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GUEST POST: MITOS E PRETEXTOS SOBRE O CARRO
Estou publicando uma série de quatro textos sobre como a cultura do automóvel, predominante no nosso país e no mundo, é prejudicial a todos. Foi o Tiago (Nefelibata), um ciclista inveterad
o, que a escreveu. Esta é a terceira parte do seu belo guest post (leia ou releia as partes um e dois), um trabalho de fôlego feito pra balançar com a gente.Carros utilizam de maneira ineficaz o espaço público, provocam impactos negativos em termos de urbanismo, degradando as cidades, consomem espaços que poderiam ser utilizados para parques e árvores, e poluem muito, tanto de forma direta (este link mostra como, no caso de São Paulo, o ar vem ficando cada vez pior; e dou uma balinha pra quem acertar quem é o vilão) quanto de for
ma indireta (não consigo nem imaginar o quanto de energia é gasta, o quanto de recursos naturais são consumidos e o quanto de poluição é emitida no ar e no solo pela cadeia mundial de produção de carros, acessórios, combustíveis, materiais para construção de pistas, etc. Apenas em 2009, mais de 61 milhões de veículos foram produzidos; significa que a cada segundo, 1,9 carros foram fabricados). Tentar defender o uso de carro usando medidas como rodízio ou inspeção veicular não adianta, porque são meros paliativos. Quem mais gostou do rodízio não foram ambientalistas, mas as concessionárias, que passaram a vender mais carros -– quem usava carro agora tem dois, u
m para dias normais, e outro com placa de último número diferente para os dias do rodízio. Já a inspeção veicular diminui a poluição provocada pela queima de combustíveis fósseis, mas para uma frota de milhões de carros, isso não serve. Teremos um ar menos poluído, mas ainda muito poluído. E isso perde todo o sentido quando nós sabemos que há, efetivamente, opções mais limpas.Carros também são perigosos, responsáveis por muitas mortes; o novo Mapa da Violência, publicado no fim de fevereiro último, mostra que a outrora violenta capital paulista conta recentemente com quase tantas mortes no trânsito quanto por outras formas de vi
olência. Em 2008, o último ano de levantamento completo, foram 1.558 óbitos contra 1.622; 4,2 mortes por dia ocorridas no trânsito (o mapa separa homicídios de acidentes de trânsito, definição técnica que consta de um protocolo chamado C-10, o qual não consegui abrir, e, assim, não descobri se casos de atropelamentos dolosos ou mortes provocadas por briga de trânsito entram em um ou outro). Se o número de mortos é alto, o de feridos é maior ainda, e isso sem nem considerarmos os danos indiretos à saúde, como os causados pela própria poluição do ar, pelos níveis elevados de estresse e até mesmo pelo maior índice de sedentarismo. E os danos psicológicos? Eu só consigo atribuir como dano psicológico a mudança que algumas
pessoas sofrem -– para pior -– quando sentam num banco de carro de frente para um volante.Se considerarmos o perigo ao qual o motorista se expõe em outras formas de violência urbana (nomeadamente assaltos), a coisa fica ainda pior. Carros não são seguros, pelo menos não em comparação com outros meios de transporte, e até mesmo em comparação com quem anda a pé. Se você está andando na rua e sofre a abordagem de um assaltante, talvez nem arma ele tenha; você não reage e ele provavelmente só vai levar sua carteira e o celular. Mas se você sofrer abordagem de um assaltante no carro... dessa vez não precisa nem se preparar para a encrenca, porque
é melhor não perder tempo e já começar a rezar, rezar para que não aconteça uma tragédia. Primeiro que dificilmente será um assaltante só. Segundo que as chances de eles estarem armados é muito mais alta. Terceiro que mesmo que você não faça nada de perigoso ou impensado, um simples desapertar do cinto ou acionar o freio de mão pode fazer um deles te matar achando que você vai tentar reagir. Na melhor(?) das hipóteses, você talvez seja vítima de um sequestro-relâmpago. Ah, e cuidado ao tirar e guardar o carro na garagem... mesmo se morar em apartamento. Seu lindo sedã normalmente é muito mais chamativo do que um celular dentro da bolsa. A armadura que envolve o motorista, somada com a possibilidade de fugir, dá nesse caso uma falsa sensação de segurança.Carros também são caros. Já foram mais caros, e sua compra já foi mais difícil, mas ainda é gritante a diferença de custo do transporte coletivo (mesmo o de São Paulo, cujas tarifas de R$ 3,00 para ônibus e R
$ 2,90 para metrô foram inexplicavelmente encarecidas no começo deste ano) e do carro (um popular custa entre R$ 20 mil e R$ 30 mil. E ainda tem o combustível. E o IPVA. E o licenciamento. E o seguro. E os alarmes. E os estacionamentos. E os pedágios. E a manutenção. E as eventuais multas. E os eventuais prejuízos em acidentes...). É um totem caro, como podem ver. Dependendo do caso, até mesmo um táxi sai mais em conta.Tem também outro mito muito popular sobre carros: há quem diga que é bom ter um para o caso de alguma “emergência”. Algum parente cai azul no chão de casa e, co
m um automóvel, podemos levá-lo correndo ao hospital (e quando quem tem o mal súbito é a pessoa dirigindo um carro? Isso aumenta ou diminui suas chances de sobrevivência?). Primeiramente, eu acho curioso notar que todas, absolutamente todas as pessoas que conheço e que usaram esse argumento para ter um carro, na prática, rodam com ele todos os dias para os destinos menos emergenciais do mundo. Parece que o motorista vai para um lado, a coerência passeia para outro. Segundo, esse uso do carro é muito perigoso; eu pelo menos dirigiria bem nervoso com alguém morrendo no banco de trás, e minha pressa no trânsito poderia provocar um acidente e somente vitimar mais pessoas. Isso se eu não fechar algum macho alfa que interrompa meu curso para sair na porrada (ou no tiro) comigo. No caso
de metrópoles, esse uso do carro não é apenas perigoso como às vezes é também desnecessário; existem ambulâncias, resgate, 193 para isso. Às vezes, esses recursos salvam vidas. Se a gravidade do mal súbito é tal que o doente não possa resistir até chegar o socorro, então é bem provável que ele não resistisse de qualquer forma indo para o hospital de carro. Por fim, novamente, em muitos casos um táxi também resolve.E sempre depois desse rol de desvantagens do uso do carro, as pessoas, sem ter mais o que defender, tentam se valer da desculpa de que o transporte público é impossível de se usar. De fato, em alguns lugares, a cultura de adoração dos carros é tão presente ou o desenvolvimento urbano é tão atrasado que não há espaço nenhum ou iniciativa nenhuma para outra coisa, nem mesmo transporte coletivo. Não há muita saída nessa situação, realmente. Nesse caso, o que resta ao cidadão forçado a usar carro é tomar alguma iniciativa. Mas uma inic
iativa que consista em algo mais substancial do que negociar com banco/concessionária as parcelas do automóvel, ou algo um pouco mais socialmente engajado do que a realização de um consórcio. Senão, a cidade vai ter alma de roça para sempre. Pois a verdade é que não é que usam carro porque as alternativas são precárias; as alternativas é que são precárias porque a demanda por carro, que é social, política e econômica, é muito maior. Por outro lado, se pensarmos a realidade das metrópoles em geral (ou seja, para a maioria absoluta das pessoas que botam o carro na rua), veremos que essa alardeada precariedade do transporte coletivo tem lá seus exageros. Muitas vezes ouvi gente dizer que transporte público é uma porcaria. E muitas vezes essas mesmas pessoas ficaram gagas ou mudas depois que eu per
guntei quando tinha sido a última vez em que havia tomado ônibus ou metrô, ou qual era o nome da linha e do destino, quanto tempo de viagem durava exatamente. Não sabiam responder. Não é estranho que elas sequer conheçam o transporte coletivo, mas saibam com certeza que ele não presta? Mas a resposta é bem simples: usam esse mito para justificarem (perante si mesmas ou outros) o uso do carro, que elas sabem que é problemático (do contrário, não se dariam ao trabalho de justificarem-no). Jamais se darão ao trabalho de experimentar linhas diferentes de ônibus, horários alternativos de metrô, consultar na Internet itinerários, etc. Botam o carro na rua antes de tentarem as outras opções, todas a princípio mais racionais.
Isso quando não desqualificam todo esse discurso na velha desculpa do “eles é que são folgados” (leia-se: pedestres, ciclistas, motoqueiros). Vamos com calma aqui. Antes de tudo, é bom saber que essa desculpa apenas contribui para difamar ainda mais a reputação dos motoristas em geral (entre os não-motoristas, lógico). Não há número que diga com certeza quem é mais mal-educado -- carro, bike, moto ou sola, mas como os automóveis são os veículos mais letais dentre esses, é preciso entender que os motoristas não podem fugir da responsabilidade de estarem conduzindo uma potencial arma. Querer afastar isso é abominável (e também rigorosamente ilegal). Agora, raciocinando a folga dos outros, se pensarmos primeiro nas motos, eu digo que o motorista que pensa desse jeito parece esquecer que os motoqueiros na ve
rdade são seus filhos: é porque o trânsito se entupiu de carros que motocicletas passaram a ser úteis, e mesmo necessárias para serviços que exigem agilidade. É uma demanda de mercado. O motoboy que se expõe ao perigo sabe o risco que corre, mas à parte de toda a inconsequência que possa ter, ele também faz isso pela mesma razão que caminhoneiros rebitados: para cumprir prazos insanos estabelecidos por quem lhe encomenda o serviço –- e pra eles vai ser assim mesmo, senão, não tem trampo. Portanto, motoristas, antes de xingarem ou ameaçarem motoqueiros, pensem que talvez vocês estejam descontando a raiva na pessoa errada, e que há chances muito boas de o maior culpado ser um patrão que usa carro como vocês. Claro, nada disso dá o direito do motoqueiro ser folgado –- assim como a folga dele não le
gitima o motorista a dar o troco. Do contrário, não terá fim o círculo vicioso que existe, por exemplo, em São Paulo: muitos motoqueiros são folgados para se vingar da folga dos motoristas, e vice-versa (mas quem leva a pior? O número de motociclistas mortos aumentou 754% na última década, e o risco de um motociclista morrer no trânsito é 14 vezes maior que o do ocupante de um carro). Parece que tem algo semelhante acontecendo, em menor escala, com pedestres e ciclistas também. Mas aí entra aquele detalhe: quem é que tem mais a perder com essa rixa? Motoristas, por favor, pensem: vale mesmo a pena não levar desaforo para casa mesmo quando o risco aí é a vida de outra pessoa? Esse orgulho é tão importante assim? Entendam que qualquer ameaça que fizerem contra o outro no trânsito só construirá uma relação social nociva, seja de me
do, seja de ódio, e isso só fará da cidade um ambiente mais insuportável de se viver -- para todos, você incluso. E mais: ainda que encontrem folgados por aí, por que devolver desrespeito com desrespeito? Se o outro pedestre, ciclista ou motoqueiro (ou mesmo motorista) não exerce sua cidadania exemplarmente, porque jogar no lixo a nossa também?
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