Tuesday, April 12, 2011

“ABAIXO A GRAVIDADE!” - ENTREVISTA COM O CINEASTA BAIANO EDGARD NAVARRO




Edgard Navarro no set de O Homem que não dormia (2009). Foto: Calil Neto
O baiano Edgard Navarro fala ao blog operariadasruínas e  rememora o seu célebre filme SuperOutro (ganhador dos prêmios de melhor média metragem, melhor diretor e melhor ator – Bertrand Duarte - no Festival de Gramado de 1989). Criativo, irreverente e provocativo, Navarro dirigiu curtas como Alice no País das Mil Novilhas (1976), Porta de Fogo (1984, selecionado para Festival de Havana, Cuba) O Rei do Cagaço (1977); e o longa  Eu me lembro (2006). Atualmente Navarro está concentrado no seu longa O homem que não dormia, que será lançado durante o VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, no mês de julho deste ano, em Salvador.

Na seqüência da entrevista com Navarro o leitor pode conhecer o texto  “O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO  (por Daniela Galdino)

Operária das Ruínas – Edgard, SuperOutro (1989) foi uma produção aclamada no Festival de Gramado e até hoje causa polêmica em suas exibições. Com a distância de 22 anos dessa produção, o que significa, para você, ter feito cinema, na Bahia, nos anos 80?

Edgard Navarro - Comecei em 1976, na bitola superoito, ainda em tempos irrespiráveis de ditadura militar; comecei como forma de resistir a uma espécie de morte a que estavam condenados todos os que não queriam se submeter às regras impostas. Desde então, fazer cinema tem sido uma aventura extraordinária e uma estratégia salvadora de sobrevivência, em meio a um universo hostil que nos tolhia a ação e a liberdade; coisa que de outra forma e em certo sentido ainda acontece até os dias de hoje pra todos os que desejam qualquer sorte de ruptura dos valores estabelecidos. É verdade que há 22 anos as condições eram ainda mais adversas; a maior diferença é que hoje a repressão não se dá explicitamente. Mas não vamos esquecer que sempre existe uma censura estética velada pra quem se recusa a seguir o padrão. Hoje temos que lidar com outros tipos de ditadura – regidos pela lei de mercado, por exemplo.

Operária das Ruínas –  “Abaixo a gravidade!”, “O meu dever é voar”, “Só quem fica acordado nessa cidade sou eu”... são falas impactantes do personagem. Afinal, quem é SuperOutro?


EN - SUPEROUTRO é a encarnação de muitas vozes anônimas, propondo um discurso disfarçado de ininteligível, mas pejado de segundas e terceiras intenções. É a performance desesperada de um pária urbano de contornos tragicômicos, de índole libertária, inconciliável com a realidade circundante, uma espécie de quixote da periferia que, esbulhado em seus direitos mais legítimos, empurrado pra uma não-vida de miséria e opróbrio e agonia, se outorga superpoderes e, ungido por uma fantasia e uma imaginação alucinadas, inventa pra si uma saída estapafúrdia, absurda, mas que ao final se revelará redentora. Quisera eu ser que nem ele, cumprir todos os desideratos do meu coração, incólume às leis naturais que regem este velho mundo de três dimensões. 




Edgard Navarro e Bertrand Duarte no set de SuperOutro, julho de 1987. Foto: Elcio Carriço

Operária das Ruínas – Ao seu ver, em quais aspectos a estética de SuperOutro ainda hoje pode ser considerada como anti-convencional?

EN - A forma sincopada e espasmódica como se coloca a narrativa, revelando um destemor e um experimentalismo saudáveis, próprios da juventude, além de certo inconformismo formal e ideológico e de um despudor flagrante que se impõe, provocador, em oposição à hipocrisia que de modo geral norteia as relações sociais... Acho que aqui já temos elementos suficientes pra credenciar o filme como um autêntico representante daquilo que se convencionou chamar de anticonvencional.

Operária das Ruínas –  Numa determinada cena do filme, o protagonista caminha sobre escombros de um casarão antigo e, ironicamente, canta: “tudo está em seu lugar, graças a Deus...”. Em qual sentido essa imagem pode ser considerada como uma representação  da “Cidade da Bahia”?

EN - A ironia é uma das armas utilizadas pelo filme pra evidenciar certos contrastes que saltam aos olhos e, no entanto, a maioria das pessoas não consegue ver, envolvidas com as atividades de seu cotidiano. No espaço da tela esses contrastes se destacam de forma inapelável e, no caso da cena citada, temos uma representação explícita da cidade da Bahia. Tanto mais porque logo em seguida, ao deparar com revistas pornográficas em meio ao lixo e escombros daquela ruína, a personagem recita os corrosivos (e famosos) versos de Gregório, em que ele pergunta “se furtar e foder bem não são os efes que tem esta terra...”



Operária das Ruínas – Outro aspecto que chama a nossa atenção, a partir do filme, é a reapropriação literária (Gregório de Matos e Castro Alves, sobretudo). A paródia do discurso religioso e político também é um recurso impactante, na narrativa. Como a articulação entre esses discursos (o político, o religioso e o literário) dialogam com a condição marginal do protagonista?






Bertrand Duarte em SuperOutro (1989)

EN - Nosso grande álibi é a loucura da personagem. Esse expediente, dado como premissa, nos permite empreender um voo poético sem limites, admitindo entrechoques de discursos que de outra forma seriam incompatíveis, num mix antropofágico e por vezes aparentemente sem sentido ou pertinência. Num só fôlego, por exemplo, nosso sub-herói recita Dom Pedro I, Getúlio Vargas, Castro Alves, Glauber Rocha, Duque de Caxias, Superman/Oxumarê, compondo monólogos ou diálogos (marxista versus cristão) assintóticos, divergentes, cujo sentido único possível se viabiliza apenas com a cumplicidade do espectador, quando este se permite relaxar a vigilância, deixando de procurar algum nexo por via da lógica do senso comum.

Operária das Ruínas – Como você avalia o atual cenário da produção cinematográfica na Bahia?  E quais os entraves para a democratização do acesso a essas produções em nosso Estado, sobretudo no que se refere aos municípios do interior?




Navarro e Luis Paulino dos Santosem O homem que não dormia. Foto: Calil Neto

EN - Em relação ao panorama de décadas passadas, tem havido uma progressiva (embora lenta) melhoria. O número de filmes e vídeos realizados tem crescido significativamente e o interesse geral pela atividade idem. Nos últimos anos muitos filmes e vídeos produzidos na Bahia receberam prêmios importantes em festivais pelo Brasil e mundo afora. O incremento da qualidade técnica e artística também é flagrante; politicamente a classe está mobilizada como nunca, num movimento iniciado há quase 15 anos. Penso que a perspectiva é boa e que há uma classe numerosa, atenta e informada, preocupada em contribuir e fiscalizar as ações governamentais visando ao aperfeiçoamento do sistema como um todo. Ainda estamos longe do ideal, mas creio que no caminho possível. Quanto ao acesso dos municípios do interior, ainda não existe uma democratização efetiva dos meios de produção. Acontece aí algo parecido com a relação entre o eixo rio/sampa e o nordeste, onde os projetos são sempre preteridos em favor dos sudestinos[1]. Mas em nosso caso sabemos que o pessoal do interior tem se mobilizado, principalmente nas universidades: em Conquista (UESB), Itabuna e Ilhéus (UESC); a criação recente de um curso de cinema na Universidade Federal do Recôncavo. É preciso dar continuidade ao processo de consciência, formação de plateia e organização comunitária pra que os projetos apresentados sejam competitivos nos editais existentes e que venham a ser criados pra atender a uma crescente demanda. Não posso deixar de mencionar que igualmente grave é a ineficiência do setor pra dar escoamento à produção já tão escassa, pois isto se constitui no maior entrave à autossuficiência da atividade. Trata-se de um problema histórico em que concorrem diversos fatores, sendo o mais gritante deles o colonialismo cultural a que foi submetido nosso povo em seu processo de formação. O cinema norte americano se impôs desde sempre no mercado do mundo inteiro e aqui no Brasil sofremos as consequências desse imperialismo cultural que Glauber denunciava com tanta veemência e propriedade. Enfim, o processo é penoso e lento, mas cabe às novas gerações e aos que chegam de longe dos centros de decisão política ocuparem seu espaço e inverterem o sentido desse vetor vicioso.



Edgard Navarro no elenco de O homem que não dormia. Foto: Calil Neto


Operária das Ruínas –  Por quais paragens artísticas  tem transitado atualmente o cineasta Edgard Navarro?




Navarro e Bertrand Duarte no set de O homem que não dormia, em 23 abril de 2009 (dia de São Jorge). Foto: Calil Neto

EN - Estou finalizando meu segundo longa de ficção dentro dos próximos dois meses. Temos estreia marcada pro final de julho, dentro da programação do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, a ser realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Essa estreia será um marco muito importante em minha vida, o encerramento de um ciclo cármico que já se estende muito além do desejável. A sensação é de missão cumprida. Se ainda houver um futuro pra mim no próximo cinema-encarnação, pretendo fazer parte de um time que vai se dedicar a projetos menos onerosos, mais de acordo com nossa realidade – que sabemos ser uma realidade perversa, em que não temos mercado pra nossos filmes. Trabalhando com equipes muito menores, mais ágeis, projetos capazes de driblar esse bem sucedido modelo roliudiano com muita verve e poesia e tudo de belo e bom que houver nessa vida. Quero que a tralha e a parafernália (se houver) seja apenas um detalhe; filmes cuja tônica esteja no vigor do tema, na importância da metáfora, na força da linguagem - criatividade. De sorte que, siderado pela agonia de seu espírito deflagrado, o espectador esqueça essas ninharias de efeitos e todas as pirotecnias do tal modelo (pensado justamente pra tirar o cara de si mesmo); um cinema brecht/godard/glauberiano que empurre nosso homem pro olho do Furachão (seja Furachão o nome de uma personagem); com brandura e suavidade e tesão e alegria e coragem de ser e... o filme vai se chamar ABAIXO A GRAVIDADE! Assim espero poder realizar coisas cada vez mais leves, lúdicas, gozosas; isto sem abrir mão da consciência. Enfim, também “quero aproximar meu olhar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo indo mais fundo” e tal... Talvez nunca mais faça filme nenhum. Apenas poemas visuais. Ou não.



Equipe de gravação O homem que não dormia.




No set de O homem que não dormia (2009)




 
[1] SUDESTINO: por que será que o verbete não existe nos dicionários? A resposta pra a consulta é: nenhuma palavra encontrada.



Ficha Técnica:

Título: SuperOutro

Duração: 48 min  

Ano: 1989 

País: Brasil 

Direção, Roteiro, Montagem/Edição: Edgar Navarro  

Elenco: Bertrand Duarte, Inaldo Santana, Fernando Fulco, Kal Santos, Wilson Mello, Frieda Gutman, Ives Framand, Edneas Santos, Fafá Pimentel, Jorge Reis, Irema Santos, Edísio Patriota. Participação Especial: Nilda Spencer e Deolindo Checucci. 

Empresa(s) Co-produtora(s): Lumbra Cinematográfica  

Direção Fotografia: Lázaro Faria: Edgar Navarro  

Direção de Arte: José Araripe JR. 

Trilha Sonora Original: Celso Aguiar

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