Friday, March 25, 2011

GUEST POST: VIOLÊNCIA SEXUAL E FALTA DE EMPATIA

Uma leitora de SP que prefere se manter anônima me enviou um email. Eu pedi autorização para transformá-lo em guest post, e ela aceitou. Volto a falar lá embaixo.



Terça-feira foi a cerimônia de colação de grau da minha faculdade, organizada num local completamente fora de mão para qualquer um que não vá de carro. Para qualquer outra pessoa que vá de transporte público, o único caminho possível é descer numa estação de trem e andar mais 20 minutos a pé até o local.

Como eu não conhecia nada naquela região, mas já tinha uma noção de que aquelas redondezas poderiam ser perigosas, me preveni: entrei no Google Maps pra decorar o caminho que tivesse a melhor relação de rapidez e segurança e saí de casa num horário onde ainda conseguiria chegar antes de anoitecer.

A questão é que não dei muita sorte, peguei um trânsito monstruoso por causa de um acidente no corredor de ônibus e acabei chegando na estação de trem mais próxima do local quase às 19h, dando de cara com uma rua completamente escura e deserta. Nessas horas acho que já bate um medo em qualquer pessoa, e comigo não foi diferente: apertei o passo e saí em disparada pelo caminho que já havia decorado, sempre olhando por cima dos ombros para ver se não estava sendo seguida e suspirando de alívio a cada pessoa que cruzava por mim e passava direto, sem mexer comigo ou tentar fazer alguma coisa.

Olha Lola, acho que mesmo se eu tivesse chegado sã e salva, a experiência já teria sido ruim o suficiente. Eu só cruzei com homens, afinal é muito provável que nenhuma mulher que more ou conheça aquela região se aventure por ali, e as que só passaram por lá uma vez - como eu - não voltem nunca mais. E cada homem que cruzava o meu caminho virava uma ameaça em potencial na minha cabeça. Acho que toda mulher que já teve que caminhar por um lugar sem iluminação e deserto de noite sabe exatamente do que estou falando. Eu estava aterrorizada.

Eis que de repente dou mais uma olhadinha para trás e vejo um cara logo atrás de mim, surgido de não sei onde. Bateu um pânico, eu apertei ainda mais o passo, mas não deu outra, o cara foi mais rápido, agarrou o meu braço e me puxou para perto dele. Não sei dizer se ele estava armado ou não, sei que ele encostou algo que eu julguei parecido com uma arma na minha cintura, mas até aí, com o meu conhecimento completamente limitado de armas de fogo, podia ser até um pedaço de cabo de vassoura ou uma arma de mentira.

Lola, eu já fui assaltada antes, mas essa foi a primeira vez que um agressor me agarrou daquele jeito. Preciso dizer que eu gelei?

O cara começou com um papinho de "Olha pra frente, olha pra frente, não olha pra mim não, anda com calma aí que eu acabei de fugir da delegacia, tem uma viatura atrás de mim e se eles me verem sozinho vão me pegar". Eu só assenti com a cabeça enquanto ele segurava meu braço com força e me fazia andar colada nele, como se nós fossemos um casal de namorados.

Essa tortura durou uns 5 ou 10 minutos, não sei mensurar exatamente. Enquanto a gente caminhava ele ficou me perguntando meu nome, onde eu morava, de onde eu estava vindo, para onde eu estava indo... Eu enrolei e inventei a maior parte das respostas. De vez em quando ele dava um puxão no meu braço e duas vezes eu virei por reflexo para olhá-lo. Na primeira vez ele se alterou e ficou repetindo pra mim só olhar pra frente; na segunda vez ele deu um tapa e apertou a minha bunda enquanto me chamava de vagabunda e piranha e mandava eu olhar pra frente "senão as coisas iriam acabar mal pra mim". Eu nunca me senti tão mal e humilhada em toda a minha vida e nessa hora comecei a pensar que a qualquer momento ele iria me jogar num beco e me estuprar. Fiquei tentando segurar o choro com medo dele ficar com raiva e resolver "acabar logo com aquilo", ou com medo dele ser um sádico filho da p*ta com algum fetiche em ver mulher chorando. Eu tentava desesperadamente achar alguma saída praquela solução, mas a rua estava deserta, não havia nenhum comércio, nenhum lugar onde pedir socorro.

Quando nós estávamos a uns 200 metros de um posto de gasolina bem iluminado, ele me fez diminuir o passo e me prensou num poste comigo de costas e foi me encoxando enquanto me segurava pelos pulsos. Nessa hora eu comecei a pensar "já era", comecei a tentar me soltar e a chorar, tentei gritar mas a voz falhou completamente, me senti miserável, com o coração saindo pela boca. Ele ficou me xingando, me mandou ficar quieta, soltou meus pulsos e mandou eu abrir a bolsa e dar o celular, abrir a carteira e dar o dinheiro que eu tinha. Não sei se alguma coisa fez o cara mudar de idéia, ou se a intenção desde o começo era só me aterrorizar enquanto ele se divertia com isso, mas ele me liberou e me mandou continuar andando sem olhar pra trás.

Eu não tenho nem palavras pra descrever o medo, o pânico, a sensação de terror e impotência. Fui andando cada vez mais rápido até que saí correndo que nem uma louca, e três quarteirões depois já estava no local da cerimônia de colação. Acho que o choque me fez fazer as coisas no automático, vestir a beca, tirar as fotos... Só quando finalmente encontrei alguns colegas de sala (todos homens) e um deles perguntou se eu estava bem é que consegui dizer "fui assaltada". Isso mesmo, eu disse que fui assaltada, e não que um completo estranho se aproveitou de mim E me assaltou. Não sei porquê mas não tive coragem, estava me sentindo suja, horrível, miserável e muito mal comigo mesma por um estranho ter se aproveitado de mim daquele jeito.

E as reações foram muito diferentes do conforto que eu esperava e precisava naquele momento:

"Não foi nada de mais."

"Acontece com qualquer um."

"Ah, mas aqui é perigoso mesmo."

"Tá vendo, ficou dando bobeira."

"Você devia ter tomado mais cuidado."

"Você devia ter feito outro caminho."

"Você devia ter pego um taxi da estação até aqui."

"Ah, mas você é mulher."

De repente toda a culpa do acontecimento virou minha. É muito mais fácil colocar a culpa na vítima, não é? É muito fácil cruzar os braços, vender sistemas de alarmes, câmeras de segurança, cercas elétricas, dizer que o mundo é "assim mesmo" e falar que quem tem a casa invadida é porque não se preveniu o suficiente.

Imagino que se eu tivesse dito que o cara me deu um tapa na bunda e me encoxou, provavelmente iriam perguntar o que eu estava vestindo

E dizer que "acontece com qualquer um" é a pior falácia de todas. Todas as minhas amigas, sem exceção, já foram assaltadas mais de uma vez ou já sofrerem algum tipo de violência na rua. Em contrapartida eu nunca vi NENHUM amigo homem sofrer o mesmo tipo de violência. Não que homens não sejam assaltados ou não sofram violência, mas é muito mais fácil pra algum mal-intecionado abordar uma mulher sozinha que já morre de medo o tempo inteiro de sofrer alguma violência sexual, do que um cara que ele não sabe se vai querer ou não meter a porrada nele. Parece que as pessoas são míopes e não conseguem exergar o óbvio.

Eu não sei quem inventou a frase "todo o cuidado é pouco", mas a verdade é que pra nós mulheres todo o cuidado NUNCA vai ser o suficiente. Me revoltam essas pessoas que ficam querendo jogar a culpa na vítima ou que insistem no "poderia acontecer com qualquer um". Como é difícil fazer as pessoas verem além do senso comum e se empatizarem... Parece que só quem é mulher consegue se solidarizar e empatizar de verdade (e olhe lá!).

Depois dessas pérolas não tive coragem de contar pra mais ninguém toda a história, mesmo pras únicas pessoas que se mostraram verdadeiramente solidárias e não apontaram o dedo na minha cara: uma garota da minha sala que era da minha turma e os meus pais e parentes que estavam na colação.

Só no dia seguinte, depois de absorver melhor o fato, é que consegui contar essa história inteira pras minhas duas melhores amigas, que me entenderam e me apoiaram, e sinceramente, acho que só conseguiram fazer isso porque são mulheres e sabem o terror que é a ameaça de sofrer alguma violência sexual.

Desculpe o texto longo, Lola, mas eu precisava mesmo desabafar.



Agora sou eu (Lola). Fiquei indignada com este relato. Homens, só porque vocês têm o privilégio de não passarem por isso não quer dizer que não devem acreditar na gente quando dizemos: a ameaça de violência sexual está sempre presente na vida das mulheres. Sempre. Ainda mais numa rua deserta e escura. Como disse a leitora, homens também são assaltados e sofrem violência, mas ela raramente é sexual. Enquanto que pra mulher a violência raramente não é sexual. Dá pra entender a diferença? Dá pra se colocar no nosso lugar? Li uma vez, já faz tempo, que é uma tática de alguns assaltantes incluírem algum componente de violência sexual quando fazem de mulheres suas vítimas. Desta forma a vítima se sente envergonhada ou culpada e não dará queixa. Sim, vivemos numa sociedade em que uma mulher que foi estuprada ou abusada sexualmente é vista como suspeita, quando não automaticamente culpada pela violência que sofreu. Além do mais, uma vítima que passa pelo que passou a leitora sentirá um grande alívio por não ter sido estuprada. Ficará com a sensação de que poderia ter sido muito pior, e assim não denuncia. Vivemos num mundo feito inteirinho para que não denunciemos quem nos agride. Mas o que me choca mais é a falta de empatia. Uma mulher ser abordada à noite é sempre traumático. E o pior é que se a leitora tivesse contado tudo que aconteceu pros seus colegas eles falariam exatamente a mesma coisa: “Você devia ter tomado mais cuidado”. A culpa é nossa. Quem mandou nascer mulher?

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