Friday, April 1, 2011

GUEST POST: CARRO, UMA OPRESSÃO SOCIAL

Carros, ônibus e bicicletas necessários para transportar o mesmo número de pessoas

Publiquei faz um s um ótimo guest post do Thiago, vulgo Nefelibata, sobre os carros e o atropelamento de ciclistas por conta de um motorista em Porto Alegre. Concordo com tudo que o Thiago diz e acho que já passou da hora de pensarmos em alternativas. É este mesmo o mundo que queremos? Um mundo poluído que despreza o transporte coletivo e em que carros têm muito mais espaço e direitos que pedestres? Esta é a segunda parte de uma série de quatro escrita pelo Thiago sobre a cultura do automóvel, que publico com orgulho.

Defendi que a realida
de do uso do automóvel se constitui como uma forma de opressão social, à semelhança de muitas outras (respeitadas as devidas diferenças que cada uma comporta, claro), tais como opressão de gênero, de raça, classe social, sexualidade, origem etc. Mas, como tudo pode ficar pior, sabemos que essas formas de opressão por vezes se somam, e ocorrem cumulativamente. O recente caso da mulher negra e pobre que é chamada à morte pelo prefeito de Manaus é demonstração triste e recente disso (alguém acha que ele diria o mesmo para um homem branco e rico? De quebra, o prefeito ainda ofende a população do Pará). Pois bem; a opressão dos motoristas contra os não-motoristas também reúne muitos desses preconceitos. A começar pelo machismo transbordante. Os meninos passam por uma série de rituais de passagem para a vida adulta: além do episódico e temido alistamento militar aos 18 anos, há a iniciação (normalmente mais cedo) no sexo, no álcool e no automóvel (infelizmente, às vezes nesses dois últimos juntos). Referências culturais associando mulheres e bebidas ou carros como objetos de desejo masculino abundam por aí, não preciso dar links. Há nesse sentido o “ditado popular” que versa “mulher no volante, perigo constante”, ainda que a grande maioria das vítimas fatais de acidentes com carro seja de homens (entre 2000 e 2007, eles contabilizaram cerca de 80% das mortes). Ou seja, além de ser uma mentira, é de se supor que é mais fácil um homem cuidar bem de um carro do que respeitar uma mulher. Embora mulheres também possam ser opressoras num volante, a maior vitimação fatal de homens no trânsito evidencia a totemização do automóvel atrelada ao machismo. O carro é tido como objeto de força, poder, velocidade, liberdade e conquista (inclusive de mulheres). E ai de você se der uma batidinha, um arranhão, ou até mesmo tocar no ídolo de quatro rodas de um macho alfa; prepare-se para a encrenca. Se o carro tiver mais de um homem dentro, então reze para não terminar em tragédia. Alguém se lembra dos homens que agrediram até mesmo uma mulher grávida? (Aliás, não é surpreendente que o criminoso de Porto Alegre já tenha histórico de violência contra mulher) Ceder espaço ou oportunidade para seres inferiores como pedestres ou ciclistas (até mesmo outros motoristas), ou mesmo baixar a cabeça para normas de segurança mundanas não são coisas de macho alfa, que está acima de tudo isso quando se senta em seu carro. Entretanto, como mostram 80% das vítimas fatais no trânsito, qualquer falha na direção ou imprevisto na estrada joga de volta na cara do machão que, não importa o quão bonzão ele seja, seu corpo ainda é fragilmente humano.
O preconceito de classe, por sua vez, se dá visivelmente na posse de um carro mais velho. Já vi várias vezes carros novos, do último ano, buzinarem em um “traffic-bullying” para modelos de cinco, dez, quinze anos atrás. Se uma BMW vai devagar na frente de um motorista comum, ele admira o carro de elite, mas se é uma BMV, “Brasília Muito Velha”, não suporta ter que segurar o acelerador para um automóvel inferior. Não passa pela cabeça desse motorista que ninguém tem carro velho e acabado porque quer, que se Ferrari custasse um real, todo mundo teria. Em outras palavras, o condutor do carro velho é atacado porque é pobre. Aliás, pobre com carro é algo que irrita a elite, pois se trata daquela invasão do espaço que, antes do Lula, era mais privativo para uma minoria. Mas mesmo um condutor de carro novo, chique, tem que tomar cuidado se for negro. Quem nunca ouviu a nojenta frase que diz “branco dentro de Mercedes é magnata... preto dentro de Mercedes, se não for motorista particular é ladrão, ou então a Mercedes é o busão”. E esse cuidado tem que ser redobrado se no meio do caminho houver blitze policiais.

Como uma política burra fomenta a exclusão de pessoas em prol de automóveis

E não para por aí. A opressão orientada pelos automóveis não termina em nova mescla de preconceitos, em novas formas de agressão e de violência. Os motoristas não se satisfazem só com o asfalto, não se contentam em dominar as ruas e exercitarem sua covardia. Os donos de automóvel querem consumir todo o espaço utilizável das cidades (peço aqui a permissão para me referir majoritariamente a São Paulo, porque além de ser o lugar onde vivo e do qual posso dar registro pessoal, é também na minha opinião um bom exemplo de análise por ser a maior metrópole brasileira). Embora as ruas sejam consideradas até mesmo pela lei como “públicas”, é senso comum dizer que “lugar de pedestre é na calçada”. Aos carros, o maior espaço da rua, aos pedestres, o resto, o estreito espaço da calçada ocupado também por postes, lixeiras, árvores. Para os carros, o piso plano e contínuo; para os pedestres, calçadas quebradas e tortas, descontínuas, uma sequência de rampas feitas não para caminhadas ou passeio, mas para que eles - os carros - possam entrar suavemente em suas garagens. Antes que digam que eu queira derrubar as árvores das calçadas, eu digo que as calçadas devem ter amplo espaço para pedestres E árvores - mas isso seria diminuir o espaço para motorizados. Mas ainda assim, eu não me importo absolutamente em dividir espaço com árvores em meu trajeto, gosto delas. Mas os motoristas chiam em dividir com qualquer coisa o seu caminho: faixas de pedestres, ciclovias, faixas para motocicletas, corredores de ônibus, os próprios ônibus... até mesmo outros carros (chega a ser hilária a declaração da Associação Paulista Viva, culpando os ônibus pelo trânsito na Avenida Paulista). Mas voltando ao verde, em São Paulo, árvores centenárias foram derrubadas na Marginal Tietê para otimizar o espaço das pistas, como fotografou o Luddita. Teve gente que votou no Maluf porque ele queria ampliar as pistas da Marginal sobre o rio Tietê.
Isso mostra como a cultura da idolatria do carro engole a cidade, apropria-se dela e a transforma excluindo os “cidadãos” e monopolizando-a para os “motoristas”. E de maneira extremamente burra. O caso específico da capital paulista, que tem uma frota de automóveis de quase sete milhões de unidades (0,6 carros por habitante, o dobro da média nacional de 0,3 carros por habitante) é emblemático: a cidade em sua história recente tem o perfil de eleger políticos comprometidos com a causa do automóvel. Basta contar quantas obras estilo “foi Maluf que fez” são desse tipo – incluindo aquela coisa hedionda do Minhocão, que é um viaduto literalmente elevado entre blocos de apartamentos. Não interessa se vai ter fumaça, barulho e buzina ao lado da janela do quarto; interessa que exista uma ligação rápida – para carros – entre as zonas Leste e Oeste da cidade, mesmo que ao preço da qualidade de vida das pessoas (haha) que moram por ali, mesmo que isso signifique degradar um bairro inteiro. Há escavadeiras que precisam ficar o ano inteiro removendo sedimento do rio Tietê (ou deveriam) porque encasquetaram de fazer uma das principais vias da cidade na várzea do rio - o primeiro lugar que alaga quando chove. Se tivessem criado a pista a 150 ou 200 metros do rio, teria sido desnecessário gastar dinheiro público em obras de retificação do curso (para tentar fazer a água fluir mais rápido e a enchente terminar mais cedo), e também seria desnecessário manter os custos de manutenção dessa idiotice. Também temos as centenas de milhões de reais gastas numa extravagância de ponte estaiada (que literalmente expulsou favelados de seus barracos) enquanto a cidade urge por investimentos no metrô. Aliás, gostaria de saber se alguém me confirma a informação de um colega engenheiro: São Paulo é, no mundo inteiro, a cidade que possui mais projetos de metrô no papel. Para meu bairro, há dois projetos distantes de metrô, mas estão para inaugurar (mais) um viaduto na região.
Ora, é uma tremenda burrice combater trânsito com essas medidas. Abrir novas pistas, viadutos, ampliar as ruas é uma mensagem clara para a população: “tem mais espaço pro seu carro, pode vir”. Aliando isso às vendas sempre recordes de automóveis (mais aqui), fica óbvio que qualquer pista aberta ou ampliada será logo congestionada. Além de ser uma medida ineficaz, é uma péssima aplicação do dinheiro público, que poderia ser usado para a melhoria e ampliação das redes de transporte coletivo. Mais linhas e estações de metrô, mais linhas, corredores e unidades de ônibus - essas sim são medidas eficazes no combate ao trânsito, embora insuficientes porque o problema inclui também elementos como a concentração de empregos e serviços em áreas distantes das residenciais (obrigando o deslocamento em massa de pessoas). O que seria hoje do transporte em São Paulo se pelo menos metade do investimento em obras para carros tivessem sido aplicadas em transporte público? Mas nada disso recebe incentivos/grana porque não servem aos interesses desses mesmos incentivos/grana. Para se ter uma ideia, a Linha 4/Amarela do metrô, de necessidade urgente para a cidade, foi idealizada em 1940, e hoje conta só com duas estações que não são 100% funcionais. No entanto, na época da crise de 2008-2009, o governo paulista sozinho presenteou a indústria automobilística com R$ 4 bilhões para teoricamente tirá-la de uma crise na qual nunca entrou, pois desde 2007 as vendas vêm batendo recorde ano após ano. Quatro bilhões! Alguém conhece algum outro investimento recente de tal monta pelo governo paulista, assim, numa canetada só?! Esse é exatamente o mesmo valor que o governo cedeu ao investimento de metrô para o ano inteiro de 2010 (ano de pós-crise e ainda por cima eleitoral). Isso só pode significar que a indústria do automobilismo é especial; seu interesse capitalístico, digamos, é especial; sua consideração cultural é especial. Será que não é de se perguntar por que não se desembolsa de uma tacada só o mesmo valor de investimento para a saúde, para a educação ou para a moradia? A crise nessas áreas vem de muito antes de 2008, e não há horizonte para acabar... Mas essa boa vontade política não existe para o que realmente deveria importar. Em parte isso se dá, no caso específico dos paulistas, pela governança de “políticos-gerentes” com interesses escusos e mancomunados com empresários (São Paulo vem desde 1889 ensinando a usar política como fonte de investimento para negócios pessoais).
E tudo isso tem o aval do eleitorado: historicamente, a população que sofre com o trânsito e a ineficácia do transporte coletivo é a mesma que vota há décadas num modelo político de desenvolvimento privatista, privatizante e que prioriza também o transporte privado, tanto em termos de governo do Estado quanto em termos de prefeitura. O único governo municipal que eu vi realmente fazer algo decente com transporte público foi o da prefeita Marta Suplicy, que encomendou estudos e projetos de redesenho para malhas inteiras de ônibus, além de ter implantado o maravilhoso Bilhete Único. Obviamente, ela perdeu as eleições seguintes, e os dois principais argumentos que ouvi contra ela (além do fato de ser do PT, lógico) foram críticas à taxa do lixo (que, aliás, era uma merreca) e condenações de ordem moral pelo fim do relacionamento dela com Eduardo Suplicy. Ou seja, até mesmo elementos da vida privada da pessoa política (ou melhor, da mulher na política) contaram mais do que as medidas pró-transporte coletivo. O povo tornou a votar em homens pró-carro. E isso não faz racionalmente sentido nenhum. Esta imagem explica. Isso me lembra uma experiência que vira e mexe faço no caminho do metrô: olho pela passarela a larga avenida abaixo e observo, no trânsito lento, se existe alguém no banco de passageiro dos automóveis. É raro. E imbecil. O carro ocupa o espaço público da maneira menos eficiente que existe, para transportar, com sua tonelada, o peso de uma pessoa de setenta, oitenta quilogramas. Cadê a humanidade inteligente que se supunha haver aqui neste planeta?

Mais posts do Thiago contra a cultura do automóvel: Ciclistas atropelados e motoristas covardes, Mitos e pretextos sobre o carro, Isso também é com você.

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