Thursday, March 31, 2011

ENTRE URSOS E AMIGOS-URSOS

Nos créditos finais de O Homem-Urso (veja trailer aqui) eu, comovida, comecei a falar pro maridão: “Se você pensar em quantos filmes de terror são ruins, vai ver que é uma porcentagem enorme. Se você pensar em quantas comédias são ruins, vai ver que é uma porcentagem enorme. Comédia romântica, então, nem se fala...” E ele, me interrompendo, olha pro gato e diz: “Isso daqui vai longe, Calvin”. Mas o que eu quero dizer é que se tem um gênero que satisfaz, em que é duro encontrar um exemplar estragado, esse gênero é documentário. E eu amo docs.
E eu amo Herzog. E amei de paixão Grizzly Man. Bom, nessa vibe de eu amo muito tudo isso, eu tô muito próxima do foco do documentário de 2005, Timothy Treadwell, ecologista que foi morto e comido por um urso em 03. Timothy viveu entre os ursos pardos do Alasca durante treze verões (no inverno eles hibernam, que não são bobos. E não pense que ursos pardos transformam-se em ursos polares no inverno! Não resisti colocar essa atrocidade aqui porque confesso que ela passou pela minha cabeça. O resto da crônica terá um nível mais elevado). Timothy filmou mais de cem horas. Dava palestras de graça e aulas em escolas pra divulgar seu trabalho e a causa dos ursos. Considerava-se protetor deles. E fica meio claro desde a primeira cena do doc que ele era um louco completo.
Sabe aquilo que eu disse de não empatizar com alpinistas que sofrem um acidente e morrem porque, afinal, ninguém em sã consciência deveria estar num lugar inóspito pra começar? Bom, isso se estende ao sujeito retratado no filme fofinho mas mediano Na Natureza Selvagem (esse era tão doido que literalmente queimava dinheiro). E deveria se estender a Timothy, mas Herzog o trata com tanto carinho que é impossível a gente não gostar do malucão. Por mais que todo mundo fale contra ele ― um piloto cruel diz que ele teve o que mereceu e que os ursos provavelmente só não o atacaram antes porque acharam que ele era doente mental; um nativo e curador do museu local conta que seu povo, apesar de viver no mesmo habitat dos ursos, nunca se envolveu com eles, e que Timothy rompeu uma barreira de 7 mil anos ― quem depõe a favor dele é o próprio Herzog, e a voz de um documentarista num documentário é a voz de deus. Herzog vê Timothy como um dos seus. Ele o vê como um colega cineasta em primeiro lugar, alguém meticuloso que adora imagens. E a gente vê que Herzog vai se identificando cada vez mais com seu protagonista. Tá no jeito em que ele mostra os ursinhos de pelúcia na casa na Flórida onde Timothy cresceu, ou no contato gentil que tem com as ex-namoradas do moço. Numa longa sequência em que Timothy surta e vocifera contra toda a civilização diante da câmera, Herzog, cavalheiro, pra tirar o foco do doido narra: “Eu já vi alguém com esse comportamento numa filmagem”. E a gente ri, porque sabe que ele tá falando do Klaus Kinski (com quem, sei lá, com todo aquele cabelão loiro, Timothy até se parece. Veja uma cena do Klaus surtando durante as filmagens de Fitzcarraldo. E esse foi um dos surtos levinhos). E quando chega a hora fatídica em que Herzog ouve o som da gravação do ataque fatal do urso, ele pede pra ex de Timothy parar a fita, e recomenda que ela a destrua. Nesse momento a gente percebe o quanto Herzog gosta do seu sujeito. (E, por mais que minha curiosidade sádica queira ouvir a fita, ela não faz a menor falta. É uma decisão sábia do diretor em não mostrar nem um pedacinho).
Além do mais, eu gosto do Timothy porque, já no início, Herzog faz um amigo ler parte do hate mail (cartas de ódio) que a figuraça recebia. E é aquela coisa típica da direita americana de “Espero que você seja devorado por um animal selvagem, seu ecochato nojento”. E eu funciono também por associação: os inimigos da direita americana são meus amigos. Mas tem um outro motivo ainda mais forte pra eu gostar de Timothy. Se eu conseguisse vencer a paixão que tenho pela civilização, por água encanada e supermercados e luz elétrica e geladeira, e algum dia endoidasse e fosse viver no meio da natureza, eu seria igualzinha ao Timothy. Em questão de minutos eu estaria gritando pro urso mais próximo: “Eu te amo, Úrsula!”, e acariciando as raposas, e tentando dar beijos e abraços nos ursinhos, e me sentindo um deles. Sério, eu me conheço. E eu não iria durar cinco minutos antes de ser encarada por um urso que pensaria “Oba, almoço! É, tenho que tomar cuidado com meu colesterol, mas vou fazer dieta mesmo pelos próximos meses quando o inverno chegar”.
Herzog também mostra afeição por uma presença oculta, mas constante, na trama: a namorada de Timothy, Amie, que morreu junto com ele e que só aparece duas vezes, e que tem medo dos ursos. Ao invés de fugir, ela tenta lutar contra o urso que está dilacerando Timothy. E a dúvida de Herzog é: por quê? E quem responde isso são as próprias imagens anteriores, que mostram um Timothy muito bobão, falando consigo mesmo, e pra câmera, sobre seus problemas com as mulheres e como ele gostaria de ser gay. A gente não sabe quase nada de Amie (seus pais e amigos não quiseram dar entrevista), mas devia ser outra que não batia muito bem da cabeça. Porque Timothy, tudo bem, ele fez isso porque não tinha mais nada pra fazer na vida e porque amava os ursos, mas e Amie? Ela faz isso por um cara?! (Pense em quantos sujeitos você acompanharia até o Alasca pra viver sem conforto, e sob perigo, durante dois meses).
Há também uma discussão filosófica que Herzog levanta sobre a falta de harmonia da natureza e o quanto nós, humanos, somos parecidos com esses outros animais, mas nesse minuto ouvi meu gatinho Calvin emitir seu miado ensurdecedor de que está muito locão, e avisei o maridão que eu iria passar a filmar meu convívio com felinos selvagens. Ele respondeu que tudo bem, mas que iria vender minha última gravação quando chegasse a hora.

No comments:

Post a Comment

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...