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GUEST POST: ISSO TAMBÉM É COM VOCÊ
Esta é a quarta e última parte de um super guest post que o Thiago, também conhecido como Nefelibata, teve a generosidade de escrever pra gente. Por favor, leia, releia, e envie pr@s amig@s as partes um, dois e três. As cidades devem ser nossas, não de máquinas metálicas que andam sobre quatro rodas. Quando falamos que um outro mundo é possível, estamos pensando em fazer um uso melhor, mais democrático e mais coletivo do espaço público urbano.
Há uma frase do Elwyn Brooks White (frase que vi num jogo), cujo contexto desconheço, mas que parece resumir bem o lugar central do carro nos nossos valores: “tudo na vida está em algum outro lugar, e você chega lá de carro”. Com um deus na garagem, fica fácil entender porque não temos o menor constrangimento de pegá-lo para ir até a padaria no outro quarteirão. É por isso que compramos picapes 4x4 para andar em ambientes urbanos, só para garantir a superioridade física e econômica contra outros carros, ao custo da combustão do diesel -– o mais poluente e nocivo dos combustíveis. É por isso também que colamos adesivo da Marina Silva e do Green Peace no vidro do possante e não vemos nenhu
m problema nisso –- somos capazes de criticar tudo, desde que esse tudo exclua nossos caprichos. E dentre os caprichos, para o brasileiro, carro é o principal símbolo de luxo. Temos para nós que transporte coletivo é coisa suja e indigna porque é de pobre que não pode comprar carro. Preferimos passar uma hora no estresse do trânsito do que quinze minutos apertados no metrô. Porque, ao contrário do Figueiredo, devemos preferir o cheiro do cavalo ao cheiro do povo (certamente preferimos o cheiro da fuligem e do veneno). Mas, ei, nós somos povo também, não? Não importa; escolhemos nos encastelar em nossas torres de marfim ambulantes e ligar, junto com a chave na ignição e com a música privada, um grande mecanismo de “dane-se” para o resto do mundo e da humanidade.Já tive o desgosto, cuja mera lembrança ainda me dói, de ouvir gente muito próxima de mim dizer coisas como “eu trabalhei para ter o direito de usar um carro, e se eu
precisar esculhambar com outras pessoas, com a cidade ou com o planeta, não vou pensar duas vezes para fazê-lo”. Estarrecido, pergunto por quê, e me responde “porque eu adoro dirigir, e você só critica carro porque não gosta de dirigir”. Finalmente o carro se transformou na materialização do ego hipertrofiado. E seu motorista em um ser bruto para o qual, num piscar de olhos, toda a gentileza vira fraqueza, toda condescendência vira palermice. A cidade inteira se torna sua, e o mundo inteiro passa a girar ao seu redor; o resto da humanidade deve apenas lhe servir e não haverá obstáculo algum que não seja derrotado. Não é à toa que propagandas mostram os automóveis correndo sem dificuldades no meio da montanha, na natureza ou em cidades irrealisticamente vazias (i.e., sem trânsito). Ou seja, o motorista sente-se imbuído de poder e autoridade tais que nem a realidade nem a humanidade podem ou devem pará-
lo. Se param, se oferecem qualquer oposição, é uma espécie de sacrilégio que cometem. Isso revoltará o motorista e ele vai querer punir o sacrílego com um furor fanático. O vídeo dos agressores da mulher grávida é emblemático porque mostra que um deles não apenas bate nas pessoas, mas também faz questão de danificar o carro; chuta as portas, risca a lataria nos dois lados –- o objetivo não é apenas agredir fisicamente, mas atingir o totem, o fetiche, o orgulho, a alma.E faltou falar da questão da pressa; isso é algo que me intriga. Será que to
do mundo nas grandes cidades acorda atrasado, perde a hora? Será que o carro comeu o relógio em casa? Será que todo mundo que barbariza no trânsito faz isso porque está simplesmente com pressa? Ou será que essa “pressa” não passa da recusa de aceitar que outros seres humanos, reles mortais, se coloquem no caminho do motorista, que acredita que, em comunhão com seu carro, ele também é Deus?(Esta animação curtinha da Disney, que tem rodado por aí agora, tem só seis minutos, é bem dublada, e mostra de forma bem instrutiva a bipolaridade do motorista. É o Pateta retratado como o Sr. Pedestre e se transformando em Sr. Motorista. Ponto alto para os rachas intercalados com semáforos que também
tocam um gongo, comparando a relação entre motoristas com uma luta de boxe. E mostra também que a ignorância no trânsito infelizmente não é fenômeno típico daqui -- mas que está presente em outras culturas idólatras do carro, como é também a estadunidense, que, de certa maneira, nos legou muito dessa idolatria).
Tudo isso explica porque carro combina tanto com outras formas de preconceito e opressão. É por isso também que combina tão bem com capitalismo; ele é talvez o melhor estimulante que há para o hedonismo, para a irresponsabilidade, para inconsequência e, principalmente, para o egoísmo, para o individualismo. Tudo o que é altruísta, previd
ente, sustentável, consequente, responsável... e também tudo que é dividido, coletivo, compartilhado, comum... tudo isso diminui lucros e atrasa o desenvolvimento ulterior do sistema, que por sua vez trabalha sem descanso para fazer a gente estranhar o próximo e até a nós mesmos. Capitalismo é consumo voraz do planeta e dos seres humanos, e o motorista de carro é um excelente resumo dessa imagem em conjunto. A imagem da desumanização e da brutalização, aceita pela sociedade, sacramentada pelo poder público. Fetichiza-se o carro, aliena-se o motorista. Infelizmente não me lembro da autoria da brilhante frase: “se amanhã alienígenas inteligentes chegassem à Terra, saberiam imediatamente qual é a espécie dominante neste planeta: os automóveis”. Queria poder lhe dar os devidos créditos.Só posso terminar o t
exto perguntando: ei, motorista (e você também que quer ser motorista e só não é por falta de oportunidade), perante tudo isso, perante 40 mil pessoas que morrem no trânsito anualmente no país, perante toda essa opressão, perante toda essa catástrofe... até quando você vai levantar o vidro automático, ligar o som, ar condicionado e fingir que nada disso tem a ver com você? Até quando você vai culpar os “folgados” que sempre entram na sua frente, culpar o governo, culpar sempre um outro só para iludir sua consciência, como se você não fizesse parte de tudo isso também? Até quando você vai trocar a reali
dade inteira por um breve instante de prazer solitário, de conforto superficial, dentro de um brinquedo que se transforma numa arma em um instante, e que não apenas pode ferir e matar outras pessoas, mas também destrói efetivamente o planeta inteiro? Será que um dia você vai buzinar contra algo que realmente valha a pena? Talvez contra as formas de opressão da sociedade em geral, talvez contra a opressão do automóvel em específico, talvez contra quem atropele ciclistas por motivo fútil (como se houvesse motivos não fúteis para matar alguém)... Acorde! O alerta para nós está vermelho; até quando vai acelerar para ele e furá-lo como se fosse amarelo? Até quando você vai viver em função dessa máquina e desprezar o ser humano que está à sua frente, ao seu lado, separado dos seus olhos apenas por uma fina camada de vi
dro? Acorde! Só somos humanidade se estamos em conjunto, por isso, ao desprezar o ser humano que lhe é próximo, você também despreza o ser humano que há dentro de você! Até quando pretende fugir correndo a milhão disso? Até quando?!
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