Tuesday, March 8, 2011

MEU FEMINISMO NÃO É PRA MIM

Meu feminismo não é pessoal, não é em benefício próprio. Eu geralmente não me sinto discriminada. Talvez já tenha sido em benefício próprio. Quando eu era jovem, solteira, e descobrindo a vida, eu odiava o padrão duplo pra homens e pra mulheres, aquilo de homem namorador ser garanhão, mulher namoradora ser piranha. Eu gostava de sexo (gosto ainda!), então só podia ser uma ninfomaníaca, uma devoradora de homens. Continuo achando esse padrão duplo detestável, mas como hoje sou uma respeitável senhora casada e monogâmica, minha sexualidade é bem menos vigiada. Acontece que na época em que comecei a me sentir feminista, lá pelos 8 anos, eu tinha pouquíssimos motivos pra me sentir discriminada. Vivia uma infância protegida. Tinha o melhor pai do universo, que me dizia todos os dias que eu era inteligente e linda e especial e que me amava. Eu o considerava bastante feminista, tirando um ou outro deslize como pedir pro meu irmão do meio “cuidar das meninas”, apenas por ser homem. Eu não era bullied na escola. Mas por algum motivo eu conseguia olhar pra longe do meu umbigo e entender que a minha realidade não era o padrão de todas as mulheres. Minha mãe assinava a revista americana Ms. e só pelo título eu já entendia que mulher recebia tratamento diferente dos homens (por que interessa o estado marital da mulher, se ela é Mrs., senhora, ou Miss, senhorita, sendo que pra homem é sempre Mr, senhor?). Eu tinha bonecas e adorava jogar futebol, e ninguém me dizia que eu precisava escolher. Eu estava estudando numa escola católica e tinha grandes conflitos pra aceitar que deus era pai, senhor, barbudão, branco, que seu único filho era um homem loiro, que a historinha de Adão e Eva era pra ser levada a sério (e a culpa caía na Eva!), que todos os papas tinham pênis, que freira não podia rezar missa, que Maria, a mãe do loirinho, era celebrada por ser virgem. Eu via TV e lia revistas e jornais e não gostava do que via, principalmente nas propagandas. Eu achava estranho que tinha mulher com pouca roupa em todo lugar que eu olhava, tanto nas capas das revistas femininas quanto das masculinas. Eu considerava esquisito que eu, bem mandona, não podia convidar um menino pra dançar. Eu era uma criança bonita, todo mundo me dizia isso, mas não achava muito importante (qual era o meu mérito em ter nascido de olhos verdes? E por que olhos verdes eram considerados mais bonitos que olhos escuros?).
Depois, já adolescente, escapei de poucas e boas que só aconteceram comigo por eu ser mulher. Tipo: um carinha querer me compartilhar com seu primo (sem ninguém pedir a minha opinião); um grupo de rapazes que pareciam confiáveis e que estavam me dando carona parar no apê de um deles e só aceitar continuar a viagem se eu subisse; um tarado desconhecido me agarrar quase em frente do meu prédio, à noite; um bando de bestalhões se sentarem do meu lado por eu ousar ir ao cinema sozinha; um ou outro idiota me passar a mão ou encostar em mim no ônibus, etc etc. Tive muita sorte que escapei, que, ao contrário de várias amigas, não fui estuprada. Nunca apanhei. Nunca engravidei, apesar de quase todos os meus parceiros quererem transar sem camisinha (eu não aceitava). E quando, aos 23 anos, conheci um homem pra chamar de meu, ele era (é ainda) gentil e querido e não achava que eu tinha que obedecer. As pessoas, enxeridas, perguntavam como e por que eu não queria ser mãe, e mandavam que eu usasse salto alto e maquiagem e emagrecesse, mas frankly my dear, eu não dava um damn pra elas. Nunca me senti preterida em nenhum emprego que tive. Se algum colega homem ganhava mais que eu, eu não sabia. Fiz mestrado e doutorado em universidade pública, passei em concurso, e meu gênero não me atrapalhou (nem ajudou) em nada.
Então, nesse meu mundinho privilegiado em que o machismo me afetou muito pouco, por que fui e continuo sendo feminista? Talvez porque nunca achei que o mundo girasse em torno de mim. Não sou pobre e, no entanto, empatizo com pobres, quero que a vida deles melhore, voto em partidos que governam pra eles. Não sou homossexual, mas fico indignada que alguém queira negar-lhes direitos que deveriam ser de todos. Não sou negra, e no entanto reconheço o enorme abismo que ainda existe entre negros e brancos, e por isso sou a favor de medidas paliativas como as cotas. Não sou cachorro nem gato, mas sei que, num mundo em que já não há muito respeito por humanos, também falta respeito pra bichos, e por isso colaboro com uma organização que recolhe e cuida de bichinhos das ruas. Preciso continuar, ou dá pra entender que algo não precisa ser da minha alçada pessoal pra eu lutar por aquilo?
E por incrível que pareça, sempre defendi os direitos dos homens. Como o direito de poder não querer transar com alguém. Nunca achei que um homem fosse menos másculo por brochar comigo ou por não ter um berimbau do tamanho do dos astros pornôs. Aliás, nunca gostei nem acreditei em pornografia. Pra mim aquilo é tão real quanto, sei lá, Senhor dos Anéis. Nunca achei que os meninos têm que tomar a iniciativa. Sempre reparti a conta quando saímos. Sou contra o alistamento obrigatório. Diabos, sou contra o exército. Sou contra guerras. Tô me lixando se um homem ganha menos que eu. Não me importava se um garoto tinha carro, então por que vou me incomodar com isso agora? Luto pra que os meninos possam suportar a pressão e não caírem de bêbados, não colocarem suas vidas em risco dirigindo irresponsavelmente, não terem que fazer absolutamente nada em nome de uma masculinidade fajuta. Luto para que homens possam tocar em outros homens em situações que não envolvam apenas esportes. Luto pra que homens possam ser sensíveis, possam chorar, possam ser carinhosos com sua família, possam resolver conflitos através de métodos não-violentos. Luto para que as prisões sejam lugares mais humanos, sem estupros, sem espancamentos, para que o prisioneiro seja reeducado pra conviver em sociedade. Luto para que os homens se responsabilizem em evitar a gravidez, para que não tenham que lidar com filhos indesejados, para que façam vasectomia, para que seja lançada uma pílula anticoncepcional masculina. Luto para que os homens façam tantos exames de próstrata quanto nós fazemos papanicolau, e previnam-se de um câncer que os mata como nós fazemos o melhor para nos prevenir dos nossos. Luto para que pais tenham licença-paternidade maior. Luto para que as mulheres trabalhem fora e ganhem bem para, assim, nenhum homem precisar sustentar uma casa sozinho. Luto para que homens que queiram exercer profissões predominantemente femininas (empregadas domésticas, enfermeiras, professoras primárias) possam fazê-lo sem problema algum. Luto pra que um homem que queira ser dono de casa não sofra qualquer preconceito. Luto para mudar uma realidade que é desigual, e portanto prejudicial, para ambos os gêneros. Meu feminismo sempre acreditou que é possível melhorar a vida de todos, homens e mulheres. Mesmo que a minha não tenha muito que melhorar.
Até porque se fosse lutar pra melhorar apenas a minha vida, eu não teria por que lutar. E é bem provável que, se eu não acreditasse que o feminismo fosse benéfico pra todo mundo (não só pras mulheres), eu não seria feminista. Feliz Dia Internacional da Mulher.

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