Wednesday, March 21, 2012

GUEST POST: A ESCRAVIDÃO DA APARÊNCIA, O MACHISMO INVISÍVEL

A Ariane, que é psicóloga, não gostou quando meu cabelo foi criticado e me enviou algumas considerações fascinantes baseadas no livro O Machismo Invisível, da psicóloga mexicana Marina Castañeda. De lá pra cá, outras leitoras mencionaram o livro, que já entrou pra minha listona de Coisas Pra Ler. Muito interessante tudo isso que Ariane coloca.

O trabalho de Marina Castañeda é extremamente importante. Nele ela investiga aspectos psicológicos do machismo. Uma das tarefas d@ psicólog@ é detectar certas formas de pensar e de sentir, pausas de comunicação, formas de relação, que costumam permanecer ocultas; são habituais e involuntárias. Ela faz um debate no livro sobre teorias psicológicas e biológicas no machismo (por exemplo: a tal psicologia evolucionista, que não tem argumentação fortemente embasada e pode com traquilidade ser questionada por alguém que tenha um pensamento mais crítico).
A psicologia, que por muito tempo contribuiu para perpetuar a dominação masculina, possui hoje, no meu ponto de vista, a grande tarefa de denunciá-la. Os impactos psíquicos do machismo são catastróficos e é no psiquismo que ele se perpetua, na formação da subjetividade. Escutamos na televisão ou lemos em pesquisas que depressão e outras afecções emocionais são problemas que atingem mais as mulheres, e que estas procuram serviços psicoterápicos com mais frequência. Óbvio que isso é um problema social grave que atinge o psiquismo da mulher; no entanto, tudo isso é mascarado, e muitos discursos já foram fabricados para esse problema: mulheres são muito difíceis de entender, são muito emocionais, são complicadas, são irracionais, são os hormônios. Depressão pós-parto não é somente um problema orgânico: é a maternidade que é amplamente divulgada como algo maravilhoso e que deve ser natural da identidade da mulher.
Lola, não existe nenhuma explicação biológica realmente fundamentada e comprovada para explicar nosso comportamento, nossos costumes, nossa psique. O que existeo respostas biológicas de processos psíquicos e ativação cerebral que os neurocientistas correlacionam aos processos psíquicos, mas isso é teoria, ou seja, sem comprovação ainda.
Sobre a relação entre machismo e imagem feminina e masculina, existe uma assimetria fundamental entre as auto-imagens masculina e feminina, sendo que esta última gira em torno dos homens durante grande parte da vida das mulheres. Seja com o propósito de seduzir ou simplesmente chamar a atenção, o respeito, a estima, a amizade, isso representa um esforço constante que os homens não precisam fazer em relação às mulheres. Se o intuito não é seduzir alguém em particular, os homens não fazem nenhum esforço especial para atrair a atenção do sexo "oposto" -- eles já contam com ela de qualquer maneira. Projetar uma imagem masculina é certamente um objetivo direcionado a outros homens e não às mulheres. É muito comum, por exemplo, numa mesa de bar, um homem dominar a conversa, não no intuito de impressionar as mulheres, pois seus verdadeiros interlocutores são outros homens; a virilidade é algo que precisa ser constantemente reforçada para os seus congêneres. Diante desse público, não existe necessidade de estar bonito e bem-arrumado: a meta masculina é projetar uma imagem de êxito e poder. Um exemplo: um homem que chega no restaurante não coloca mais o revólver sobre a mesa, coloca o celular porque está esperando "uma ligação muito importante”. Existem muitas maneiras de se impor e “impor respeito” entre homens.
Em nossa sociedade quem decide o que é sexy ou atraente nas mulheres são os homens: a definição de beleza sempre foi um privilégio masculino. Isso se dá tanto no âmbito individual, quando as mulheres se arrumam para os homens ao seu redor, quanto no âmbito social, quando os profissionais da moda decidem qual será o look do momento. Sabemos que essa é uma questão fortíssima aqui no Brasil, basta estar atent@ à rápida e ampla aceitação feminina das novas tendências da moda. A mulher que não segue as orientações muitas vezes é considerada não somente antiquada e pouco sexy, mas também pouco feminina. Um homem que não segue a moda é excêntrico, original; a mulher na mesma situação é “desleixada”. Para homens também existem exigências da moda, mas certamente não seguí-las não tem para eles grandes consequências. Para vários homens, não seguir a moda é justamente uma prova de independência viril.
Muitas vezes a falta de asseio pessoal se torna parte do look masculino -- uma barba por fazer, roupas desalinhadas, não são algo muito surpreendente. Conforme expõe Castañeda em O Machismo Invisível, “mostrar-se ao natural, em qualquer contexto e sem cuidado algum com a aparência, sempre foi uma prerrogativa masculina. No fundo, essa atitude equivale a dizer ‘Eu sou assim, e não me importa o que os outros pensem’: é uma declaração de autonomia, uma afetação de indiferença que poucas mulheres poderiam adotar impunemente na vida pessoal, social ou profissional”.
Somos educadas para nos enfeitarmos desde muito pequeninas, chegando mesmo a introjetar uma atitude de vergonha em relação ao próprio corpo e suas funções naturais: odores, arrotos, flatulências, são proibidos, e muito mais tolerados nos meninos. E hoje temos o absurdo de sabonetes “íntimos”, como se o cheiro natural da vagina fosse algo ruim, cremes clareadores para as axilas, depilação à brasileira... fica óbvio que nosso corpo, longe de ser natural, é constantemente fabricado através de diversas tecnologias, produzidas por um regime de consumo.
Desde a infância os homens se acostumam a ocupar muito espaço, coisa que não percebem, porque lhes parece natural. Não estamos falando em tamanho físico, mas de posições corporais: quando sentam de pernas abertas, ocupam duas ou três vezes mais espaço que uma mulher. Muitas vezes a posição física de um homem (sentar de pernas abertas e desalinhado) denota uma atitude de desprezo, de indiferença pelas pessoas ao seu redor; os pés sobre a mesa e as mãos cruzadas atrás da cabeça reproduzem uma posição clássica de autoridade. Não há dúvidas de que muitos homens, se indagados sobre isso, dirão que buscam unicamente conforto, mas então perguntamos por que essas posturas não são aceitáveis em uma mulher e tão pouco seriam para um homem em posição subordinada. A liberdade de movimento masculina, longe de natural, é uma expressão de poder; não está muitas vezes em função de seu tamanho, mas de sua posição hierárquica na sociedade.
A mesma lib
erdade assimétrica também aparece na permissão que muitos se outorgam em encostar nas mulheres. Segurar pelo braço, empurrar levemente o ombro, segurar-lhes as mãos. As mulheres não encostam nos homens com a mesma facilidade, e muito menos os homens se encostam dessas formas. No outro lado da moeda, as mulheres são educadas desde cedo para ocupar o menor espaço possível, as roupas -– saia, sapatos incômodos para caminhar depressa e correr -– refletem e reforçam a restrição dos movimentos. Em geral aprecia-se que mulheres sejam pequenas, com mão e pés pequenos e movimentos comedidos.
Em suma, enquanto homens se acostumam desde pequenos ao conforto e movimento livre, as mulheres são ensinada desde a infância a utilizar o corpo como instrumento de sedução: aprendem a cuidar dele e a embelezá-lo de acordo com os cânones masculinos. Não existe uma só parte da anatomia feminina que escape aos requisitos desse desejo de agradar: dos cabelos às unhas dos pés, passando pelas orelhas, o rosto, o colo, as axilas, as mãos, os seios, o púbis e as pernas [e hoje em dia até o ânus], cada parte do corpo é alvo de cuidados puramente estéticos, sem nenhuma relação com saúde ou higiene, mas unicamente com uma concepção de beleza orientada para os homens. Os homens sempre contam com maneiras neutras de se vestir e se apresentar em público: roupas, sapatos, corte de cabelo e ausência de maquiagem nada indicam sobre sua disponibilidade sexual ou sobre seu estado civil, e certamente, não indicam nada sobre sua masculinidade.
Nas palavras da Castañeda: “não resta dúvida de que a moral dupla da aparência corporal favorece enormemente o homem, respeitando sempre sua liberdade de decisão e de ação, ao passo que limita a da mulher”.
Muitos pensarão depois de ler tudo isso que hoje esses padrões estão ficando obsoletos, que existe uma demanda de consumo de estética crescente entre os homens também. Porém, é necessário sempre avaliar bem as situações, pois fazendo isso entendemos que a publicidade direcionada aos homens nessa esfera tem sentido completamente diferente: mulheres devem seguir diretrizes da moda para atrair homens, ao passo que no caso deles a meta é mais uma vez projetar uma imagem de sucesso na vida. A publicidade para o homem promete êxito, riqueza, e muitas mulheres. Para a mulher, a publicidade promete o homem de sua vida (e um só).
As repercussões para a saúde mental das mulheres são gravíssimas. Não dá mais para negar que os "distúrbios alimentares" são problemas que atingem em esmagadora maioria as mulheres. Mas, como afirma Castañeda, machismo é ainda um tabu social, uma forma de relação ainda invisível de efeitos catastróficos para a liberdade e subjetividade de mulheres e homens.

No comments:

Post a Comment

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...