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Wednesday, April 20, 2011

“ACORDA, HUMANIDADEEE!” - Entrevista com o ator baiano Bertrand Duarte





Bertrand Duarte. Arquivo pessoal. Foto: Célia Aguiar

O premiado ator, produtor e publicitário baiano Bertrand Duarte, como artista multifacetado que é, fala das suas experiências no cinema brasileiro/chileno, das incursões pela TV e também da  pretensão de retornar ao teatro. Nessa conversa descontraída e inteligente, Bertrand também relembra a sua célebre atuação no filme SuperOutro (1989, Edgard Navarro). Com esta entrevista o blog operáriadasruínas conclui a trilogia em homenagem aos 22 anos de SuperOutro.

Operária das Ruínas – Bertrand, a sua atuação em SuperOutro rendeu o prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, em 2009. O que representa esse trabalho para a sua carreira?

Bertrand Duarte - Representa o corte do cordão umbilical. A expansão da minha referência para outros estados, principalmente, para São Paulo, onde conheci Emílio de Biasi (que me levou para a Rede Globo) e o grande cineasta Carlos Reinchebach, que logo depois de Gramado me presenteou como protagonista de uma das obras mais importantes de sua carreira – segundo a crítica e imprensa especializadas em seus filmes - que foi Alma Corsária (1996). Este belo filme de Carlão nos rendeu os prêmios de melhor ator no Festival de Cuiabá, melhor filme em Brasília e no Festival de Pésaro, na Itália.




Cartaz de SuperOutro (Edgard Navarro, 1989)



Cartaz de Alma Corsaria (Carlos Reinchebach, 1996)

  






Operária das Ruínas – “Eu tô ficando com a cabeça podre”, diz o personagem a certa altura do filme. Afinal, quem é SuperOutro?

BD - SuperOutro é a luta contra o NÃO sistemático e irreversível. É nadar contra a corrente. É acreditar que se pode voar sem asas ou com as asas cortadas. Quem vê o filme passa a entender isso de forma clara, lúcida.

Operária das Ruínas – Ler revista “pornográfica” recitando Castro Alves ou Gregório de Matos, masturbar-se e gozar vendo o programa televisivo Rolentrando. O que você pode destacar do processo de composição desse complexo personagem?





Cena de SuperOutro (Edgard Navarro, 1989)
BD - O SuperOutro é um homem comum sofrendo de esquizofrenia, desesperado com a perda de referências e cada vez mais empurrado para o precipício das misérias social e econômica. Quem me ajudou a construí-lo foi Fernando Bélens. Fizemos uma preparação sistemática in door bastante rica de informações (pois Fernando é também médico psiquiatra) e depois partimos para as ruas com a finalidade de me ambientar no principal espaço/cenário do filme, que são vários pontos turísticos da cidade de Salvador. Foi sensacional porque a partir daí eu pude ignorar quem me olhava ou me achava estranho. Nenhum louco se preocupa com sua aparência ou com o que está vestindo, não é verdade? Isso foi fundamental para incorporá-lo e baixar a fé cênica. Tenho muito orgulho quando dizem pra mim, como por exemplo, o que me falou recentemente a diretora Gabriela Barreto, que é fã do filme: “Nunca vi uma interpretação tão verdadeira, tão visceral”. Não posso deixar de citar a sinergia que existiu e que ainda tenho com Edgard Navarro. Nossa ligação no set é muito produtiva e a criação brota entre o que ele deseja e o que eu consigo materializar na interpretação. É muito forte mesmo. Em O homem que não dormia (filme que tem estréia marcada para julho deste ano) creio que repetimos a dose.

Operária das Ruínas – Durante as gravações das cenas de rua você se recorda de algum fato inusitado ou curioso? Como a população  local reagia às provocações daí advindas?




Bertrand Duarte e Edgard Navarro durante as filmagens do Superoutro. Foto: Élcio Carriço

BD - Creio que se fosse nos dias atuais, com a paranóia ainda mais evidente em relação à violência de psicopatas e de marginais, teríamos que ter redobrado a nossa preocupação quanto às reações de populares e da polícia. As pessoas se assustavam comigo quando eu chegava sozinho nas locações. Fiz isso sistematicamente enquanto não estava filmando, para não virar um personagem carnavalizado ou caricato e pra não perder a tensão de cada cena. Claro que tive a proteção de Bélens e de algumas pessoas que sempre ficavam por perto. Em algumas cenas a câmera ficava escondida, exatamente para utilizar os transeuntes na sua naturalidade e reação totais.


Operária das Ruínas – Diante da condição marginal do personagem, o que representa sua a missão ou o seu dever  (voar)?

BD - Creio que essa frase “O meu dever é voar” arrebata o sentido da poesia ou da transgressão em quem a assiste. Um cinema cheio, ouvindo essa frase, naquele momento do filme, quando ele parte para realizar essa promessa insana, deixa o espectador invejando aquele ser tão convicto da liberdade que ele tem: voar! Também já percebi que as pessoas se deliciam com o patético que vai “se lenhar”, pois não vai voar coisa nenhuma e o grande espetáculo será vê-lo – quem sabe - espatifando-se na próxima cena.

Operária das Ruínas – Nessa distância de 22 anos do lançamento de SuperOutro, quais trabalhos você destaca na sua trajetória de ator?

BD - Alma Corsária, de Carlos Reinchebach; Memorial de Maria Moura (Rede Globo);  Uma mulher vestida de sol (Rede Globo); Pau Brasil, de Fernando Bélens; Dawson Isla 10, de Miguel Littín (Chile), que entra em cartaz no Brasil este ano.



O personagem Rivaldo Torres em Alma Corsária (1996). Foto: Alexandre
 



O personagem Nives em Pau Brasil (Fernando Bélens). Foto: Henrique Andrade


Operária das Ruínas – Fazer cinema na Bahia e no Brasil – ontem e hoje. Quais são os principais desafios?

BD - Hoje está mais fácil do que na época do Plano Collor, por conta do aprimoramento das leis de incentivo e também pela tecnologia, que possibilita fazer um filme em sistema digital, embora pra isso se exija também muita qualidade de realização. Portanto, fazer é mais fácil. O grande dilema do cinema brasileiro, que está fora do esquema das grandes distribuidoras e exibidoras, é a distribuição. Precisamos popularizar mais o cinema e fazer com que tenhamos mais canais de exibição, que não seja só a sala de convencional, mas ocupar as TVs a cabo e internet, por exemplo.

Operária das Ruínas – Quais planos povoam a cabeça do ator Bertrand Duarte neste momento?

BD - Estou em captação de um projeto para voltar ao teatro, e executando outro direcionado para rádio e cine/TV. Também numa torcida muito grande para a estréia de meu reencontro com Edgard Navarro em O homem que não dormia.



No set com o diretor Miguel Littín flimando Dawson isla 10. Foto: Álvaro Rivera
















Miguel Lawner em Dawson Isla 10. Foto: Álvaro Rivera













Conheça outros trabalhos de Bertrand Duarte:

CINEMA:


SUPEROUTRO (protagonista)

Média metragem roteirizado e dirigido por Edgard Navarro – 1988 – Salvador - BA

Prêmios de Melhor Ator, diretor e roteiro do Festival de Gramado 1989


ALMA CORSÁRIA (protagonista)
Longa metragem roteirizado e dirigido por Carlos Reinchebach – 1996 – São Paulo – SP

Melhora ator no Festival de Curitiba - 1998

Melhor Filme no Festival de Brasília – 1997

Melhor Filme no Festival Internacional de Pésaro – Itália


CHEQUE MATE
Curta metragem dirigido por Emanuel Requião – 2004 – Salvador – BA

FALSA LOURA (participação especial)
Longa metragem roteirizado e dirigido por Carlos Reinchebach – 2006 – São Paulo – SP

ESPETO
Curta metragem roteirizado e dirigido por Guilherme Marback – 2006 – São Paulo – SP

PAU BRASIL (protagonista
Longa metragem dirigido por Fernando Belens – 2007 – Salvador  – BA
Melhor Ator no Festival de Curitiba
Melhor Direção de Arte
Melhores atriz coadjuvante

MEIO POETA
Curta metragem dirigido por Caco Monteiro – 2007 – São Paulo – SP

DAWSON - ISLA 10 (INÉDITO)
Longa metragem de Miguel Littin – 2009- Chile / Brasil (ESTREIA NO BRASIL MARÇO 2010)
Indicado pelo Chile à academia de Hollywood para Oscar de Melhor Filme Estrangeiro 2009

O HOMEM QUE NÃO DORMIA (protagonista)
Longa metragem de Edgard Navarro – 2008 – Salvador – BA (INÉDITO)

ROMERO (protagonista)
Curta metragem projeto para minissérie TV. (INÉDITO)


TELEVISÃO:

“RENASCER”

Rede GLOBO - Novela dirigida por Luiz Fernando Carvalho – 1994

“MEMORIAL DE MARIA MOURA”

Rede GLOBO – Seriado dirigida por Luiz Fernando Carvalho – 1995

“UMA MULHER VESTIDA DE SOL”

Rede GLOBO – Especial dirigido por Luiz Fernando Carvalho – 1996

“O COMPADRE DE OGUM”

Rede GLOBO – Especial dirigido por Roberto Talma – 1998

“ANTÔNIA”
Rede GLOBO – Seriado dirigido por Tata Amaral – 2006

“AMAZÔNIA”
Rede GLOBO – Seriado de Glória Peres – 2007

“A FAVORITA”
Rede GLOBO – Novela de João Emanuel – 2008


TEATRO:

“ESTÓRIA DE LENÇOS E VENTOS” (INFANTIL)
de Ilo Krugli – Direção Antonia Adorno
Teatro Santo Antônio – Junho / 80

“O AMOR DO NÃO”

de Fauzi Arap – Direção Eduardo Cabús
Teatro Gamboa – Dezembro / 80 a fevereiro / 81
Prêmio Martim Gonçalves (Melhor Ator Coadjuvante de 1980)

“SABARÁ”

de Ana Maria Pedreira Franco – Direção Carlos Caetano
Teatro Vila Velha – Outubro / 81

“O REI DA VELA”

de Oswald de Andrade – Direção Walter Saixas
Teatro do ICBA – Setembro e outubro / 82
Indicado para o Prêmio Martim Gonçalves (Melhor Ator de 1982)

“15 ANOS DEPOIS”
de Bráulio Tavares – direção Arly Arnaud
Solar do Unhão – Janeiro / 83

“DECAMERÃO”

de Bocaccio – Adaptação Cleise Mendes – Direção Luiz Marfuz
Teatro Ipanema (Rio de Janeiro) – Abril e maio / 83

“OS MISTÉRIOS DO SEXO”

de Coelho Neto – Direção Manoel Lopes Pontes
Teatro Vila Velha – Agosto / 83

“A MORTA”

de Oswald de Andrade – direção Walter Seixas
Teatro do ICBA – Novembro e Dezembro / 83

“A SERPENTE”

de Nelson Rodrigues – direção Walter Seixas
Sala do Coro do Teatro Castro Alves – Maio / 84

“MARIA GOIABADA”

de Fernando Mello – Direção Álvaro Guimarães
Teatro Vila Velha – Outubro / 84

EM ALTO MAR

de Slawomir Mrozeck – direção Ewald Hackler
Teatro Santo Antonio – junho e julho / 85

“DEUS”

de Wood Allen – direção Edgard Navarro
Teatro Santo Antonio – junho e julho / 86

Tuesday, April 12, 2011

“ABAIXO A GRAVIDADE!” - ENTREVISTA COM O CINEASTA BAIANO EDGARD NAVARRO




Edgard Navarro no set de O Homem que não dormia (2009). Foto: Calil Neto
O baiano Edgard Navarro fala ao blog operariadasruínas e  rememora o seu célebre filme SuperOutro (ganhador dos prêmios de melhor média metragem, melhor diretor e melhor ator – Bertrand Duarte - no Festival de Gramado de 1989). Criativo, irreverente e provocativo, Navarro dirigiu curtas como Alice no País das Mil Novilhas (1976), Porta de Fogo (1984, selecionado para Festival de Havana, Cuba) O Rei do Cagaço (1977); e o longa  Eu me lembro (2006). Atualmente Navarro está concentrado no seu longa O homem que não dormia, que será lançado durante o VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, no mês de julho deste ano, em Salvador.

Na seqüência da entrevista com Navarro o leitor pode conhecer o texto  “O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO  (por Daniela Galdino)

Operária das Ruínas – Edgard, SuperOutro (1989) foi uma produção aclamada no Festival de Gramado e até hoje causa polêmica em suas exibições. Com a distância de 22 anos dessa produção, o que significa, para você, ter feito cinema, na Bahia, nos anos 80?

Edgard Navarro - Comecei em 1976, na bitola superoito, ainda em tempos irrespiráveis de ditadura militar; comecei como forma de resistir a uma espécie de morte a que estavam condenados todos os que não queriam se submeter às regras impostas. Desde então, fazer cinema tem sido uma aventura extraordinária e uma estratégia salvadora de sobrevivência, em meio a um universo hostil que nos tolhia a ação e a liberdade; coisa que de outra forma e em certo sentido ainda acontece até os dias de hoje pra todos os que desejam qualquer sorte de ruptura dos valores estabelecidos. É verdade que há 22 anos as condições eram ainda mais adversas; a maior diferença é que hoje a repressão não se dá explicitamente. Mas não vamos esquecer que sempre existe uma censura estética velada pra quem se recusa a seguir o padrão. Hoje temos que lidar com outros tipos de ditadura – regidos pela lei de mercado, por exemplo.

Operária das Ruínas –  “Abaixo a gravidade!”, “O meu dever é voar”, “Só quem fica acordado nessa cidade sou eu”... são falas impactantes do personagem. Afinal, quem é SuperOutro?


EN - SUPEROUTRO é a encarnação de muitas vozes anônimas, propondo um discurso disfarçado de ininteligível, mas pejado de segundas e terceiras intenções. É a performance desesperada de um pária urbano de contornos tragicômicos, de índole libertária, inconciliável com a realidade circundante, uma espécie de quixote da periferia que, esbulhado em seus direitos mais legítimos, empurrado pra uma não-vida de miséria e opróbrio e agonia, se outorga superpoderes e, ungido por uma fantasia e uma imaginação alucinadas, inventa pra si uma saída estapafúrdia, absurda, mas que ao final se revelará redentora. Quisera eu ser que nem ele, cumprir todos os desideratos do meu coração, incólume às leis naturais que regem este velho mundo de três dimensões. 




Edgard Navarro e Bertrand Duarte no set de SuperOutro, julho de 1987. Foto: Elcio Carriço

Operária das Ruínas – Ao seu ver, em quais aspectos a estética de SuperOutro ainda hoje pode ser considerada como anti-convencional?

EN - A forma sincopada e espasmódica como se coloca a narrativa, revelando um destemor e um experimentalismo saudáveis, próprios da juventude, além de certo inconformismo formal e ideológico e de um despudor flagrante que se impõe, provocador, em oposição à hipocrisia que de modo geral norteia as relações sociais... Acho que aqui já temos elementos suficientes pra credenciar o filme como um autêntico representante daquilo que se convencionou chamar de anticonvencional.

Operária das Ruínas –  Numa determinada cena do filme, o protagonista caminha sobre escombros de um casarão antigo e, ironicamente, canta: “tudo está em seu lugar, graças a Deus...”. Em qual sentido essa imagem pode ser considerada como uma representação  da “Cidade da Bahia”?

EN - A ironia é uma das armas utilizadas pelo filme pra evidenciar certos contrastes que saltam aos olhos e, no entanto, a maioria das pessoas não consegue ver, envolvidas com as atividades de seu cotidiano. No espaço da tela esses contrastes se destacam de forma inapelável e, no caso da cena citada, temos uma representação explícita da cidade da Bahia. Tanto mais porque logo em seguida, ao deparar com revistas pornográficas em meio ao lixo e escombros daquela ruína, a personagem recita os corrosivos (e famosos) versos de Gregório, em que ele pergunta “se furtar e foder bem não são os efes que tem esta terra...”



Operária das Ruínas – Outro aspecto que chama a nossa atenção, a partir do filme, é a reapropriação literária (Gregório de Matos e Castro Alves, sobretudo). A paródia do discurso religioso e político também é um recurso impactante, na narrativa. Como a articulação entre esses discursos (o político, o religioso e o literário) dialogam com a condição marginal do protagonista?






Bertrand Duarte em SuperOutro (1989)

EN - Nosso grande álibi é a loucura da personagem. Esse expediente, dado como premissa, nos permite empreender um voo poético sem limites, admitindo entrechoques de discursos que de outra forma seriam incompatíveis, num mix antropofágico e por vezes aparentemente sem sentido ou pertinência. Num só fôlego, por exemplo, nosso sub-herói recita Dom Pedro I, Getúlio Vargas, Castro Alves, Glauber Rocha, Duque de Caxias, Superman/Oxumarê, compondo monólogos ou diálogos (marxista versus cristão) assintóticos, divergentes, cujo sentido único possível se viabiliza apenas com a cumplicidade do espectador, quando este se permite relaxar a vigilância, deixando de procurar algum nexo por via da lógica do senso comum.

Operária das Ruínas – Como você avalia o atual cenário da produção cinematográfica na Bahia?  E quais os entraves para a democratização do acesso a essas produções em nosso Estado, sobretudo no que se refere aos municípios do interior?




Navarro e Luis Paulino dos Santosem O homem que não dormia. Foto: Calil Neto

EN - Em relação ao panorama de décadas passadas, tem havido uma progressiva (embora lenta) melhoria. O número de filmes e vídeos realizados tem crescido significativamente e o interesse geral pela atividade idem. Nos últimos anos muitos filmes e vídeos produzidos na Bahia receberam prêmios importantes em festivais pelo Brasil e mundo afora. O incremento da qualidade técnica e artística também é flagrante; politicamente a classe está mobilizada como nunca, num movimento iniciado há quase 15 anos. Penso que a perspectiva é boa e que há uma classe numerosa, atenta e informada, preocupada em contribuir e fiscalizar as ações governamentais visando ao aperfeiçoamento do sistema como um todo. Ainda estamos longe do ideal, mas creio que no caminho possível. Quanto ao acesso dos municípios do interior, ainda não existe uma democratização efetiva dos meios de produção. Acontece aí algo parecido com a relação entre o eixo rio/sampa e o nordeste, onde os projetos são sempre preteridos em favor dos sudestinos[1]. Mas em nosso caso sabemos que o pessoal do interior tem se mobilizado, principalmente nas universidades: em Conquista (UESB), Itabuna e Ilhéus (UESC); a criação recente de um curso de cinema na Universidade Federal do Recôncavo. É preciso dar continuidade ao processo de consciência, formação de plateia e organização comunitária pra que os projetos apresentados sejam competitivos nos editais existentes e que venham a ser criados pra atender a uma crescente demanda. Não posso deixar de mencionar que igualmente grave é a ineficiência do setor pra dar escoamento à produção já tão escassa, pois isto se constitui no maior entrave à autossuficiência da atividade. Trata-se de um problema histórico em que concorrem diversos fatores, sendo o mais gritante deles o colonialismo cultural a que foi submetido nosso povo em seu processo de formação. O cinema norte americano se impôs desde sempre no mercado do mundo inteiro e aqui no Brasil sofremos as consequências desse imperialismo cultural que Glauber denunciava com tanta veemência e propriedade. Enfim, o processo é penoso e lento, mas cabe às novas gerações e aos que chegam de longe dos centros de decisão política ocuparem seu espaço e inverterem o sentido desse vetor vicioso.



Edgard Navarro no elenco de O homem que não dormia. Foto: Calil Neto


Operária das Ruínas –  Por quais paragens artísticas  tem transitado atualmente o cineasta Edgard Navarro?




Navarro e Bertrand Duarte no set de O homem que não dormia, em 23 abril de 2009 (dia de São Jorge). Foto: Calil Neto

EN - Estou finalizando meu segundo longa de ficção dentro dos próximos dois meses. Temos estreia marcada pro final de julho, dentro da programação do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, a ser realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Essa estreia será um marco muito importante em minha vida, o encerramento de um ciclo cármico que já se estende muito além do desejável. A sensação é de missão cumprida. Se ainda houver um futuro pra mim no próximo cinema-encarnação, pretendo fazer parte de um time que vai se dedicar a projetos menos onerosos, mais de acordo com nossa realidade – que sabemos ser uma realidade perversa, em que não temos mercado pra nossos filmes. Trabalhando com equipes muito menores, mais ágeis, projetos capazes de driblar esse bem sucedido modelo roliudiano com muita verve e poesia e tudo de belo e bom que houver nessa vida. Quero que a tralha e a parafernália (se houver) seja apenas um detalhe; filmes cuja tônica esteja no vigor do tema, na importância da metáfora, na força da linguagem - criatividade. De sorte que, siderado pela agonia de seu espírito deflagrado, o espectador esqueça essas ninharias de efeitos e todas as pirotecnias do tal modelo (pensado justamente pra tirar o cara de si mesmo); um cinema brecht/godard/glauberiano que empurre nosso homem pro olho do Furachão (seja Furachão o nome de uma personagem); com brandura e suavidade e tesão e alegria e coragem de ser e... o filme vai se chamar ABAIXO A GRAVIDADE! Assim espero poder realizar coisas cada vez mais leves, lúdicas, gozosas; isto sem abrir mão da consciência. Enfim, também “quero aproximar meu olhar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo indo mais fundo” e tal... Talvez nunca mais faça filme nenhum. Apenas poemas visuais. Ou não.



Equipe de gravação O homem que não dormia.




No set de O homem que não dormia (2009)




 
[1] SUDESTINO: por que será que o verbete não existe nos dicionários? A resposta pra a consulta é: nenhuma palavra encontrada.



Ficha Técnica:

Título: SuperOutro

Duração: 48 min  

Ano: 1989 

País: Brasil 

Direção, Roteiro, Montagem/Edição: Edgar Navarro  

Elenco: Bertrand Duarte, Inaldo Santana, Fernando Fulco, Kal Santos, Wilson Mello, Frieda Gutman, Ives Framand, Edneas Santos, Fafá Pimentel, Jorge Reis, Irema Santos, Edísio Patriota. Participação Especial: Nilda Spencer e Deolindo Checucci. 

Empresa(s) Co-produtora(s): Lumbra Cinematográfica  

Direção Fotografia: Lázaro Faria: Edgar Navarro  

Direção de Arte: José Araripe JR. 

Trilha Sonora Original: Celso Aguiar

“O MEU DEVER É VOAR”: COMENTÁRIOS SOBRE SUPEROUTRO, DE EDGARD NAVARRO


Por: Daniela Galdino


É madrugada!
Mijo bêbado as ruas desertas
A terra deglute e a lua fertiliza os cogumelos
Que com certeza não nascerão com o dia
[...]
(Nada de censura. Ramon Vane)

    
“Acorda, humanidadeeeee!!!!” “Acorda, humanidadeeeee!!!!” Aos berros, insinuando-se pela penumbra de uma cidade inerte, o protagonista de SuperOutro (1989) - filme dirigido pelo cineasta baiano Edgard Navarro - surge em cena de maneira desconcertante, inconformada. O personagem é, para muitos, um louco nocivo, mas aqui é considerado como um insone, um marginal por excelência que carrega a angústia de um andarilho noctâmbulo: “só quem fica acordado nessa cidade sou eu”! (eis outra provocação).
Bertrand Duarte interpreta SuperOutro
Para compreender melhor esse sujeito é necessário transitar por espaços sórdidos, visitar realidades pulsantes, ainda que constantemente invisibilizadas pelos discursos hegemônicos. Isso porque, em sua aventura cotidiana, o personagem caminha sobre  escombros de casarões do centro histórico da “cidade da Bahia”; freqüenta – e divide com outros seres “indesejáveis”- a parte baixa dos viadutos; banha-se em córregos e esgotos; atrapalha o trânsito ordenado das “pessoas de bem”; passeia – sem convite – pela soterópolis dos cartões postais: Mercado Modelo, Igreja do Bonfim, Pelourinho, Praça Castro Alves, Elevador Lacerda. O heroísmo do personagem, nesses termos, reside na sua sobrevivência numa cidade que funciona contra a sua insistente presença.
Importante destacar: a presença do personagem ganha ainda mais destaque com a interpretação do ator baiano Bertrand Duarte, que realiza um impressionante trabalho artístico para viver, na tela, o ex-centrismo potencializado desse personagem. A atuação rendeu a Bertrand o prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, em 1989. O filme também emplacou, no mesmo festival, os prêmios de melhor média metragem e melhor diretor.
 SuperOutro, enquanto personagem provocativo, é também iconoclasta. O seu olhar conhece muito bem as realidades sórdidas, angustiantes, míseras. E é partir dessa postura que são desafiados os discursos hegemônicos – seja o religioso, o político, o econômico capitalista. Entre comer uma oferenda a Exu, invadir a Igreja do Bonfim para arrancar um colar de uma comportada senhora, ler uma revista “pornográfica” recitando Castro Alves ou Gregório de Matos, experimentar a masturbação (e o gozo) a partir de cenas do programa Rolentrando (quadro do apresentador Silvio Santos no canal SBT, exibido nos anos 80 e 90), não há muitas distâncias. No entanto, nesses desafios, nota-se ao menos que o personagem se reapropria de todos esses discursos, podendo, portanto, reescrevê-los,  redimensioná-los. A essa altura o espectador, muito provavelmente, já consegue enxergar outras possibilidades de permanência e sobrevivência. Destaque para uma cena: após furtar o colar de uma fiel na Igreja do Bonfim, o personagem usa a jóia – associada a restos de uma bacia plástica – como oferenda a Iemanjá. E ele canta para ofertar: "Por ti vou matar, vou roubar / Embora tristezas me causes mulher". Vicente Celestino. "Coração materno" em cena.
Cartaz de SuperOutro, 1989
Apenas por tais recursos narrativos o filme de Edgard Navarro já merece destaque. Ao assisti-lo, o espectador percebe, logo inicialmente, que está diante de uma obra intensa e provocativa. 
Vale dizer que o personagem protagonista é um sujeito que fala a partir das margens. Por conta disso tem-se uma ininterrupta postura interrogativa, muito marcada pela contestação da(s) autoridade(s), assim como pelo desafio à noção de centro – enquanto uma realidade imutável e naturalizada. “[...] Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente [...]” (Hutcheon, 1991, p. 96). Portanto, esse sujeito ex-cêntrico é um “forasteiro de dentro” (idem.).
É a partir dessa condição maldisposta que o personagem confere sentido ao real, evidenciando as suas transgressões. Como conseqüência, o espectador de SuperOutro transita pela paisagem urbana, logo, social,  a partir de uma condição deslocada. E desse lugar simbólico deve despir-se dos seus preconceitos para vislumbrar outras possibilidades de interpretação do filme e a sua conexão com a realidade cotidiana. Portanto, é bom atentar para essa advertência que aqui se faz: ao ter contato com SuperOutro, é importante que o espectador assuma uma atitude despojada, quiçá despudorada, para melhor se apropriar da obra (ou despolpar a obra).
Admitamos: a condição ex-cêntrica não é confortável. E esse sentido desconfortável reside, sobretudo, quando há a consciência do próprio deslocamento. Para o ex-cêntrico, é válido lembrar, só existem as hierarquias criadas pelos humanos, e os modelos não gozam da prerrogativa da verdade, não expressam a totalidade do real. A articulação desses elementos revela uma consciência em nada vacilante, um discurso que não se quer original, fonte única de verdade, mas que investe numa postura interrogativa.  Acredito que Edgard Navarro possui – e evidencia – essa consciência.
Quando Navarro privilegia e confere protagonismo a um personagem ex-cêntrico, ele realiza o que a estudiosa Linda Hutcheon (1991) discute: não leva o marginal para o centro – o que poderia indicar uma simples inversão. Ao contrário disso, o que se nota é o investimento numa ótica  deslocada representada pelo protagonista e – espera-se – assumida pelo espectador. Tal estratégia é denominada por Hutcheon como  “posicionamento duplo paradoxal” (p. 98), que consiste em “criticar o interior a partir do exterior e do próprio interior”. Ou seja, assumindo a condição de “cúmplice, porém crítico” (p. 103).
É a partir de tais experiências associadas que são percebidos, em SuperOutro: o caráter desafiador, a reelaboração crítica, além do “[...] poder potencial da ironia, da paródia e do humor na contestação das pretensões universalizantes da arte ‘séria’” (HUTCHEON, 1991, p. 38). A obra dialoga com temáticas que ultrapassam o universo cultural soteropolitano, atingindo, por meio de uma linguagem cortante, não sem o toque da corrosão irônica, a denúncia e problematização de dominações religiosas, políticas e sociais.
Utilizando o recurso discursivo da paródia, nota-se que Edgard Navarro intensifica a apropriação de imagens para usá-las em outros contextos. Isso resulta na reelaboração crítica, afinal, o elemento conchecido “é incorporado, modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes” (HUTCHEON, 1991, p. 45). Os novos sentidos tornam-se polêmicos – e a depender do espectador podem até soar como agressivos. Isso fica evidente quando ocorre a paródia do discurso cristão, aspecto que confere ao filme o tom iconoclasta e surpreendente. Durante a exibição cinematográfica o espectador irá se deparar com afirmações do tipo: “Eu sou o atalho, a mentira e a morte”; “Deus é grande, mas tá mole”.
            Ainda de acordo com Linda Hutcheon (1991), a paródia tem o seu caráter paradoxal, justamente por representar o que a autora chama de “transgressão autorizada”. Isso porque o desafio da paródia “se estabelece no próprio âmago da semelhança” (p. 95). Em outras palavras, trata-se de uma crítica por dentro, um ataque exercido de maneira deliberada. Nessa experimentação há a alternância entre descrever e criticar, estabelecer e desestabilizar as convenções e certezas para apontar “[...] auto-conscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a eles são inerentes” (p. 43).
            Ordem, sentido, controle – mais do que palavras – são aspectos sociais constantemente desafiados e criticados em SuperOutro. As explicações fornecidas pelos sistemas – científicos, econômicos, políticos, religiosos – em lugar de serem consideradas como pressupostos universais,  são vistas e tidas como respostas provisórias construídas socialmente, logo, não são naturais ou imutáveis. No filme de Edgard Navarro o protagonista traz a polêmica para o centro da praça Castro Alves e provoca o confronto entre o discurso político de esquerda, o discurso da pregação evangélica e o silêncio, burburinho ou desdém dos transeuntes. Diante da turbulenta confluência de explicações o personagem – já travestido de herói – busca a sua própria solução e faz paródia: “O Brasil espera que todos cumpram o seu dever. E o meu dever é voar”.

Nem mesmo a repressão policial contém o seu desejo, a sua missão. Se o Superman é o “pássaro da liberdade”, SuperOutro – com sua indigência e fartos recursos imaginativos – subverte as leis e rompe com as expectativas. Isso fica evidenciado com a fala derradeira do personagem: “Abaixo a gravidade!”


 
Referência:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: teoria, história, ficção; tradução  Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 


 Assista ao trailler de SuperOutro ( 20 anos do filme):



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