Monday, April 4, 2011

GUEST POST: EU E O MEU AUTISTA

Niara e Calvin

Niara é jornalista, gaúcha, ativista, mãe, feminista, e tem seu blog, o Pimenta com Limão, e um twitter agitado. Eu ainda a conheço pouco, mas já gosto muito dela e de suas posições políticas. Fiquem com seu relato, que me comoveu.

Nunca quis ser mãe, fato. Mas eis que um dia fui atropelada por uma gravidez indesejada que me pegou tão de surpresa que me deixou sem reação. Fiquei os seis primeiros meses da gestação ensimesmada, sem falar com meus amigos e seguia na minha militância no Diretório Acadêmico Vladimir Herzog da Escola de Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas e como Secretaria de Escolas Pagas na ENECOS (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social), viajando a cada dois meses para as reuniões e participando dos encontros e congressos. Eu simplesmente fingi que nada estava acontecendo, assim como ignorava solenemente o ser que insistia em fazer uma micareta dentro da minha barriga todas as noites depois que deitava.
Quando não foi mais possível ignorar a realidade, anunciei a gravidez. Tive oficialmente a gestação mais curta da história: dois meses e meio. Nesse período tentei me acostumar com a ideia, fiz piada e tentei me adaptar aos revezes. Não foi fácil. Abri mão de uma indicação a coordenação de chapa para o DCE da UCPel e vi que o movimento estudantil já não seria mais possível para mim. Literalmente fui atropelada pela vida e fiquei lá, esmagada no asfalto.
Mas a vida seguiu. Calvin nasceu miudinho mas lindão, e a primeira vez que olhou pra mim com aqueles imensos olhos azuis (hoje são verdes) me fez chorar. Fui aos poucos – muito aos poucos mesmo – me livrando dos efeitos devastadores da depressão pós-parto e conforme a nossa comunicação se ampliava me apaixonava mais por ele. É, não acredito em instinto materno, a minha relação com meu filho foi sendo construída aos poucos, dia a dia.
Eu estava no último semestre da faculdade, tinha entrado com um processo contra a UCPel para garantir minha formatura no final de 1997 (eles tinham me negado uma colisão de disciplinas e tinham liberado uma idêntica para um colega que não iria se formar), quando o Calvin teve a primeira convulsão – eu nem sabia identificar uma convulsão. Ainda nem tinha começado a escrever a monografia de conclusão de curso (TCC) e não conseguia voltar meus olhos para ela. Fiquei dois meses às voltas com médicos, exames, tratamentos alternativos, tudo que fosse possível para fazê-lo parar de ter aquelas tonturas (eram convulsões e eu não sabia que existiam tipos diferentes).
Um dia me indicaram levá-lo até a Irmã Assunta – uma freira católica daqui de Pelotas que é uma curandeira, mestra em fitoterapia, uma verdadeira bruxa – e eu fui. Ela o examinou (e o exame foi idêntico ao que o primeiro neurologista fez), me disse que ele precisava dos recursos da medicina mas que um floral ajudaria muito. Ela receitou dois florais e um xarope (que eu acho bem parecido com o anticonvulsivo que ele usa até hoje). Calvin ficou mais de dois meses sem nenhuma convulsão (tontura) e eu pude me voltar ao meu TCC. Me formei e na minha colação de grau ele estava lá na plateia, com seu um ano e meio, lindo, com uma blusa de tricô em linha marinho que eu mesma fiz para ele, uma calça jeans muito da nojenta folgadona e sandália.
Só o que intrigava era o fato dele não falar. Ele tentava, ensaiava, mas não conseguia. Arrumei emprego em Palmeira das Missões (quase 600 Km distante de Pelotas, na região noroeste do Rio Grande do Sul). Coloquei-o num maternal e o deixei com meus pais, já acostumados a cuidar dele pra mim. Numa das minhas vindas a Pelotas para vê-lo, estava acompanhada de sua pediatra, que é também uma amiga, e o viu tendo as costumeiras "tonturas" e identificou como convulsão – até este momento, eu não sabia o que era. O chão se abriu sob meus pés. Nunca estive numa zona tão desconfortável, nem mesmo na gravidez.
Dois meses depois veio o diagnóstico: Síndrome de Lennox-Gastaut – epilepsia, atraso no desenvolvimento, dificuldade na aprendizagem e sintomas do autismo – agravada por uma minúscula falha no tecido cerebral na região que determina a coordenação motora fina e a fala. Ele emite sons, canta inclusive, mas não consegue articular a fala.
Confesso que isso foi um soco no estômago do qual ainda sinto a dor. Autistas vivem num mundo próprio e é preciso muita disposição e persistência para conseguir entrar nesse mundo. Eles vivem de rotina, todo dia tudo sempre igual, móveis no mesmo lugar, da mesma cor e formato, paredes sempre na mesma cor, não cumprimentam e não te olham nos olhos (aqui um vídeo sobre um método ensinado a pais de autistas). Para diminuir um pouco os meus desafios como profissional da comunicação social, o Calvin não é um quadro típico de autismo (ou um quadro fechado) e consegui criar canais para interagir com ele. Ele aceita algumas mudanças na rotina, desde que programadas e acordadas antes, aceita roupas novas de cores diferentes – aliás, ele adora roupa e calçado novos –, brinquedos diferentes, só a rotina da alimentação nos horários e a rotina (passos) para tomar banho e ir dormir é que precisa ser cumprida à risca, ou ele volta a fazer xixi na cama. A diferença fundamental do Calvin para os demais autistas é que ele interage com o mundo ao redor, se fechando apenas de vez em quando. Mas tem aqueles tiques de repetir movimentos e sons por horas a fio. Quando resolve cantar seus mantras ou ficar batendo com as costas no sofá é dose de aguentar. Atualmente ele fica repetindo sem parar um som parecido com soluços.
O autismo é uma síndrome comportamental pouquíssimo conhecida e seus portadores vivem meio que apartados do mundo. Não há absurdo maior, pois eles já têm a tendência a se auto-exilarem e o mundo, ao invés de abraçá-los e incluí-los, os repele ainda mais. Não se deixem levar pelo preconceito. Alguns autistas são sim agressivos, mas não é uma agressão intencional com o intuito de machucar ou causar dor.
Acho que a grande dificuldade em lidar com autistas é que eles parecem não reconhecer afeto e nem são gratos. É preciso amá-los sem esperar retorno. Óbvio que eles sentem o amor, dedicação e são profundamente ligados à família, mas não espere retorno e nem grandes demonstrações de afeto. É nesse ponto que me sinto recompensada. O meu autista é profundamente afetuoso, me olha nos olhos e eu sempre sei o que ele está querendo ou sentindo. Nossa cumplicidade foi construída no amor que nos une e hoje o maior alento do meu dia vem quando chego em casa e ganho um abraço sentido e o beijo mais doce do mundo. Imaginem, e veio de uma gravidez indesejada... A vida é mesmo muito estranha.
O meu autista completará 15 anos em maio deste ano.

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