Tuesday, April 12, 2011

“O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO


Por: Daniela Galdino


É madrugada!
Mijo bêbado as ruas desertas
A terra deglute e a lua fertiliza os cogumelos
Que com certeza não nascerão com o dia
[...]
(Nada de censura. Ramon Vane)

    
“Acorda, humanidadeeeee!!!!” “Acorda, humanidadeeeee!!!!” Aos berros, insinuando-se pela penumbra de uma cidade inerte, o protagonista de SuperOutro (1989) - filme dirigido pelo cineasta baiano Edgard Navarro - surge em cena de maneira desconcertante, inconformada. O personagem é, para muitos, um louco nocivo, mas aqui é considerado como um insone, um marginal por excelência que carrega a angústia de um andarilho noctâmbulo: “só quem fica acordado nessa cidade sou eu”! (eis outra provocação).
Bertrand Duarte interpreta SuperOutro
Para compreender melhor esse sujeito é necessário transitar por espaços sórdidos, visitar realidades pulsantes, ainda que constantemente invisibilizadas pelos discursos hegemônicos. Isso porque, em sua aventura cotidiana, o personagem caminha sobre  escombros de casarões do centro histórico da “cidade da Bahia”; freqüenta – e divide com outros seres “indesejáveis”- a parte baixa dos viadutos; banha-se em córregos e esgotos; atrapalha o trânsito ordenado das “pessoas de bem”; passeia – sem convite – pela soterópolis dos cartões postais: Mercado Modelo, Igreja do Bonfim, Pelourinho, Praça Castro Alves, Elevador Lacerda. O heroísmo do personagem, nesses termos, reside na sua sobrevivência numa cidade que funciona contra a sua insistente presença.
Importante destacar: a presença do personagem ganha ainda mais destaque com a interpretação do ator baiano Bertrand Duarte, que realiza um impressionante trabalho artístico para viver, na tela, o ex-centrismo potencializado desse personagem. A atuação rendeu a Bertrand o prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, em 1989. O filme também emplacou, no mesmo festival, os prêmios de melhor média metragem e melhor diretor.
 SuperOutro, enquanto personagem provocativo, é também iconoclasta. O seu olhar conhece muito bem as realidades sórdidas, angustiantes, míseras. E é partir dessa postura que são desafiados os discursos hegemônicos – seja o religioso, o político, o econômico capitalista. Entre comer uma oferenda a Exu, invadir a Igreja do Bonfim para arrancar um colar de uma comportada senhora, ler uma revista “pornográfica” recitando Castro Alves ou Gregório de Matos, experimentar a masturbação (e o gozo) a partir de cenas do programa Rolentrando (quadro do apresentador Silvio Santos no canal SBT, exibido nos anos 80 e 90), não há muitas distâncias. No entanto, nesses desafios, nota-se ao menos que o personagem se reapropria de todos esses discursos, podendo, portanto, reescrevê-los,  redimensioná-los. A essa altura o espectador, muito provavelmente, já consegue enxergar outras possibilidades de permanência e sobrevivência. Destaque para uma cena: após furtar o colar de uma fiel na Igreja do Bonfim, o personagem usa a jóia – associada a restos de uma bacia plástica – como oferenda a Iemanjá. E ele canta para ofertar: "Por ti vou matar, vou roubar / Embora tristezas me causes mulher". Vicente Celestino. "Coração materno" em cena.
Cartaz de SuperOutro, 1989
Apenas por tais recursos narrativos o filme de Edgard Navarro já merece destaque. Ao assisti-lo, o espectador percebe, logo inicialmente, que está diante de uma obra intensa e provocativa. 
Vale dizer que o personagem protagonista é um sujeito que fala a partir das margens. Por conta disso tem-se uma ininterrupta postura interrogativa, muito marcada pela contestação da(s) autoridade(s), assim como pelo desafio à noção de centro – enquanto uma realidade imutável e naturalizada. “[...] Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente [...]” (Hutcheon, 1991, p. 96). Portanto, esse sujeito ex-cêntrico é um “forasteiro de dentro” (idem.).
É a partir dessa condição maldisposta que o personagem confere sentido ao real, evidenciando as suas transgressões. Como conseqüência, o espectador de SuperOutro transita pela paisagem urbana, logo, social,  a partir de uma condição deslocada. E desse lugar simbólico deve despir-se dos seus preconceitos para vislumbrar outras possibilidades de interpretação do filme e a sua conexão com a realidade cotidiana. Portanto, é bom atentar para essa advertência que aqui se faz: ao ter contato com SuperOutro, é importante que o espectador assuma uma atitude despojada, quiçá despudorada, para melhor se apropriar da obra (ou despolpar a obra).
Admitamos: a condição ex-cêntrica não é confortável. E esse sentido desconfortável reside, sobretudo, quando há a consciência do próprio deslocamento. Para o ex-cêntrico, é válido lembrar, só existem as hierarquias criadas pelos humanos, e os modelos não gozam da prerrogativa da verdade, não expressam a totalidade do real. A articulação desses elementos revela uma consciência em nada vacilante, um discurso que não se quer original, fonte única de verdade, mas que investe numa postura interrogativa.  Acredito que Edgard Navarro possui – e evidencia – essa consciência.
Quando Navarro privilegia e confere protagonismo a um personagem ex-cêntrico, ele realiza o que a estudiosa Linda Hutcheon (1991) discute: não leva o marginal para o centro – o que poderia indicar uma simples inversão. Ao contrário disso, o que se nota é o investimento numa ótica  deslocada representada pelo protagonista e – espera-se – assumida pelo espectador. Tal estratégia é denominada por Hutcheon como  “posicionamento duplo paradoxal” (p. 98), que consiste em “criticar o interior a partir do exterior e do próprio interior”. Ou seja, assumindo a condição de “cúmplice, porém crítico” (p. 103).
É a partir de tais experiências associadas que são percebidos, em SuperOutro: o caráter desafiador, a reelaboração crítica, além do “[...] poder potencial da ironia, da paródia e do humor na contestação das pretensões universalizantes da arte ‘séria’” (HUTCHEON, 1991, p. 38). A obra dialoga com temáticas que ultrapassam o universo cultural soteropolitano, atingindo, por meio de uma linguagem cortante, não sem o toque da corrosão irônica, a denúncia e problematização de dominações religiosas, políticas e sociais.
Utilizando o recurso discursivo da paródia, nota-se que Edgard Navarro intensifica a apropriação de imagens para usá-las em outros contextos. Isso resulta na reelaboração crítica, afinal, o elemento conchecido “é incorporado, modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes” (HUTCHEON, 1991, p. 45). Os novos sentidos tornam-se polêmicos – e a depender do espectador podem até soar como agressivos. Isso fica evidente quando ocorre a paródia do discurso cristão, aspecto que confere ao filme o tom iconoclasta e surpreendente. Durante a exibição cinematográfica o espectador irá se deparar com afirmações do tipo: “Eu sou o atalho, a mentira e a morte”; “Deus é grande, mas tá mole”.
            Ainda de acordo com Linda Hutcheon (1991), a paródia tem o seu caráter paradoxal, justamente por representar o que a autora chama de “transgressão autorizada”. Isso porque o desafio da paródia “se estabelece no próprio âmago da semelhança” (p. 95). Em outras palavras, trata-se de uma crítica por dentro, um ataque exercido de maneira deliberada. Nessa experimentação há a alternância entre descrever e criticar, estabelecer e desestabilizar as convenções e certezas para apontar “[...] auto-conscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a eles são inerentes” (p. 43).
            Ordem, sentido, controle – mais do que palavras – são aspectos sociais constantemente desafiados e criticados em SuperOutro. As explicações fornecidas pelos sistemas – científicos, econômicos, políticos, religiosos – em lugar de serem consideradas como pressupostos universais,  são vistas e tidas como respostas provisórias construídas socialmente, logo, não são naturais ou imutáveis. No filme de Edgard Navarro o protagonista traz a polêmica para o centro da praça Castro Alves e provoca o confronto entre o discurso político de esquerda, o discurso da pregação evangélica e o silêncio, burburinho ou desdém dos transeuntes. Diante da turbulenta confluência de explicações o personagem – já travestido de herói – busca a sua própria solução e faz paródia: “O Brasil espera que todos cumpram o seu dever. E o meu dever é voar”.

Nem mesmo a repressão policial contém o seu desejo, a sua missão. Se o Superman é o “pássaro da liberdade”, SuperOutro – com sua indigência e fartos recursos imaginativos – subverte as leis e rompe com as expectativas. Isso fica evidenciado com a fala derradeira do personagem: “Abaixo a gravidade!”


 
Referência:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: teoria, história, ficção; tradução  Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 


 Assista ao trailler de SuperOutro ( 20 anos do filme):



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