Sunday, June 19, 2011

LOLINHA E SEU BATISTA NA MARCHA DAS VADIAS DE FORTALEZA

Ao contrário das fotos que o maridão tirou anteontem (todas no post são dele), a Marcha das Vadias de Fortaleza foi um sucesso. Não sabemos ao certo quanta gente tinha, até porque só vimos dois policiais em todo o trajeto, e eles não estavam contando, mas sem dúvida havia entre duzentas e trezentas participantes. Claro, podia (e devia) ter sido mais — se todas as minhas alunas que disseram que iam tivessem ido de fato, lotava. Só que não podemos reclamar. Foi uma manifestação animada, totalmente descentralizada, espontânea, e feminista até o último fio dos cabelos do maridão.
Saímos da UECE (Universidade Estadual do Ceará), onde eu, cof cof, ainda não havia dado o ar da minha graça. Fiquei feliz em descobrir que o Centro de Humanidades de lá não é muito longe do da UFC. Eu e o maridão fomos de carro e estacionamos numa das ruas próximas. Havia um grupo de uns dez homens (não sei daonde; não da faculdade) sentados no meio de uma calçada, e eles mexiam com todas as moças desacompanhadas que passavam. Algumas atravessavam a rua pra não ter que passar por eles. Pois é, só isso já me deixou indignada, porque isso é espaço público. Isso é direito de ir e vir. Se uma moça, por causa de um bando de otários, precisa sair do seu trajeto e de uma calçada que é tanto dela quanto de qualquer outra pessoa para escapar de “gracinhas” (e talvez passadas de mão), é sinal de que aquele espaço é menos dela que dos outros. Não é incrível? O corpo dela, que é dela, que é privado, passa a ser público, enquanto a rua, que é pública, passa a ser propriedade de um grupelho. Estatiza-se o corpo da mulher, ao mesmo tempo em que privatiza-se (logo, restringe-se) o espaço que aquele corpo feminino pode ocupar. Essa é uma estratégia antiga de dominação de um grupo sobre outro. O que está sendo dito, e o que ouvimos desde meninas, é que o espaço que nos cabe é doméstico. Que não devemos sair de casa sozinhas sem a supervisão de um macho para nos proteger de outros machos.
Mas dentro da UECE não havia ameaças, e o clima era de confraternização. Muitas pessoas jovens, alunas e alunos, estavam fazendo cartazes. Eu tinha levado uma pequena cartolina que fiz. De um lado, havia a sugestão de uma leitora: “Marcelo Tas, deixa a Lola em paz. CQC, vai pra PQP”. Do outro, mais palavras suaves: “Só escrotossauro chama mulher de baranga”.
Saímos às cinco da tarde, e fomos tomando as ruas. Toda passeata é uma luta travada entre o espaço público, social, e o privado (os carros que entopem todos os cantos de uma cidade, e cujos espaços são planejados pra eles, e só pra eles). Eu tive um pouco de medo dos carros, já que alguns motoristas são bem agressivos, e estão tão acostumados a ter a rua só pra eles, que hostilizam quem ousa interromper seu percurso. Sempre tinha que ter algumas pessoas, em geral com longos cartazes, para bloquear a faixa de pedestres e permitir que a marcha passasse com certa tranquilidade. O maridão ia direto ajudar a fechar o trânsito (eu sempre achei que ele é um homem de parar o trânsito, êta velhinho lindão). Numa ocasião uma moto quase passou por cima do pé dele.
A maior parte das participantes não estava vestida à caráter, ou seja, com roupa de vadia (que eu nem saberia definir o que é). O maridão ficou impressionado com uma mulher que conseguia andar de salto agulha naquelas ruas e calçadas esburacadas e irregulares. Porque olha, a gente andou. Foram quase cinco quilômetros de caminhada.
Havia uma moça muito simpática de topless. No começo, confesso que achei um pouco exibicionista demais (vi que na Marcha de Brasília ontem, que contou com mil pessoas!, tinha várias mulheres sem camisa, e lógico que os fotógrafos iam pra cima delas). Mas a segurança dessa moça foi contagiante. A cada besteira que ouvia, ela virava pra gente e falava “Parece que nunca viram um peito!”. Eu presenciei o olhar de reprovação que um homem lançou pra ela. Definitivamente não era desejo, era reprovação mesmo. Era nojo. Não nojo do corpo da moça, que era jovem e bonita e com tudo em cima, mas da atitude dela. Ela não se deixou abater pelos olhares em nenhum momento, e eu tive muito orgulho dela. É isso aí: homem pode tirar a camisa quando quiser, que seu corpo não é automaticamente objetificado. Mas mulher não pode mostrar os seios nem se for pra amamentar seu bebê, né, CQC? Não por acaso, um dos nossos gritos de guerra era “A nossa luta / é por respeito / Mulher não é só bunda e peito”.
E eu entoei todos os gritos, mesmo os que não tinham muita relevância pessoal pra mim, como “Eu beijo homem / Beijo mulher / Tenho direito de beijar quem eu quiser”. Já o maridão, quando não tava parando o trânsito, sendo atropelado por motos ou tirando fotos fora de foco, era uma múmia. Óbvio que eu não esperava que ele, tão facilmente ruborizável, se juntasse ao coro do “Se o corpo / é da mulher / Ela dá pra quem quiser” (eu mesma odeio o termo “dar”) e muito menos do “Eu, eu, eu / O c* é meu / Quem dá sou eu” (algo assim; posso estar juntando duas), mas pô, ele ficava quieto até pras letras mais engajadas, como “A nossa luta / é todo dia / Mulher não é mercadoria”, “Estupro / Não é piada / Machismo mata”, “Se homem / Pegasse bucho / Aborto seria luxo” (com variações divertidas como “Se o papa pegasse bucho...”), ouNão mexo / com a sua fé / Tenho direito de transar com quem quiser”. Depois ele me confidenciou que não entendeu o slogan “Sexo anal pra derrubar o capital” (“Não vi a ligação," disse ele. "Nessa hora pensei que tivesse alguém infiltrado na marcha”).
Infiltrados havia, a começar por ele próprio. Tinha muitos, muitos homens, mas sinceramente, todos eram queridos e estavam do nosso lado, na nossa luta. Eles conheciam os gritos de guerra melhor do que eu (ok, até aí, não é difícil). E retiro tudo que disse sobre não concordar com homem vestido de mulher na marcha. Havia alguns, e não havia nada de carnavalesco neles. Eles eram tão politizados e feministas quanto qualquer um (sem falar que meus dois alunos ficaram di-vi-nos de peruca rosa-choque).
E como é gostoso marchar! A gente se sente um só corpo, cheio de energia, e com uma força, e uma liberdade, impossíveis de experimentar sozinh@s. Quando chegamos ao ponto final, que era no Passeio Público, na antiga Praça dos Mártires, tod@s, exaust@s (cinco quilômetros de chão irregular é pra derrubar qualquer terráqueo com metade da minha idade), nos reunimos em torno de uma das organizadoras da marcha, uma professora de filosofia muito da aguerrida, que fez um belo discurso explicando o porquê da escolha daquela praça pra representar o final da marcha (porque é uma praça histórica em que sempre se travou a luta entre espaço público versus espaço privado). Como ninguém tinha auto-falante, cada frase do discurso era ecoada por tod@s, em coro (amo muito tudo isso!). Super comovente. E aí ela me chamou pra discursar, e eu fiquei surpresa, não esperava aquilo e nem estava preparada. É difícil falar em frases curtas, cortar as sentenças pra que possam ser repetidas. Mas expliquei que eu havia criticado o CQC por um programa detestável que fizeram contra a amamentação em público, e que recebi ameaça de processo do Marcelo Tas. E que, se ele realmente vir a me processar, eu queria contar com o apoio de tod@s vocês. Ah, todo mundo foi tão lindo! Começaram a gritar “Somos todas Lola”. Fofíssim@s!
Pra não terminar esta crônica num tom tão Rocky (porque a modéstia proíbe), e como eu já falei dos gritos de guerra, vou confessar uma coisinha. Um dos slogans que eu gritei dizia “Se cuida / Ô seu Batista / América Latina / vai ser toda feminista”. Eu cantava junto ao mesmo tempo em que acessava todo o meu vasto conhecimento prévio pra tentar decifrar quem catzo era o seu Batista. Pensei: putz, Fulgencio Batista, o ditador cubano derrubado por Fidel; ele é tão antigo e essa moçada antenada ainda se lembra dele?! Aí pensei que não, talvez seu Batista fosse um nome genérico pra representar o patriarcado em geral. Bom, pra encurtar, eu estava a um milésimo de segundo da segunda maior humilhação da minha vida, que seria virar pro carinha ao lado e perguntar: “Por obséquio, quem é o seu Batista?”
Obviamente a primeira maior humilhação da minha vida é contar aqui pra vocês, num blog com 5 mil visitas por dia, que o grito de guerra era “Se cuida / Ô seu machista / América Latina vai ser toda feminista!”. Podem confiscar minha carteirinha de feminista, se quiserem. Eu mereço.Eu e meu querido leitor-fã Hugo, numa das raríssimas fotos em foco.

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