as versões há toda uma subtrama que poderia ser interessante, mas não é desenvolvida: um dos estupradores é um rapaz com leve deficiência mental. E aí, ele merece a pena de morte, como os outros? Ele tem ciência do que faz?
O que mais me incomoda na versão de 78/80 é o modo como a vítima inicia sua vingança contra um a um dos estupradores ― seduzindo-os. O primeiro poster, ainda com o título original (ao lado), dizia que ela se vinga “do único jeito que ela pode”. Eca! No remake, ela simplesmente dá uma pancada na cabeça de cada um, o amarra, e o prepara pra segunda parte da sua vingança (que até parece que algum deles vai morrer assim fácil, sem sofrer).
No remake a motivação de um dos estupradores é explicada (não justificada). Ele se sente humilhado quando vê a moça pela primeira vez. Além disso, os amigos dele dizem que ele jamais poderia ter uma mulher chique daquelas. Fica claro que o crápula a estupra pra humilhá-la de volta, pelo poder, não pelo sexo. Em compensação, no original, quando a protagonista é deixada para morrer, a câmera fica com ela. O foco é nela, e a história mostra como ela se recompõe e como arma sua vingança. No remake a vítima apenas desaparece, e a história continua com os algozes. Daí seu ressurgimento parece totalmente implausível, como se ela fosse um fantasma vingador.
Em nenhum dos dois filmes a protagonista é vista minimamente gostando do estupro, o que é uma enorme vantagem sobre clássicos como Sob o Domínio do Medo. Nem ela provoca, nem é apontada como culpada pelo que acontece com ela. E a tagline no poster do original diz: "Esta mulher acabou de cortar, quebrar e queimar cinco homens. No entanto, nenhum júri na América seria capaz de condená-la!" (ingênuo, o pessoal). O problema maior é que gang rapes são usados pra vender ingressos. Tem também quem faça uma leitura feminista do original, mas acho essa interpretação discutível. Penso que uma história dessas só pode ser vista como pró-mulher se a noção que a pessoa faz de feministas for aquele clichê de castradora (literal!) de homens. Um crítico contestou a ideia que I Spit possa ser feminista dizendo que seria o mesmo que considerar luta de galos pró-galo só porque um dos galos costuma sobreviver. Concordo com ele.
Controvérsias à parte, I Spit é o tipo de filme que não tem razão de existir. As duas versões foram concebidas só pra ganhar dinheiro (se bem que podemos falar isso de toda produção hollywoodiana). Obviamente ele não foi feito pra alertar as mulheres do perigo do estupro (a gente já sabe disso, acredite). Nem pra lembrar os homens do horror do estupro. A tendência é que o público masculino se choque muito mais com a rápida cena da castração do que com as intermináveis sequências de violência sexual. Fazer grana explorando temores leva o nome de exploitation. I Spit é o maior representante do gênero.

No comments:

Post a Comment

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...