Saturday, March 17, 2012

“PORTUGUÊS, PORTUGUÊS... É UMA LINGUAGEM INGLÊS”

(Para Larissa Pereira)

Foto: Arquivo pessoal Daniela Galdino

 Por: Daniela Galdino

            Passei certa parte do meu período de graduação mais próxima da Literatura e relativamente apartada do Ensino de Língua Portuguesa. A Literatura me conduziu ao curso de Letras, me seqüestrou, me seduziu, me desnudou. No entanto, em meados da graduação, fui mudando as representações sobre o ensino de língua materna e percebendo outras possibilidades muito para além da opressão de regras gramaticais.
            Li Sociolingüística, Análise do Discurso, Lingüística Textual... Resultado: a partir dessas referências saí do curso, em 1999, com a cabeça povoada por algumas certezas. Tinha as melhores das intenções... e acrescento que naquele tempo ainda evitava o uso de calças jeans, sutiã, o consumo de coca-cola e fazia questão de não falar fluentemente a língua do Uncle Sam. Eu também era ativista do movimento estudantil (ainda mantenho posturas militantes advindas dessa época; outras foram abandonadas, como a necessidade de atuação partidária).
            Eis que no ano de 2000 eu já me encontrava numa sala de aula, em Itabuna, cidade sulbaiana, trabalhando com pré-adolescentes numa 5ª série. Experimentamos a língua materna de diversas formas: fizemos um varal com poemas autorais, trocamos cartas com índios pataxó hã-hã-hãe da Aldeia Nova Vida (Camamu-BA), relemos a carta de Pero Vaz de Caminha (na íntegra), dentre outras coisas.
            Lembro de uma manhã em que um certo rapazinho, após a leitura de um texto que contava a história de Amala e Kamala (as famigeradas meninas-lobo), lançou-me a pergunta: “professora, se as meninas passaram a se comunicar e comportar como lobas, depois de terem sido afastadas dos humanos, então os lobos poderiam falar como homens, se acontecesse o contrário?”. Filosofia da Linguagem, na forma mais espontânea e cristalina que  poderia seapresentar a mim, a nós.
            Esses diálogos, esses desafios lançados à queima roupa encantavam a minha percepção e acentuavam a minha criatividade, o meu desejo de transplantar a opressão característica do ensino de Língua Portuguesa. Como não poderia deixar de ser, cheguei ao final do ano letivo de 2000 cheia das satisfações características de uma criatura recém saída dos bancos da universidade – cheirando a leite e exalando florescimentos teórico-metodológicos.
            No entanto, a duas semanas dos “festejos natalinos” (e na véspera do Conselho de Classe), recebi um cartão de natal de uma estudante e ouvi o seu recado: “professora, é pra você. Não leia agora, no final tem um poema que escrevi pra você.” Assim o fiz, momentos depois empreendi a digna leitura e me deparei com as seguintes palavras autorais, ao lado da mensagem de boas festas: “Português, português é uma linguagem inglês”. Aquilo me deixou intrigada, muda e paralisada.
Na manhã seguinte o Conselho de Classe – com o meu aval - reprovaria Aquilla. Aquilla era o seu nome. Comecei a habitação de angustias no mesmo momento de leitura do cartão natalino... minhas certezas (cheirando a leite) foram desafiadas: o português das nossas aulas era tão estranho, distante que, para Aquilla, era “uma linguagem inglês”. E eu nadava em certezas contrárias a essa forma de entendimento... A frase era carregada de ambigüidade, eu sei. No entanto, ali estava um sentido possível. E isso me angustiava. A angústia maior era a de não ter impulsionado o voo de Aquilla - águia em latim.
“Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”. Isso é Manoel Barros provocando, lá no poema “Uma didática da invenção”. Reaprender termina sendo mais fácil. Desaprender, não. Ligando o cartão de natal oferecido por Aquilla a minha atual experiência docente em cursos de Licenciatura em Letras, revivi angústias político-pedagógicas ao identificar a sensação de impotência demonstrada por orientandas/os de estágio supervisionado. Posso dizer que ando desaprendida/desaprendendo-me do ofício de “ensinar” língua portuguesa. Estou em estado de suspensão até segunda (des)ordem. 

Foto: Milena Palladino



Daniela Galdino, poeta e professora de Literatura na Universidade do Estado da Bahia. Mantém este blog desde 2010.


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