Crimes e Pecados (1989) é a prova cabal no cinema de que deus não existe.
É um filme sobre moralidade, mas sem muita esperança. O oftalmologista que manda matar a amante não só escapa sem culpa, como prospera. O produtor mulherengo e ditatorial (comparado a Mussolini) só melhora de vida. Já as pessoas com um centro moral não terminam bem. O filósofo judeu se suicida (deixando nada mais que um bilhete dizendo “Vou sair pela janela”). O rabino fica cego sem explica
ção. A produtora executiva acaba sucumbindo aos encantos do Mussolini. Mas claro que nem tudo é tão certinho como eu tô contando. Mussolini tem um lado que a gente não conhece (ele é inteligente, sensível à poesia). E a alternativa imediata da produtora seria o personagem do Woody Allen que, apesar de ser boa gente, é meio loser. Começa documentários que não termina, e não ganha um centavo com eles.
E lógico que Crimes tá cheio de ótimas piadas também, se bem que quase todas vêm da boca do Woody (uma vem da Mia Farrow. Alan Alda lhe diz: “Se você se esforçar bastante, pode ter o meu corpo”. E
ela: “Tem certeza que não prefere deixá-lo pra ciência?”). Woody, que não transa com a esposa faz um ano (ele se lembra da data por que foi o aniversário de Hitler), reclama com a irmã: “A última vez que entrei numa mulher foi quando visitei a Estátua da Liberdade”. Ele manda uma carta de amor à amada, que meses depois a devolve.
Woody diz: “Minha única carta de amor. Mas tudo bem, porque eu plagiei quase tudo do James Joyce mesmo. Você provavelmente estranhou todas as referências a Dublin”.
E tem toda uma paixão pelo cinema também, que é sempre uma marca registrada do Woody. Ele vai com a sobrinha e com Mia ver matinês de filmes antigos. No final, ele, o diretor, se encontra com seu protagonista, o oftalmologista, e os dois discutem a trama. O veredito: “Se você quer um final feliz, vá ver um filme de Hollywood”. Pois é, só que final feliz, neste caso, é algum tipo de castigo (judicial ou divino) pra quem comete crimes. E não acontece nada.
(Aliás, 89 fo
i um bom ano de Oscar. Além de um dos grandes Woody's, teve o melhor Spike Lee, Faça a Coisa Certa, Sexo, Mentiras e Videotape, Harry e Sally, Parenthood, Sociedade dos Poetas Mortos, Valmont, Glory, Cinema Paradiso, Camille Claudel etc).
Ao rever Crimes, pensei: opa, tá cheio de ligações com Match Point (Ponto Final), que Woody fez 26 anos depois. Mas não tem não. As únicas semelhanças é que a
mbos estão entre as obras-primas do Woody e são sobre sujeitos que, pra facilitar a vida deles e não terem que pagar pelos seus adultérios, matam a amante. Só que, enquanto Crimes é judaico até a medula (deve ser o filme mais judeu do Woody, e logo nessa produção ele decidiu mostrar que deus está morto!), Ponto não tem religião. A questão religiosa é substituída pela luta de classes, por assim dizer. Ponto é sobre alpinismo social, e em Crimes todo mundo é da mesma classe (se bem que a amante assassinada, feita pela Anjelica Huston, é comissária de bordo e não sabe quem é Sch
ubert, o que a coloca numa outra classe). Em Ponto é o assassino que está em desvantagem cultural e precisa aprender as referências pra se encaixar na high society. Em Crimes tem algo de gênero, da amante admirar e querer aprender com o adúltero. Além do mais, há a diferença de idade. Em Ponto o casal é muito mais jovem, e isso interfere. E a discussão gira mais em torno do destino que da moralidade. Mas ambos estão entre as melhores obras da longa filmografia do Woody.
Ponto é o filme mais incomum do Woody. É praticamente como se fosse um filho ba
stardo, fazendo minha imaginação correr sobre se o que é mostrado em Você Vai Encontrar o Homem dos Seus Sonhos é ficção mesmo (um carinha ficar com o manuscrito de outro que morre, e publicá-lo como se fosse seu). Não tem nada a ver com o Woody. Ok, ele trata de ambição e pobreza em O Sonho de Cassandra, mas não tem comparação. Em Ponto fala-se de dinheiro o tempo inteiro, do começo ao fim. É a história de um jovem pobre, esforçado, ganancioso, que cultiva (é a palavra certa no caso) seu amor pela cultura da classe alta (ópera, pintura, literatura) como um meio de ascensão social. Ele não só lê Crime e Castigo ― ele estuda a obra, certo de que saber analisá-la pode render frutos. E aí ele se casa por dinheiro com um
a rica herdeira. Mas o estranho é que ele é todo formal e evasivo desde o início, na entrevista de emprego para ser professor de tênis num clube de ricos. Ele só parece ser ele mesmo quando está com a única outra pessoa de sua classe, a americana aspirante a atriz e noiva de seu futuro cunhado. Com ela ele é sexualmente agressivo e obcecado. Só com ela. Com todo mundo ele desempenha um papel.
Outra diferença com o Woody de sempre é a falta de humor. Claro, há vários momentos em que a gente ri (talvez mais de nervoso), como a ironia máxima da frase “todos sabemos que você é perfeitamente capaz de engravidar uma mulher”, sendo que, apesar das di
ficuldades pra engravidar a esposa, sua amante está grávida. Mas não tem alívio cômico. Não tem alívio, ponto. É um filme tenso. E tem tanta coisa incrível. O anel bater na cerca e voltar é um achado; eu até me arrepio com essa cena. Adoro que a gente pensa que o sonho no final, em que o protagonista conversa com suas vítimas (a frase “Você foi um efeito colateral” é muito política) parece ser dele, mas não é: é do detetive que desvenda o caso. E gosto muito também com
o o filme se transforma no seu terço final, e como toda a sequência do assassinato é inesperada e implausível, mas a gente fica sem escolha e torce pelo crápula. E é uma graça como os ricos não acreditam em sorte. Pra eles, é tudo meritocracia. Eles são ricos porque mereceram, não porque nasceram com o bumbum pra lua, já num berço de ouro.
Então, nada disso é sequer sugerido em Crimes e Pecados. São duas obras bem
díspares, com parte de uma trama em comum. Mas é muito pouco pra desmerecer Ponto como não original. Quer dizer, o cara faz um filme por ano, todo ano, praticamente desde 1966 (são 46 filmes dirigidos por ele já). Algum dia ele teria que repetir alguma coisinha. E é ridículo que a gente fale em repetição logo no seu filme mais atípico, o grande Ponto Final.





E tem toda uma paixão pelo cinema também, que é sempre uma marca registrada do Woody. Ele vai com a sobrinha e com Mia ver matinês de filmes antigos. No final, ele, o diretor, se encontra com seu protagonista, o oftalmologista, e os dois discutem a trama. O veredito: “Se você quer um final feliz, vá ver um filme de Hollywood”. Pois é, só que final feliz, neste caso, é algum tipo de castigo (judicial ou divino) pra quem comete crimes. E não acontece nada.
(Aliás, 89 fo

Ao rever Crimes, pensei: opa, tá cheio de ligações com Match Point (Ponto Final), que Woody fez 26 anos depois. Mas não tem não. As únicas semelhanças é que a








Então, nada disso é sequer sugerido em Crimes e Pecados. São duas obras bem

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