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Monday, July 25, 2011

ALUCINADA LUCIDEZ: “O HOMEM QUE NÃO DORMIA”



Começa hoje, em Salvador, Bahia, o VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. 
Na programação do evento está a Avant première do  filme "O Homem Que Não Dormia" 
(em 29 de julho, no Teatro Castro Alves). O filme é a mais nova produção do 
baiano Edgar Navarro (“SuperOutro”, “Eu me lembro”). No elenco, nomes de peso, como 
Luis Paulino dos Santos, Bertrand Duarte, Evelin Buchegger, Jorge Washington,  Carlos 
Betão,  Pisit Mota,  Nélia Carvalho, dentre outros. Para nós, sulbaianos, é grande o orgulho 
em saber que o ator e poeta Ramon Vane também compõe o elenco.
Nesta entrevista, Navarro fala a respeito de “O homem que não dormia”, filme que tem trilha sonora original assinada por Tuze de Abreu e Andre T, Produção Executiva de Sylvia Abreu, Di Moretti  na Consultoria de Roteiro, Direção de Fotografia de Hamilton Oliveira e Direção de Arte de Moacyr Gramacho.

Edgard Navarro. Foto: Calil Neto

Operária das Ruínas – Quais as expectativas relacionadas com a primeira exibição do filme O Homem Que Não Dormia, por ocasião do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual?

Edgard Navarro - A expectativa é grande. Afinal, foram muitos anos de espera até concluir o trabalho e trazê-lo a público. Fico ansioso em relação à recepção que o filme terá em sua estreia, com a certeza de que nossa equipe, nosso elenco e eu fizemos o melhor que pudemos pra traduzir em fotogramas esta metáfora que pra mim é tão significativa.

OR – Edgard, você se refere ao filme O Homem que não dormia como o “fechamento de um ciclo”. Em que consiste isso?

Foto: Calil Neto

EN - A rigor, não há nada de concreto; nem poderia haver, acho; tudo o que sinto em relação a essa coisa de fechamento de ciclo e tal é de natureza intuitiva; o que (pelo menos pra mim) não quer dizer que não mereça ser levada a sério – eu levo! Levo tão a sério que dediquei muitos anos de minha vida na realização desse filme. Sempre foi assim, aliás: filmes que buscam respostas pra minhas inquietações, as quais terminam sendo comuns a muitas pessoas. Através da empatia se dá o fenômeno da catarse coletiva que a arte propicia. Talvez por ter chegado à maturidade, sinto (sempre intuitivamente) que este é um momento de conclusão de uma busca que já dura tempo demais, até. Ansiedade... Anseio por transpor esse instante de misterioso sortilégio que me tem chegado pelas vias do sonho e do desejo. Entretanto aprendi: enquanto o tempo não trouxer teu abacate...

OR – Quem é e o que representa esse personagem – o homem que não dormia?

Luis Paulino dos Santos interpreta O homem que não dormia. Foto: Calil Neto

EN - De um modo mais abrangente, ele representa o lado trevoso do ser, prenhe de culpas; aquilo que em nós teima em se boicotar em face da vida, que se nega a sentir alegria. O filme vai tratar da etiologia da doença e do único caminho que se oferece para uma cura possível; trata do resgate da integridade primordial da qual fomos apartados ao longo do processo de adequação às regras da vida em sociedade, etc. O desmascaramento e o enfrentamento da verdade de cada uma daquelas personagens coloca-se como uma saída possível, uma brecha por onde talvez a luz do espírito possa fulgurarsuas vidas. Será possível? A resposta está no vento.

OR – A sinopse do filme indica que os personagens, ao serem “lançados num vórtice de acontecimentos insólitos”, libertam-se do “jugo perverso das hipocrisias, medos e doenças”. Seria esse um estado de alucinada lucidez?

Ramon Vane interpreta Pafrente Brasil. Foto: Calil Neto


Jorge Washington, o "lubisone". Foto: Calil Neto
EN - Alucinação e lucidez. Interessante notar que ambas as palavras descendem de uma matriz – luz; e que encerram sentidos opostos. É justamente por aí, nesse limite fronteiriço entre sanidade e loucura que essa parábola expõe seu jogo de mão dupla. De qualquer forma, acho que definir esse estado requer mais profundidade do que a permitida pelo exíguo espaço de uma sinopse. A fazer lucubrações prévias, prefiro que as pessoas assistam ao filme e sejam tocadas por todos os possíveis timbres que o drama evoca e tenta fazer soar no espírito de cada um.


Fernando Neves, o "coronel Abilio"











Nelia Carvalho, "dona Cora". Foto: Calil Neto


OR – Parece que novamente você constituiu uma constelação de personagens provocadores, “escandalosos”... Você pode falar a esse respeito?

Fernando Fulco, o "cego velho".Foto: Calil Neto



Bertho filho, o "cego jovem". Foto: Calil Neto
EN - O mundo em que se vive é cheio de tipos provocadores; apenas colho a matéria de meus delírios poéticos do grande manancial que se oferece a nossos olhares e à nossa sensibilidade. Mas sempre tive uma queda, sim, pelo torto, pela contramão, por aquilo que não é de fácil digestão; ainda não alcancei a leveza que pretendo (talvez consiga essa dádiva através do mote que venho propalando desde o Superoutro: Abaixo a Gravidade!). Mas até hoje as personagens que se impõem a mim são como teoremas a serem demonstrados, enigmas propostos à mítica esfinge – e já sabemos que a resposta a ser dada acho que é justamente: “não sei”.

OR – O filme foi rodado na cidade de Igatu (Chapada Diamantina), também conhecida como a “Machu Picchu do garimpo”. De que maneira essa produção mobilizou a população local?

EN - A população de Xique-Xique de Igatu foi de uma cooperação comovente. Eles se empenharam em nos ajudar em tudo o que precisamos. Pudemos atestar esse fato numa cena final que se dá durante a procissão do Divino (padroeiro local), quando quase todos os habitantes se tornaram figurantes participativos e fervorosos, o que deu mais realismo à cena referida.

OR – Quais são os planos para a divulgação e circulação de O Homem Que Não Dormia?

EN - Primeiro vamos cuidar de nossa estreia em Salvador; depois queremos levar o filme pra uma exibição especial lá em Igatu; num terceiro momento, iremos participar do Festival de Brasília, confiantes de que teremos uma boa acolhida. Depois gostaria de fazer o lançamento do filme com a maior brevidade possível, sem grande estardalhaço, uma cidade de cada vez, com poucas cópias; esse é o meu perfil; talvez avançando aos poucos possamos consolidar a trajetória do filme junto ao nicho que nos é destinado – o público do cinema de arte e quem sabe possamos atingir uma fatia de público das plateias do circuito comercial convencional.

OR – Gostaria de destacar algo que não foi contemplado por esta entrevista?

Fabio Vida, Mariana Freire, Evelin Bucchegger, Bertrand Duarte, Ramon Vane. Foto: Calil Neto

EN - O empenho da equipe e do elenco; todos vestiram a camisa, como se diz, e não mediram sacrifício para alcançarmos o nível de excelência que alcançamos. Desde a turma da arte, do figurino, da fotografia, da produção, sem falar da turma da pesada (literalmente)... Enfim, não é pra nos gabar, não, mas nosso filme está muito bonito!




Blog do filme “O Homem que não dormia”:




O HOMEM QUE NÃO DORMIA
FICHA TÉCNICA



ROTEIRO E DIREÇÃO: EDGARD NAVARRO
CONSULTORIA DE ROTEIRO: DI MORETTI

PRODUÇÃO: SYLVIA ABREU, EDGARD NAVARRO

PRODUÇÃO EXECUTIVA: SYLVIA ABREU

DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: HAMILTON OLIVEIRA

DIREÇÃO DE ARTE: MOACYR GRAMACHO

SOM DIRETO: NICOLAS HALLET

MONTAGEM: CRISTINA AMARAL, PABLO OLIVEIRA

MÚSICA ORIGINAL TRILHA SONORA: TUZÉ DE ABREU, ANDRÉ T

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: TAÍSSA GRISI

1º ASSISTENTE DE DIREÇÃO: ADLER KIBE
2º ASSISTENTE DE DIREÇÃO                      : DAVI CAIRES
3º ASSISTENTE DE DIREÇÃO                      : THIAGO GOMES

SELEÇÃO E PREPARAÇÃO DO ELENCO: MARCONDES DOURADO
PRODUÇÃO DE ELENCO E FIGURAÇÃO: BERTHO FILHO
STILL: CALIL NETO

ASS. DE ARTE: CAROL TANAJURA
ASS. DE ARTE: RAQUEL ROCHA

COORDENADORA DE PRODUÇÃO: RITA CORREIA
ASS. DE PRODUÇÃO: TIAGO CAVALCANTI
ASS. PRODUÇÃO IGATU: MARIUCH
PRODUÇÃO DE BASE: GUISELA

PLATÔ/PRODUTOR LOCAÇÃO: MACARRA VIANNA

CHEFE DE ELÉTRICA: ORLANDO FERNANDES

STEADY CAM: PAULO HERMIDA

FIGURINISTA: DIANA MOREIRA

Tuesday, April 12, 2011

“ABAIXO A GRAVIDADE!” - ENTREVISTA COM O CINEASTA BAIANO EDGARD NAVARRO




Edgard Navarro no set de O Homem que não dormia (2009). Foto: Calil Neto
O baiano Edgard Navarro fala ao blog operariadasruínas e  rememora o seu célebre filme SuperOutro (ganhador dos prêmios de melhor média metragem, melhor diretor e melhor ator – Bertrand Duarte - no Festival de Gramado de 1989). Criativo, irreverente e provocativo, Navarro dirigiu curtas como Alice no País das Mil Novilhas (1976), Porta de Fogo (1984, selecionado para Festival de Havana, Cuba) O Rei do Cagaço (1977); e o longa  Eu me lembro (2006). Atualmente Navarro está concentrado no seu longa O homem que não dormia, que será lançado durante o VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, no mês de julho deste ano, em Salvador.

Na seqüência da entrevista com Navarro o leitor pode conhecer o texto  “O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO  (por Daniela Galdino)

Operária das Ruínas – Edgard, SuperOutro (1989) foi uma produção aclamada no Festival de Gramado e até hoje causa polêmica em suas exibições. Com a distância de 22 anos dessa produção, o que significa, para você, ter feito cinema, na Bahia, nos anos 80?

Edgard Navarro - Comecei em 1976, na bitola superoito, ainda em tempos irrespiráveis de ditadura militar; comecei como forma de resistir a uma espécie de morte a que estavam condenados todos os que não queriam se submeter às regras impostas. Desde então, fazer cinema tem sido uma aventura extraordinária e uma estratégia salvadora de sobrevivência, em meio a um universo hostil que nos tolhia a ação e a liberdade; coisa que de outra forma e em certo sentido ainda acontece até os dias de hoje pra todos os que desejam qualquer sorte de ruptura dos valores estabelecidos. É verdade que há 22 anos as condições eram ainda mais adversas; a maior diferença é que hoje a repressão não se dá explicitamente. Mas não vamos esquecer que sempre existe uma censura estética velada pra quem se recusa a seguir o padrão. Hoje temos que lidar com outros tipos de ditadura – regidos pela lei de mercado, por exemplo.

Operária das Ruínas –  “Abaixo a gravidade!”, “O meu dever é voar”, “Só quem fica acordado nessa cidade sou eu”... são falas impactantes do personagem. Afinal, quem é SuperOutro?


EN - SUPEROUTRO é a encarnação de muitas vozes anônimas, propondo um discurso disfarçado de ininteligível, mas pejado de segundas e terceiras intenções. É a performance desesperada de um pária urbano de contornos tragicômicos, de índole libertária, inconciliável com a realidade circundante, uma espécie de quixote da periferia que, esbulhado em seus direitos mais legítimos, empurrado pra uma não-vida de miséria e opróbrio e agonia, se outorga superpoderes e, ungido por uma fantasia e uma imaginação alucinadas, inventa pra si uma saída estapafúrdia, absurda, mas que ao final se revelará redentora. Quisera eu ser que nem ele, cumprir todos os desideratos do meu coração, incólume às leis naturais que regem este velho mundo de três dimensões. 




Edgard Navarro e Bertrand Duarte no set de SuperOutro, julho de 1987. Foto: Elcio Carriço

Operária das Ruínas – Ao seu ver, em quais aspectos a estética de SuperOutro ainda hoje pode ser considerada como anti-convencional?

EN - A forma sincopada e espasmódica como se coloca a narrativa, revelando um destemor e um experimentalismo saudáveis, próprios da juventude, além de certo inconformismo formal e ideológico e de um despudor flagrante que se impõe, provocador, em oposição à hipocrisia que de modo geral norteia as relações sociais... Acho que aqui já temos elementos suficientes pra credenciar o filme como um autêntico representante daquilo que se convencionou chamar de anticonvencional.

Operária das Ruínas –  Numa determinada cena do filme, o protagonista caminha sobre escombros de um casarão antigo e, ironicamente, canta: “tudo está em seu lugar, graças a Deus...”. Em qual sentido essa imagem pode ser considerada como uma representação  da “Cidade da Bahia”?

EN - A ironia é uma das armas utilizadas pelo filme pra evidenciar certos contrastes que saltam aos olhos e, no entanto, a maioria das pessoas não consegue ver, envolvidas com as atividades de seu cotidiano. No espaço da tela esses contrastes se destacam de forma inapelável e, no caso da cena citada, temos uma representação explícita da cidade da Bahia. Tanto mais porque logo em seguida, ao deparar com revistas pornográficas em meio ao lixo e escombros daquela ruína, a personagem recita os corrosivos (e famosos) versos de Gregório, em que ele pergunta “se furtar e foder bem não são os efes que tem esta terra...”



Operária das Ruínas – Outro aspecto que chama a nossa atenção, a partir do filme, é a reapropriação literária (Gregório de Matos e Castro Alves, sobretudo). A paródia do discurso religioso e político também é um recurso impactante, na narrativa. Como a articulação entre esses discursos (o político, o religioso e o literário) dialogam com a condição marginal do protagonista?






Bertrand Duarte em SuperOutro (1989)

EN - Nosso grande álibi é a loucura da personagem. Esse expediente, dado como premissa, nos permite empreender um voo poético sem limites, admitindo entrechoques de discursos que de outra forma seriam incompatíveis, num mix antropofágico e por vezes aparentemente sem sentido ou pertinência. Num só fôlego, por exemplo, nosso sub-herói recita Dom Pedro I, Getúlio Vargas, Castro Alves, Glauber Rocha, Duque de Caxias, Superman/Oxumarê, compondo monólogos ou diálogos (marxista versus cristão) assintóticos, divergentes, cujo sentido único possível se viabiliza apenas com a cumplicidade do espectador, quando este se permite relaxar a vigilância, deixando de procurar algum nexo por via da lógica do senso comum.

Operária das Ruínas – Como você avalia o atual cenário da produção cinematográfica na Bahia?  E quais os entraves para a democratização do acesso a essas produções em nosso Estado, sobretudo no que se refere aos municípios do interior?




Navarro e Luis Paulino dos Santosem O homem que não dormia. Foto: Calil Neto

EN - Em relação ao panorama de décadas passadas, tem havido uma progressiva (embora lenta) melhoria. O número de filmes e vídeos realizados tem crescido significativamente e o interesse geral pela atividade idem. Nos últimos anos muitos filmes e vídeos produzidos na Bahia receberam prêmios importantes em festivais pelo Brasil e mundo afora. O incremento da qualidade técnica e artística também é flagrante; politicamente a classe está mobilizada como nunca, num movimento iniciado há quase 15 anos. Penso que a perspectiva é boa e que há uma classe numerosa, atenta e informada, preocupada em contribuir e fiscalizar as ações governamentais visando ao aperfeiçoamento do sistema como um todo. Ainda estamos longe do ideal, mas creio que no caminho possível. Quanto ao acesso dos municípios do interior, ainda não existe uma democratização efetiva dos meios de produção. Acontece aí algo parecido com a relação entre o eixo rio/sampa e o nordeste, onde os projetos são sempre preteridos em favor dos sudestinos[1]. Mas em nosso caso sabemos que o pessoal do interior tem se mobilizado, principalmente nas universidades: em Conquista (UESB), Itabuna e Ilhéus (UESC); a criação recente de um curso de cinema na Universidade Federal do Recôncavo. É preciso dar continuidade ao processo de consciência, formação de plateia e organização comunitária pra que os projetos apresentados sejam competitivos nos editais existentes e que venham a ser criados pra atender a uma crescente demanda. Não posso deixar de mencionar que igualmente grave é a ineficiência do setor pra dar escoamento à produção já tão escassa, pois isto se constitui no maior entrave à autossuficiência da atividade. Trata-se de um problema histórico em que concorrem diversos fatores, sendo o mais gritante deles o colonialismo cultural a que foi submetido nosso povo em seu processo de formação. O cinema norte americano se impôs desde sempre no mercado do mundo inteiro e aqui no Brasil sofremos as consequências desse imperialismo cultural que Glauber denunciava com tanta veemência e propriedade. Enfim, o processo é penoso e lento, mas cabe às novas gerações e aos que chegam de longe dos centros de decisão política ocuparem seu espaço e inverterem o sentido desse vetor vicioso.



Edgard Navarro no elenco de O homem que não dormia. Foto: Calil Neto


Operária das Ruínas –  Por quais paragens artísticas  tem transitado atualmente o cineasta Edgard Navarro?




Navarro e Bertrand Duarte no set de O homem que não dormia, em 23 abril de 2009 (dia de São Jorge). Foto: Calil Neto

EN - Estou finalizando meu segundo longa de ficção dentro dos próximos dois meses. Temos estreia marcada pro final de julho, dentro da programação do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, a ser realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Essa estreia será um marco muito importante em minha vida, o encerramento de um ciclo cármico que já se estende muito além do desejável. A sensação é de missão cumprida. Se ainda houver um futuro pra mim no próximo cinema-encarnação, pretendo fazer parte de um time que vai se dedicar a projetos menos onerosos, mais de acordo com nossa realidade – que sabemos ser uma realidade perversa, em que não temos mercado pra nossos filmes. Trabalhando com equipes muito menores, mais ágeis, projetos capazes de driblar esse bem sucedido modelo roliudiano com muita verve e poesia e tudo de belo e bom que houver nessa vida. Quero que a tralha e a parafernália (se houver) seja apenas um detalhe; filmes cuja tônica esteja no vigor do tema, na importância da metáfora, na força da linguagem - criatividade. De sorte que, siderado pela agonia de seu espírito deflagrado, o espectador esqueça essas ninharias de efeitos e todas as pirotecnias do tal modelo (pensado justamente pra tirar o cara de si mesmo); um cinema brecht/godard/glauberiano que empurre nosso homem pro olho do Furachão (seja Furachão o nome de uma personagem); com brandura e suavidade e tesão e alegria e coragem de ser e... o filme vai se chamar ABAIXO A GRAVIDADE! Assim espero poder realizar coisas cada vez mais leves, lúdicas, gozosas; isto sem abrir mão da consciência. Enfim, também “quero aproximar meu olhar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo indo mais fundo” e tal... Talvez nunca mais faça filme nenhum. Apenas poemas visuais. Ou não.



Equipe de gravação O homem que não dormia.




No set de O homem que não dormia (2009)




 
[1] SUDESTINO: por que será que o verbete não existe nos dicionários? A resposta pra a consulta é: nenhuma palavra encontrada.



Ficha Técnica:

Título: SuperOutro

Duração: 48 min  

Ano: 1989 

País: Brasil 

Direção, Roteiro, Montagem/Edição: Edgar Navarro  

Elenco: Bertrand Duarte, Inaldo Santana, Fernando Fulco, Kal Santos, Wilson Mello, Frieda Gutman, Ives Framand, Edneas Santos, Fafá Pimentel, Jorge Reis, Irema Santos, Edísio Patriota. Participação Especial: Nilda Spencer e Deolindo Checucci. 

Empresa(s) Co-produtora(s): Lumbra Cinematográfica  

Direção Fotografia: Lázaro Faria: Edgar Navarro  

Direção de Arte: José Araripe JR. 

Trilha Sonora Original: Celso Aguiar

“O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO


Por: Daniela Galdino


É madrugada!
Mijo bêbado as ruas desertas
A terra deglute e a lua fertiliza os cogumelos
Que com certeza não nascerão com o dia
[...]
(Nada de censura. Ramon Vane)

    
“Acorda, humanidadeeeee!!!!” “Acorda, humanidadeeeee!!!!” Aos berros, insinuando-se pela penumbra de uma cidade inerte, o protagonista de SuperOutro (1989) - filme dirigido pelo cineasta baiano Edgard Navarro - surge em cena de maneira desconcertante, inconformada. O personagem é, para muitos, um louco nocivo, mas aqui é considerado como um insone, um marginal por excelência que carrega a angústia de um andarilho noctâmbulo: “só quem fica acordado nessa cidade sou eu”! (eis outra provocação).
Bertrand Duarte interpreta SuperOutro
Para compreender melhor esse sujeito é necessário transitar por espaços sórdidos, visitar realidades pulsantes, ainda que constantemente invisibilizadas pelos discursos hegemônicos. Isso porque, em sua aventura cotidiana, o personagem caminha sobre  escombros de casarões do centro histórico da “cidade da Bahia”; freqüenta – e divide com outros seres “indesejáveis”- a parte baixa dos viadutos; banha-se em córregos e esgotos; atrapalha o trânsito ordenado das “pessoas de bem”; passeia – sem convite – pela soterópolis dos cartões postais: Mercado Modelo, Igreja do Bonfim, Pelourinho, Praça Castro Alves, Elevador Lacerda. O heroísmo do personagem, nesses termos, reside na sua sobrevivência numa cidade que funciona contra a sua insistente presença.
Importante destacar: a presença do personagem ganha ainda mais destaque com a interpretação do ator baiano Bertrand Duarte, que realiza um impressionante trabalho artístico para viver, na tela, o ex-centrismo potencializado desse personagem. A atuação rendeu a Bertrand o prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, em 1989. O filme também emplacou, no mesmo festival, os prêmios de melhor média metragem e melhor diretor.
 SuperOutro, enquanto personagem provocativo, é também iconoclasta. O seu olhar conhece muito bem as realidades sórdidas, angustiantes, míseras. E é partir dessa postura que são desafiados os discursos hegemônicos – seja o religioso, o político, o econômico capitalista. Entre comer uma oferenda a Exu, invadir a Igreja do Bonfim para arrancar um colar de uma comportada senhora, ler uma revista “pornográfica” recitando Castro Alves ou Gregório de Matos, experimentar a masturbação (e o gozo) a partir de cenas do programa Rolentrando (quadro do apresentador Silvio Santos no canal SBT, exibido nos anos 80 e 90), não há muitas distâncias. No entanto, nesses desafios, nota-se ao menos que o personagem se reapropria de todos esses discursos, podendo, portanto, reescrevê-los,  redimensioná-los. A essa altura o espectador, muito provavelmente, já consegue enxergar outras possibilidades de permanência e sobrevivência. Destaque para uma cena: após furtar o colar de uma fiel na Igreja do Bonfim, o personagem usa a jóia – associada a restos de uma bacia plástica – como oferenda a Iemanjá. E ele canta para ofertar: "Por ti vou matar, vou roubar / Embora tristezas me causes mulher". Vicente Celestino. "Coração materno" em cena.
Cartaz de SuperOutro, 1989
Apenas por tais recursos narrativos o filme de Edgard Navarro já merece destaque. Ao assisti-lo, o espectador percebe, logo inicialmente, que está diante de uma obra intensa e provocativa. 
Vale dizer que o personagem protagonista é um sujeito que fala a partir das margens. Por conta disso tem-se uma ininterrupta postura interrogativa, muito marcada pela contestação da(s) autoridade(s), assim como pelo desafio à noção de centro – enquanto uma realidade imutável e naturalizada. “[...] Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente [...]” (Hutcheon, 1991, p. 96). Portanto, esse sujeito ex-cêntrico é um “forasteiro de dentro” (idem.).
É a partir dessa condição maldisposta que o personagem confere sentido ao real, evidenciando as suas transgressões. Como conseqüência, o espectador de SuperOutro transita pela paisagem urbana, logo, social,  a partir de uma condição deslocada. E desse lugar simbólico deve despir-se dos seus preconceitos para vislumbrar outras possibilidades de interpretação do filme e a sua conexão com a realidade cotidiana. Portanto, é bom atentar para essa advertência que aqui se faz: ao ter contato com SuperOutro, é importante que o espectador assuma uma atitude despojada, quiçá despudorada, para melhor se apropriar da obra (ou despolpar a obra).
Admitamos: a condição ex-cêntrica não é confortável. E esse sentido desconfortável reside, sobretudo, quando há a consciência do próprio deslocamento. Para o ex-cêntrico, é válido lembrar, só existem as hierarquias criadas pelos humanos, e os modelos não gozam da prerrogativa da verdade, não expressam a totalidade do real. A articulação desses elementos revela uma consciência em nada vacilante, um discurso que não se quer original, fonte única de verdade, mas que investe numa postura interrogativa.  Acredito que Edgard Navarro possui – e evidencia – essa consciência.
Quando Navarro privilegia e confere protagonismo a um personagem ex-cêntrico, ele realiza o que a estudiosa Linda Hutcheon (1991) discute: não leva o marginal para o centro – o que poderia indicar uma simples inversão. Ao contrário disso, o que se nota é o investimento numa ótica  deslocada representada pelo protagonista e – espera-se – assumida pelo espectador. Tal estratégia é denominada por Hutcheon como  “posicionamento duplo paradoxal” (p. 98), que consiste em “criticar o interior a partir do exterior e do próprio interior”. Ou seja, assumindo a condição de “cúmplice, porém crítico” (p. 103).
É a partir de tais experiências associadas que são percebidos, em SuperOutro: o caráter desafiador, a reelaboração crítica, além do “[...] poder potencial da ironia, da paródia e do humor na contestação das pretensões universalizantes da arte ‘séria’” (HUTCHEON, 1991, p. 38). A obra dialoga com temáticas que ultrapassam o universo cultural soteropolitano, atingindo, por meio de uma linguagem cortante, não sem o toque da corrosão irônica, a denúncia e problematização de dominações religiosas, políticas e sociais.
Utilizando o recurso discursivo da paródia, nota-se que Edgard Navarro intensifica a apropriação de imagens para usá-las em outros contextos. Isso resulta na reelaboração crítica, afinal, o elemento conchecido “é incorporado, modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes” (HUTCHEON, 1991, p. 45). Os novos sentidos tornam-se polêmicos – e a depender do espectador podem até soar como agressivos. Isso fica evidente quando ocorre a paródia do discurso cristão, aspecto que confere ao filme o tom iconoclasta e surpreendente. Durante a exibição cinematográfica o espectador irá se deparar com afirmações do tipo: “Eu sou o atalho, a mentira e a morte”; “Deus é grande, mas tá mole”.
            Ainda de acordo com Linda Hutcheon (1991), a paródia tem o seu caráter paradoxal, justamente por representar o que a autora chama de “transgressão autorizada”. Isso porque o desafio da paródia “se estabelece no próprio âmago da semelhança” (p. 95). Em outras palavras, trata-se de uma crítica por dentro, um ataque exercido de maneira deliberada. Nessa experimentação há a alternância entre descrever e criticar, estabelecer e desestabilizar as convenções e certezas para apontar “[...] auto-conscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a eles são inerentes” (p. 43).
            Ordem, sentido, controle – mais do que palavras – são aspectos sociais constantemente desafiados e criticados em SuperOutro. As explicações fornecidas pelos sistemas – científicos, econômicos, políticos, religiosos – em lugar de serem consideradas como pressupostos universais,  são vistas e tidas como respostas provisórias construídas socialmente, logo, não são naturais ou imutáveis. No filme de Edgard Navarro o protagonista traz a polêmica para o centro da praça Castro Alves e provoca o confronto entre o discurso político de esquerda, o discurso da pregação evangélica e o silêncio, burburinho ou desdém dos transeuntes. Diante da turbulenta confluência de explicações o personagem – já travestido de herói – busca a sua própria solução e faz paródia: “O Brasil espera que todos cumpram o seu dever. E o meu dever é voar”.

Nem mesmo a repressão policial contém o seu desejo, a sua missão. Se o Superman é o “pássaro da liberdade”, SuperOutro – com sua indigência e fartos recursos imaginativos – subverte as leis e rompe com as expectativas. Isso fica evidenciado com a fala derradeira do personagem: “Abaixo a gravidade!”


 
Referência:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: teoria, história, ficção; tradução  Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 


 Assista ao trailler de SuperOutro ( 20 anos do filme):



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