Wednesday, March 23, 2011

Sonâmbula e feroz: divagações sobre “Vinte poemas CaleiDORcópicos”, de Daniela Galdino


Por Antonio Naud Junior


A poesia é um caminho tão solitário como o das estrelas e não há uma fórmula para a descrever e compreender em todas as suas complexidades. Seja como for, do que nela pode ser encontrado, é uma experiência pessoal densa, que varia de poeta para poeta ou mesmo de leitor para leitor. Mas de vez em quando dá um certo gozo divagar ou fazer desta, sabendo que ao correr da pena se aperta o coração. Sei também, com algum desalento, que se alguma coisa não se pode ensinar é a sabedoria. E a Poesia. Essa associação surpreende-me, até porque raras vezes penso quanto é exata e quanto a Poesia não se ensina nunca. Então, para que servem os críticos literários? Talvez para trilhar o fundo de um túnel. Para muitos deles, essa imagem do túnel – e da luz ao fundo dele – é a reminiscência do momento da criação legítima, recuperada à hora da leitura mais atenta. E se o leitor precisasse da Poesia para olhá-la nos olhos? E se a Poesia precisasse de nos para dar-nos a mão e nos tirar o medo de viver? Como posso eu saber, como podemos saber? Seria a Poesia o sabor da dor? Sei que somos os espaços em branco dela.
Muito boa gente não lê certamente Poesia, assim como muitos poetas não escrevem para tal boa gente. Entra-se neste mundo poético, consoante as hierarquias, em cerimonial e etiquetas, regidos por rigorosas normas. Tudo poderia ser diferente em tão nobre oficio, mas não o é. É um mundo cão e um mundo macho. Sou obrigado a explicar melhor, antes que me tenha em má impressão: de Emily Dickinson a Marianne Moore, de Cecília Meireles a Hilda Hilst, o universo poético feminino sempre esteve entre lá e cá ou mais lá do que cá. Ou seja, nesta aventura de agonia, muitas dificuldades foram impostas pelo raciocínio masculino, que secretamente parece repetir como uma máquina avariada: “o que sabe a mulher sobre o dom poético?”. O sul da Bahia, uma região perfumada por poetas vagamente lembrados, sejam de um sexo ou de outro, tem um elenco lírico feminino atraente: Valdelice Pinheiro, Janete e Jane Kátia Badaró, Neuzamaria Kerner, Ana Virginia Santiago, Ritinha Santana, Genny Xavier, Yolanda Costa, Urânia Azeredo Bittencourt, Helena Chaves, Gal Macuco. E perdoem-me do desconhecimento de outras. Mas escrevo estas linhas para falar de uma nova poeta grapiúna, ou melhor, de um livro recentemente lançado por esta poeta: “Vinte poemas CaleiDORcopicos”, de Daniela Galdino (Via Litterarum, 2005).
Há nesta obra uma espécie de necessidade íntima de suportar penas e sofrimentos, de conservar a personalidade exposta à própria destruição. Não há saída nem retorno para a poeta, porém a vida mergulhada no vazio não é possível, e ela assim o crê. Mas apesar de tudo, a Poesia firma-se virtuosa, numa sensibilidade abstrata acima da morte, da guerra cotidiana e sofrimento incluídos. Galdino tenta, com sua lírica escarlate, ouvir o “presságio das flores”, superar as insuperáveis contradições da realidade e suas próprias contradições, em que passado e presente, vida e morte, amor e dor, se unem num todo, numa unidade, num ser. Uma sublimação elegíaca, uma espécie de religião estética: “Quando eu disse/ que a terra era azul/ tu me acolheste/ debaixo da asa esquerda/ e voamos (juntos) para fora de nos”. Uma tentativa de desenvolver uma imagem do mundo desde uma ótica essencialmente humanista. A voz poética desta jovem autora procura o seu caminho, parece não dormir, sonâmbula e feroz, ergue-se num canto sensível, por vezes apressado, e torna a noite mais funda e mais terrível, a noite cheia de caçadores e presas.
Verso a verso, o livro anseia por valores persistentes, determinando uma escrita entrecortada, atravessada por uma sutil eroticidade e uma dor por vezes insegura,  mas construída de modo delicado. E então, a mão que escreve talvez não faça mais do que construir, palavra sobre palavra, emoção sobre emoção, a persona de uma mulher, a sua história, o seu auto-retrato: “Viver era ir-se/ na direção/ das pequenas mortes instantâneas/ e das súbitas ressurreições”.  Afinal, a Poesia imita a vida e a vida imita a Poesia, então talvez cada verso seja uma linha da cabeça, uma linha do coração, uma linha da vida.


Texto publicado originalmente em setembro de 2005, no jornal (já extinto) ABXZ – caminho das Letras

Antonio Naud Junior é jornalista e escritor. Atualmente mantém o blog www.ofalcaomaltes.blogspot.com, no qual empreende reflexões sobre Cinema.

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