Thursday, December 22, 2011

GUEST POST: ESTADO DE CALAMIDADE NA SAÚDE

Tive o prazer de conhecer a ótima blogueira Carolina Pombo num evento sobre Criança e Consumo. Ela escreve muito sobre maternidade, mas tem sofrido com o estado da saúde no Brasil. Segundo o que ela me disse num email, "Depois de me formar no mestrado e adentrar no mercado de trabalho, numa instituição pública, a realidade tem me parecido muito mais difícil do que a Academia costuma considerar. Por isso, escrevi o texto abaixo, mesmo temendo pelo meu emprego (já que sou contratada e não estatutária)... Mas, gostaria muito de vê-lo em seu blog, onde um número grande de pessoas poderá ler e debater". Bom, Carol, ei-lo! Torço para que você não perca o emprego!

Mais uma vez, passei por uma situação bem desgastante ao tentar ser atendida num laboratório particular na zona sul do Rio de Janeiro. Sim, eu quero falar de saúde pública, e começo deixando bem clara a minha posição na cadeia predatória desse sistema: eu sou mulher, de classe média, sou formada em psicologia e trabalho há poucos meses numa instituição pública de saúde –- considerada referência para vários outros hospitais da minha cidade. Moro no Rio de Janeiro, onde fiz o mestrado em Saúde Pública. A situação que eu comecei a relatar não é novidade: cheguei às 9 horas da manhã, num laboratório enorme no Leblon, com 12 horas de jejum, para fazer um exame de glicose, com as pernas estranhamente doloridas e me sentindo muito enjoada. Era a minha tentativa de confirmar o resultado levemente alterado do último exame. Depois de uma hora e meia aguardando para ser atendida, e vendo que, paralelamente, se formava outra “porta de entrada” –- de pessoas “indicadas”, que conheciam fulano ou beltrano, que simulavam uma queda de pressão, enfim, que não aguentavam mais esperar em pé de igualdade aos outros mais de quarenta pacientes que se acumulavam na sala de espera --, resolvi consultar uma auxiliar de enfermagem sobre o tempo de jejum máximo que é considerado para se fazer um exame de glicose. (Eu já desconfiava que eram 12 horas, mas como ninguém até aquele momento me consultara sobre o tempo que eu estava sem comer, e como a toda hora vejo mudarem esses parâmetros de diagnóstico da diabetes, fiquei na minha, esperando).
Por ter se passado o tempo máximo de jejum não fui atendida, e fui embora faminta, frustrada, com raiva, depois de fazer uma reclamação sobre a “fila paralela” que se formara e que certamente atrasara o meu exame e o de tantos outros. Saí, pensando nas manchetes das revistas Época, Carta Capital e IstoÉ daquele fim de semana, que criticavam e até ridicularizavam os movimentos pela internet afora para que o presidente Lula fizesse seu tratamento contra o câncer pelo SUS. Já há algum tempo tenho percebido que nós, usuários do sistema suplementar de saúde, mesmo sendo também maioria da força de trabalho no SUS, conhecemos muito pouco o estado da Saúde no Brasil. Isso porque nos acostumamos a tratar a saúde como mercadoria.
Assim como nos EUA, o mercado da saúde em nosso país já é enorme e crescente. Lá, ele fica em primeiro ou segundo lugar, em termos de participação na economia nacional. Mas, isso não é segredo, faz parte do projeto político-social adotado pelo Estado e apoiado pela maioria da população. Os americanos gostam de “merecer” as coisas, não gostam de política social “de graça”. Mas, aqui, no Brasil, o que acontece é o crescimento de um mercado “camuflado”, mal e porcamente regulado, às custas do dinheiro e das instituições públicas. Sabe aquele cardiologista bambambam que você se gaba de ter como “médico de família” pelo seu plano de saúde? É o coordenador do serviço de cardiologia do hospital público XYZ de São Paulo (formado na USP e ex-residente de um serviço público). Ah, mas ele consegue dar conta dos pacientes do plano, do particular e do hospital? Isso não é, necessariamente, um problema, desde que ele mande os laudos por email, e dê um jeitinho de aparecer no hospital pelo menos uma vez por semana para assinar o ponto -– e olhe lá!
Aqui, pacientes, médicos, gestores, jogam nos dois times, usam os dois sistemas, quando lhes convém -– com exceção daqueles cidadãos que não têm condições de pagar por nenhum plano de saúde (mesmo esses precários e baratos planos hospitalares) e dependem estritamente do funcionamento do SUS. Esses são submetidos a esperas muito mais longas: 23 dias num leito aguardando exames do risco cirúrgico tá bom pra você? O médico faltoso põe a culpa no baixo salário, o governo não aumenta os salários porque já parte do princípio que funcionário público não presta, e o dinheiro vai então para as empresas privadas que prestam serviços públicos, como as Organizações Sociais (famosas OS’s que os cariocas estão importando de São Paulo), fundações, terceirizadas, ONGs etc. Essas, muitas vezes, pertencem aos mesmos proprietários de grandes redes particulares.
Outro dia, abri uma revista no avião, indo pra Sampa, e dou de cara com uma propaganda de página inteira: “Venha trabalhar para a Saúde no Rio: salário de R$ 15.000,00 para médico de família, sem experiência”. Era de uma OS convocando novos profissionais para trabalhar nas equipes de saúde da família (SUS!), nas favelas do Rio. Apesar do salário quase quatro vezes mais alto do que o de um médico federal que trabalha em serviço de emergência e cirúrgico, eles penam para manter as equipes, e acabam usando critérios duvidosos na seleção. Penam porque as condições de trabalho são péssimas, porque a gestão agora é estritamente baseada em produtividade -– ou seja, exige-se um número x de consultas domiciliares por hora, sem a real preocupação com a qualidade do atendimento, e porque as OS’s não podem oferecer a cobiçada “estabilidade” e “aposentadoria integral” do serviço público. Ora, entre fazer uma dobradinha entre consultório privado e a matrícula no hospital público, ou ter que dedicar-se exclusivamente a cumprir as metas de produtividade das equipes de saúde da família, o que é mais vantajoso? Essa é a lógica que tem prevalecido em muitos casos.
Apesar de, na lei, termos um sistema público de saúde universal, já chegamos no mesmo patamar de divisão entre gastos públicos e privados que os EUA. De acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde, de 2010, em termos de financiamento da saúde, 41% é público, 59% é privado. Ou seja, mais da metade de todo o dinheiro que financia nosso sistema global é do próprio bolso dos cidadãos, direta ou indiretamente. Isso inclui gasto com remédios, exames em laboratórios particulares, pagamento de planos de saúde, entre outras coisas. Isso quer dizer que pagamos duplamente, e na prática, poucos são os que conseguem ter acesso a atendimentos de qualidade.
Prezad@ colega trabalhador da saúde, usuári@ de planos, cidadão das classes médias, não pense você que há uma grande diferença entre SUS e não-SUS. O segundo não vive sem o primeiro. Entendo perfeitamente o incômodo das pessoas com o fato dos políticos (de todos os políticos) não usarem o SUS, e passei a entender melhor ainda depois de conhecer um senhor que teve exatamente o mesmo diagnóstico do presidente Lula e demorou mais de um mês para conseguir marcar a quimioterapia pelo plano de saúde (sem contar todo o tempo de espera num INCA ou hospital público de referência para o tratamento do câncer). Mas, se esses “movimentos” serviram para despertar a raiva de alguns e a inveja de outros, mesmo às vezes parecendo de muito mau gosto, desejo que eles sirvam para despertar em você, profissional e usuári@ da saúde, uma compreensão mais crítica do estado da saúde em nosso país. E, para fazê-l@ avaliar em que medida ele tem a ver com você e com suas próprias práticas no dia dia.

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