Thursday, February 2, 2012

GUEST POST: NUNCA PERTENCI À HETEROLÂNDIA

A Linda, vamos chamá-la assim, me enviou um relato delicioso sobre a descoberta da sua sexualidade. Meninas que me mandam emails dizendo “Ish, acho que sou lésbica! E agora?”, leiam! Intolerantes de plantão que acham que é melhor viver uma mentira do que ser feliz, leiam também. E pessoas de todos os tipos e credos, leiam, que eu acho que vocês vão se identificar.

Cansei de ficar com isso preso toda vez que alguém liga homossexualidade à falta de vergonha na cara. Então vou escrever aqui tudo o que eu gostaria que essas pessoas, com esse pensamento totalmente ausente de empatia, soubessem.
Cresci numa típica família tradicional de classe média. Um pai, uma mãe, um irmão mais novo. Não era rica, nem sou, mas sempre tive uma vida confortável e com privilégios. Nunca fui maltratada, nem violentada, cresci cercada de homens maravilhosos, a começar pelo meu pai. O relacionamento materno nunca foi dos melhores, mas nada que se diferenciasse muito dos desentendimentos normais de mãe e filha.
Sempre fui diferente. No ensino fundamental achava bobas as meninas que corriam atrás dos meninos bonitinhos e ficavam chateadas quando eles não lhes davam bola. Sofria com a pressão interna do primeiro beijo e de ter histórias amorosas pra contar. Lembro-me de ter uma forte atração por uma coleguinha de classe, mas considerava normal, simples admiração. Com alguma sorte encontrei amigas que tinham os mesmos interesses que eu e tampouco ligavam pra namoro. Nós gostávamos de ler, ver filmes e dançar.
No ensino médio, mudei de escola. Lá os dramas amorosos eram mais frequentes e eu sempre era aquela que não tinha histórias pra contar. Ninguém queria saber sobre os livros que eu estava lendo ou sobre a coreografia que eu havia aprendido. Comecei a achar que talvez era eu que estava demorando demais pra crescer.
Por ser extremamente reservada, ninguém sabia da minha total ausência de vida amorosa. Eu seguia a vida apenas observando. Mas havia uma amiga, muito próxima, de quem eu fazia de tudo pra conseguir atenção sempre. Eu morria de ciúmes dela e era super compreensiva com tudo o que ela fazia, tinha pavor de perder a sua amizade. Chorava noites quando ela se distanciava (ou quando eu achava que ela estava distante) e vivia com uma louca vontade de estar sempre perto dela, abraçá-la o tempo todo. Ela era super carinhosa comigo também, e às vezes até demonstrava ciúmes. E eu achava isso tudo perfeitamente normal –- apesar de com as outras amigas ser completamente diferente. Éramos apenas amigas, muito amigas.
Enquanto ela namorava, eu continuava com meu drama de não sentir vontade de ficar com nenhum dos meninos que se interessavam por mim. Não entendia essa minha "falta" de sentimentos e me autodenominei insensível. Pensei que ninguém jamais seria capaz de me conquistar. Minha amiga/paixão platônica mudou de escola e eu só faltei morrer de tanta saudade. Alguma coisa na minha mente dizia ‘isso não é normal’, mas eu não me importava, não entendia de jeito nenhum. Foi então que cheguei à conclusão de que eu precisava sentir algo. Com minha pouca fé e muita ignorância fiz uma oração no chuveiro pedindo pra Deus fazer eu me apaixonar por qualquer cara que fosse, qualquer um, nem que fosse pra sofrer. Eu só queria sentir, só queria provar a mim mesma que eu não era fria e insensível.
A partir daí passei a observar todos os caras ao meu redor e considerar se eu não estava interessada neles. Tinha um colega de classe que eu até achava bonitinho. Tentei me convencer de estar gostando dele, mas não passou disso. Até que um colega de outra turma teve a coragem de chegar perto abertamente e dizer que tinha sentimentos por mim. Eu mal havia me dado conta da existência do moço, que dirá considerá-lo como parceiro em potencial. Mas ele era legal, uma pessoa querida por todo muito, e gostava muito de mim. Então eu pensei “por que eu não poderia gostar dele também?”, e decidi levar as coisas pra frente, decidi que eu fingiria gostar dele também, e quem sabe eu não me apaixonava? Como uma amiga dizia, eu precisava dar chance às pessoas de me conquistarem. Se não desse certo, eu me mudaria de cidade em alguns meses e usaria isso de desculpa para terminar o namoro. Um plano perfeito.
Lembro-me de chegar em casa na primeira noite em que ele expôs seus sentimentos, e chorar incontrolavelmente e sem saber o motivo, por uns cinco minutos. Tentei, em vão, me convencer de estar perdidamente apaixonada por ele e triste por estar indo embora em pouco tempo. Quando ele oficialmente me pediu em namoro, foi a mesma coisa, a diferença é que eu comecei a chorar no instante em que virei as costas pra ele, depois de dar boa noite. Novamente, eu não fazia ideia do porquê.
Os meses que se seguiram foram uma mistura de fingimentos. Menti pra ele, pros nossos amigos e pra mim mesma. Me afastei de quem eu não poderia enganar e quis muito que aquilo tudo fosse verdade. Queria acreditar nas minhas mentiras como todo mundo acreditava. A parte da pegação era a mais agradável, mas era como ficar com um estranho na balada. Gostoso, mas faltava alguma coisa. Não gostava de conversar com ele e por vezes ficava quieta. Detestava quando ele ligava pra dar boa noite e nós nunca tínhamos assunto. Eu não queria saber nada do que acontecia com ele e estava completamente presa a meus conflitos internos. Desejava não precisar fazer aquilo e poder aproveitar os últimos meses ao lado das minhas amigas. O mais difícil é que eu não conseguia nem arranjar um motivo para terminar, ele era um ótimo namorado, e a única forma seria dizer que eu não tinha sentimentos por ele. Chegou num ponto que isso foi tão forte que eu, sem conseguir arranjar motivo pra terminar o namoro, deixei ele extremamente chateado a ponto de ele terminar comigo. Tirei todo o peso das costas mesmo sabendo que quem tinha provocado o término havia sido eu. Tentei por na minha cabeça que se ele havia terminado, era porque não queria mais nada e eu estava livre.
Ao contrario do início, não derramei uma só lágrima. Contei tranquila a uma amiga e logo passamos a tratar de outras coisas. O ex se arrependeu e correu atrás de mim nas semanas seguintes, mas eu não iria voltar de jeito nenhum. Ele queria acreditar que eu estava mal, mas eu nem me importava em fingir isso também. Viajei. No último dia que passei na cidade acabamos ficando. Mais tarde tive uma briga feia com a minha mãe e fui encontrar com ele aos prantos. Ele perguntou se eu estava chorando pela briga apenas ou se estava chorando, também, porque iria sentir falta dele. Menti de novo. Não iria magoar alguém que não havia feito nada pra merecer ser parte do meu teste. Ele não merecia isso. Fui embora me sentindo a mais filha da p*ta das criaturas e jurei que nunca mais namoraria alguém que eu não gostasse. Nunca mais iludiria alguém.
Um bom tempo passou sem que eu não fizesse nada além de estudar. Não tinha amigos na nova cidade e meu relacionamento em casa continuava muito ruim, mas me convenci de que não precisava de ninguém e que a minha vida era estudar. Cheguei a ficar com alguns garotos aleatoriamente, mas me sentia muito desconfortável com eles e tinha ânsia só de pensar em sexo. As férias chegaram e eu fui visitar aquela amiga/paixão platônica. Fazia mais de um ano que não nos víamos. Foram ótimas férias e não nos desgrudamos durante o período que passei lá. Porém, alguma coisa na atitude dela me fez achar que a nossa amizade ia além. Nunca tive certeza se foi apenas exagero meu. Voltei pra casa e as imagens dela continuavam vindo a minha mente, principalmente durante as aulas, pensava nela o tempo todo. No início eu tentava bloqueá-las, mas aos poucos fui me convencendo de que não havia nada que eu pudesse fazer para continuar negando meus sentimentos por ela. Eu a amava, e o primeiro passo para me entender era admitir isso. Depois de admitir meus sentimentos e sofrer mais um pouco, comecei a me dar conta de que precisava entender o mundo ao qual eu fazia parte. Eu havia sido instruída na Heterolândia, e por mais que nunca houvesse pertencido a esse lugar, não fazia ideia de como deveria lidar com o mundo sendo lésbica.
Comecei a ler, muito. Procurei blogs, li artigos, reportagens, entrevistas, contos, poesias, procurei explicações na psicologia. Busquei todas as informações que estavam a meu alcance, e apesar de serem poucas, elas me ajudaram. Assisti muitos filmes e vídeos também. Comecei a entender o que as frases de amor diziam, o que as pessoas diziam e me peguei chorando ao assistir romances. Me vi fazer tudo aquilo que eu via as outras meninas fazerem e nunca entendia. Percebi que o interesse que algumas mulheres despertavam em mim desde sempre era o mesmo que as outras meninas sentiam, mas em relação aos homens. Durante esse período, entrei na faculdade. Já num dos primeiros dias de aula, uma menina linda e super estilosa chamou minha atenção. Ela fazia algumas aulas comigo e eu comecei a me interessar muito por ela. Mais uma vez tentei me interessar por algum dos meninos que me cercavam, sem sucesso. Inconscientemente minha atenção se voltava pra ela e era um esforço enorme ignorá-la. Era isso: eu não gostava dos garotos, nunca havia gostado e nem conseguiria, não havia nada que eu pudesse fazer.
Numa viagem de férias finalmente tive coragem de ficar com meninas, e foi uma descoberta maravilhosa, como um estalo. Algo como “Ah eu sou lésbica, claro! Como não percebi isso antes?”. Era algo que fazia parte de mim. É claro que ao mesmo tempo que veio o alívio e a autocompreensão, surgiu um novo conflito interno. Eu havia sido criada em uma família extremamente religiosa, e por mais que nunca houvesse concordado com tudo o que me diziam -– nem dentro nem fora das igrejas -– eu ainda tinha muito medo do que Deus ia achar de mim. Fiquei muito brava por um tempo por achar que Deus estava me testando ao fazer isso comigo. Na minha lógica, se Deus achava que era errado eu ser homossexual, por que ele havia me feito lésbica, ou me deixado tornar lésbica? Por que ele simplesmente não me fez gostar de homens? Ele é Deus, é uma coisa simples pra ele. Mas as pessoas insistiam em dizer que Deus testa as pessoas fazendo com que elas tenham vontade de fazer coisas que ele acha erradas, pra que elas provem seu valor para ir para o paraíso.
Sendo assim, na lógica delas, eu deveria ignorar meus sentimentos e atração por mulheres e viver relacionamentos heterossexuais falsos, exatamente como meu primeiro e único namoro, pois dessa forma eu estaria provando a Deus que eu sofreria a minha vida inteira para ter uma chance no paraíso. Mas essa ideia que as pessoas insistiam em por na minha cabeça não fazia sentido algum pra mim, pois ia de encontro ao que eles pregavam sobre Deus amar as pessoas. Um deus que quer que eu abdique da minha vida amorosa, viva uma mentira e sofra a vida inteira pra provar meu amor por ele, é um deus que me ama?
Deixei de acreditar no que as pessoas diziam sobre Deus, pois se acreditasse ia acabar com muita raiva dele. Eu sabia que Deus estava lá, eu acreditava nele, só não conseguia acreditar no deus de pseudo-amor que as religiões me mostravam, pois esse deus odeia quem eu sou. Finalmente me acalmei quanto a isso e cheguei à conclusão de que se Deus quiser me mostrar ou dizer alguma coisa, ele vai ter que achar outro meio de fazer isso que não seja através dessas pessoas prepotentes que usam a religião para justificar o domínio de uma maioria.
Mas eu tinha outros problemas também. Eu ainda dependia do dinheiro da minha família, e ela jamais aceitaria minha sexualidade e minha opinião diferente. A religião que eles possuem -– a maioria das religiões, na verdade -- tem uma grande dificuldade de lidar com o diferente. Se você quer conviver, tem de se adequar. E se adequar no meu caso significava me manter dentro do armário e viver uma falsa heterossexualidade disfarçada de falta de tempo para relacionamentos. O que significava também: nada de xavecar as gatas da turma da faculdade, até que eu tivesse uma independência total, incluindo a financeira.
Eu contei toda essa longa história de autodescoberta e aceitação pra mostrar que não foi por causa de violência sexual, falta de parceiros em potencial, curiosidade, tédio, vontade de ser diferente, MUITO MENOS falta de vergonha na cara, que eu me ‘tornei’ gay. Eu sou lésbica porque sou lésbica, ponto. Se nasci assim ou me tornei, eu não faço ideia, só sei que é o que eu sou. E o máximo que posso fazer é negar isso e causar sofrimento a mim e a outros, coisa que eu não vou fazer, porque eu tenho outra opção: a de ser feliz.

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