Thursday, July 14, 2011

PELO MUNDO ADENTRO - TIMOR LESTE

TIMOR IDA DEIT 


Por: Jailson Alves 
Vista do caminho de Dili para Liquiçá. Arquivo pessoal

 
Força, festa fonte e fundação:
Povo é mais que a prôa pra nação! 
Sangue expande a ponte, a afirmação: 
Povo, não a raça da ração! 
Poder cantar: derrubar portões, ladrões e muros!
Poder dançar: festejar na contramão!

(Povo – Sérgio Cassiano, do Mestre Ambrósio)


O Timor Leste (TL), antes mesmo de se tornar colônia de Portugal (fato mais aceito que imposto), já era uma nação múltipla, formada por diversas etnias, que falavam/falam entre 17 e 37 línguas diferentes. Durante a ocupação indonésia, por algum significado prático num contexto de guerra, tentaram tratar o povo timorense como um só, reduzindo a nação, no plano lingüístico, por exemplo, a duas línguas – tétum e malaio[1] (ALBUQUERQUE, 2010). Suponho que, com a introdução do malaio, os indonésios queriam suprimir a visão de mundo que as diversas línguas e dialetos timorenses carregavam, e isso foi o que tentaram fazer durante todo o período da ocupação (1975-1999), dentre outras ações, como deslocamento de população das montanhas para o litoral, modificação das estruturas de suas habitações, introdução de novos materiais de construção, etc.

Porto de Dilli. Arquivo Pessoal

Uma frase muito ouvida durante o conflito de 2006, instalado no TL a partir da crise dos peticionários[2] era “Timor ida deit”, que significa em tétum “um só Timor”. Tétum é a língua que, junto com a língua portuguesa, formam as línguas oficiais do TL. Essa frase era repetida por todos os timorenses e expressava naquela altura um sentimento de que só a união em torno da nação timorense, fosse qual fosse a região de origem ou a etnia a qual se pertencia, poderia impedir que o país retrocedesse ao período em que, em função de disputas internas, permitiu que a Indonésia o invadisse utilizando o argumento de guerra civil, e permanecesse ocupando o seu território por 24 anos.
Ora, é justamente na expressão da diversidade que se pode entender e explicar o povo Maubere (outro nome para povo timorense). E esse entendimento pode ser o apoio às diversas ações que se desenvolvem no país; ou, em muitos casos, entender o fracasso de programas e projetos pela negligência e incompreensão dessa diversidade. Há exemplos claros dessa diversidade cultural. A habitação em Lauten é diferente em Oecusse, que é diferente em Ainaro. O tais (tipo de tecido feito em tear manual) é específico de cada distrito, identificando-se o distrito pela trama produzida. Isso reflete uma parte da diversidade do TL. A nação timorense não pode ser entendida como homogênea sob nenhum aspecto, nem linguística, nem cultural nem educacionalmente. Assim, conhecer sua realidade é condição necessária para nela interferir. Isso não fora considerado por nenhuma nação que se encontrou com TL, nem mesmo em questões mais pragmáticas ou concretas, como condições climáticas, hidrográficas, sanitárias, etc.
Timorense com filho. Arquivo Pessoal
Casa na estrada para Fahisoi, distrito de Aileu.

Criança na porta de casa, Oeste de Manatuto. Arquivo Pessoal

Uma das possibilidades de se preservar a diversidade cultural e linguística do TL foi fruto da decisão tomada após a restauração da independência em 2002, com a escolha da língua portuguesa (LP) como co-oficial, defendida pelo linguista australiano Geofrey Hull no Congresso do CNRT (Conselho Nacional de Resistência Timorense). Essa escolha baseava-se no entendimento de que uma aproximação com uma língua muitíssimo mais forte (como a inglesa) poderia ser um encontro deletério ao Timor-Leste. Uma língua é entendida como um trinômio língua (L), povo (P) e território (T) em um dado período (COUTO, 2007), ou seja, um povo falante de um código de comunicação em um dado espaço geográfico e num determinado tempo, sendo “um fenômeno natural, social e psicológico”. Esse trinômio traz consigo uma cosmogonia, uma visão de mundo que está plenamente ancorada em questões culturais, podendo mesmo ser entendida como a junção do trinômio LPT com a cultura. Alterar esse código linguístico (artificial e rapidamente, por justaposição de outro exótico) significa corromper a cultura, gerando uma língua híbrida sem significado, e o que ela transmite não está em correspondência com a sua cultura. Em favor da língua portuguesa pesava o fato de que, além da sua modernidade e plasticidade, havia uma relação histórica com o povo timorense. Outro argumento (com forte apelo emocional entre os timorenses) para a escolha da língua portuguesa como co-oficial foi o fato de ela ter sido usada como um instrumento de resistência e de concatenação do povo timorense, com o apoio da igreja católica, contra o invasor indonésio.

Praia do Dolar. Arquivo Pessoal

Estar no Timor-Leste para mim, às vezes, era como poder ver o Brasil por um portal, como aqueles do desenho Caverna do Dragão. Era como se eu pudesse olhar o passado de duas ou três décadas e revivê-lo. As condições sanitárias eram na minha infância obstáculos para se atingir a idade adulta, aos quais deveríamos ultrapassar sem morrer ou contrair doenças graves. E como eu nasci e cresci na periferia de Itabuna, no bairro Nova Itabuna, muitas semelhanças se apresentavam entre o meu bairro das décadas de 1970 e 1980 e o Timor-Leste que eu encontrei em 2005 e que deixei em 2009. E as semelhanças também apareciam em outras áreas, desde a colonização portuguesa até a relação que estabelecemos com os estrangeiros.
Na Nova Itabuna faltava energia “apenas” aos domingos e algumas vezes à noite; quando possível, a Coelba anunciava na televisão o dia e a hora do blackout, quase sempre pegava-nos de surpresa. No TL a falta de rios perenes é um grande obstáculo ao seu desenvolvimento, porque não tendo possibilidade de uso de energia hidrelétrica, optou-se pela queima de combustível fóssil (óleo diesel) para a geração de energia. Suprir essa demanda para uma população de mais de um milhão de habitantes está cada vez mais complicado. Muitos distritos têm energia apenas das 18 horas até a meia-noite. Exclusivamente dois distritos – Dili e Baucau – têm energia 24 horas por dia, todos os dias. Claro que algumas vezes quebra um gerador e ficam-se muitas horas às escuras, mesmo nestes distritos. Desconsiderar estes fatos e não levar em conta a cultura do lugar é ignorar que o nosso modelo de desenvolvimento não pode ser aplicado a qualquer país, e no geral, o modelo ocidental não se justapõe ao oriental, assim, não pode ser aplicado ao Timor-Leste. A falta de energia fazia com que tivéssemos que sair de casa para o trabalho com o Plano A: tem energia, “ok!, vamos digitar nossos textos em nossos notebooks”; Plano B: não tem energia mas vai voltar dentro de 1 ou 2 horas, “ok!, vamos esperar um pouco e enquanto isso fazemos uma leitura de um texto”; Plano C: não tem energia, não tem diesel para o gerador, não se sabe quando voltará, talvez em 6 ou 7 horas, “ok!, voltamos para casa e tentamos trabalhar lá”; e Plano D: não tem energia em casa também, “ok!, vamos à praia relaxar um pouco!”).

Cerimônia festiva. Arquivo Pessoal
Mulher usando tear manual em Viqueque
Crianças brincando no parque da escola
A relação do timorense com o desenvolvimento, com o tempo, com o futuro difere muito da nossa. Quem chega ao TL tem que estar atento a isso, porque pauta as relações sociais e dos homens com a natureza. A nossa relação com o tempo e o seu usufruto é muitíssimo diferente. Algumas vezes eu me perguntei sobre como enquadrar isso dentro da minha concepção, mas é difícil. Em TL, na sua língua oficial e vernácula, o tétum, a palavra que designa futuro é “Aban-bainrua”, que, na tradução literal significa “dois dias depois de amanhã”. Portanto, parece adequado pensar que a noção de futuro nossa é extremamente diferente da deles. E, portanto, a noção de acontecimentos que estão subordinados a ele, como por exemplo, a execução de uma tarefa, também. Ou, por outro lado, a execução da tarefa é uma coisa; o tempo que será destinado a ela e quando será destinado, é outra. Certamente, eles têm uma noção de futuro ligado a um período maior que dois, três dias, uma vez que se utilizam da agricultura, das estações do ano para plantar, colher, pescar, etc., o que nos credencia a dizer que têm um alcance maior que o aplicado gramaticalmente (“aban-bainrua”), no entanto, tarefas burocráticas como as de escritório, gestão, administração, algumas delas requerendo ações que se inicie e termine hoje ou amanhã tem apelo diferente entre nós, ocidentais, e o povo timorense. O que para nós deve ser feito com urgência, para eles pode esperar, como eles diziam: “la iha buat ida”, significando “não tem nada, não” ou “não tem importância, deixa estar...” Para alguém que persegue prazos é o mesmo que levá-lo a arrancar os cabelos.
Hoje, a diversidade linguística e cultural é sufocada e suprimida à guisa de modernização do país, porque alguns dirigentes nacionais, parte da sua elite política e econômica (às vezes iluminados por conselheiros internacionais) acreditam que essas peculiaridades da nação timorense sejam incompatíveis com o modelo de desenvolvimento atual para aqueles países que aspiram à inserção na comunidade internacional, como é o caso da aceitação da língua inglesa e do malaio como línguas de trabalho, numa decisão tomada no II Congresso Nacional de Educação, em 2008. 

A proximidade geográfica com a Austrália pode ser um fator decisivo para o futuro da nação timorense. Cabe aqui salientar que a posição do governo, quanto à sua política linguística, atende de um lado ao anseio dos jovens timorenses que, não sendo falantes do português, veem na atitude do governo uma oportunidade de inserirem-se no processo de globalização, sendo o inglês, atualmente, a língua veicular desse processo; por outro lado, a Austrália e a Nova Zelândia, além de serem referências educacionais na Ásia e no mundo, também têm sido fortes doadores ao Timor-Leste. Resta saber se a contrapartida cobrada por eles em recursos petrolíferos e em alinhamento político, dentre outras formas de adesão, não será maior que os benefícios doados; e se esse alinhamento das políticas educacionais timorenses às desses países não será tão deletério ao povo timorense como tem sido quase todos os seus encontros desde o "descobrimento" pelos portugueses.

Escola Maumeta 1



Escola do distrito de Viqueque, subdistrito Venilale




























[1] Em Timor-Leste a influência é mais direta de uma variedade crioula do malaio (pazar malayu), chamada internamente de Bahasa Indonésia.
[2]Peticionários foram rebeldes das forças armadas (F-FDTL) que iniciaram a crise de 2006, ocasionando uma guerra civil nacional. O PM Mari Alkatiri pediu demissão, sendo substituído por José Ramos Horta.


Referências bibliográficas

 ALBUQUERQUE, Davi Borges. Peculiaridades prosódicas do português falado em Timor-Leste. ReVEL, v. 8, n. 15, 2010.
CARNEIRO, A. S. R. Políticas linguísticas em Timor-Leste: tensões no campo da formação docente. Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 4, t. 3, 2010.
COUTO, H. H. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus. 2007.
SILVA, Kelly Cristiane da. Paradoxos da autodeterminação. A construção do Estado-nação e práticas da ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado. Brasília: Mimeo, 2004.
SANTOS, Jailson Alves dos. Relatório Final de Atividade em Timor-Leste – 2008/2009 (org.). Dili, 2009. ISBN 978-989-96281-4-7.



Jailson Alves é natural de Itabuna-BA. Mestrando do PPGEFH das Ciências/UFBA e professor substituto do IQ/UFBA, ex-Coordenador Geral interino do Programa de Capacitação de Docentes e Ensino de Língua Portuguesa em Timor-Leste. Contato: jaialves98@hotmail.com




DIVULGAÇÃO: 
Estão abertas as inscrições para o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no Timor-Leste, 
desenvolvido pelo Governo Brasileiro. 
Maiores informações: 



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