Thursday, September 15, 2011

GUEST POST: CONHEÇO O SISTEMA, MAS ME RENDI A ELE

Sempre que penso em cirurgia plástica, duas coisas me vêm à mente. A primeira é uma conversa com uma amigona querida, que perguntava como que nós, doutoras, estudiosas de gênero, sabedoras da manipulação da mídia, cientes das mentiras que nos contam, sucumbíamos ao padrão? Como é que, sabendo de tudo isso, continuamos sentindo nossos corpos feios e inadequados? É cruel constatar que conhecer um problema não nos torna imune a ele!
A segunda coisa é uma passagem do fantástico livro da Naomi Wolf, O Mito da Beleza (tem grátis em português aqui, gente! Mulheres e homens, leiam!). Ela diz que vivemos numa sociedade muito perversa se somos convencidas que partes perfeitamente saudáveis dos nossos corpos precisam ser removidas, cortadas, costuradas. Corremos risco de vida (porque toda cirurgia envolve risco) em nome da vaidade. A vaidade passa a ser mais importante que a própria vida.
Uma leitora querida, a Sandra, me enviou um email em que fala de tudo isso, e ainda de um outro assunto: a invisibilidade feminina. Como o mundo dita que a mulher deve ser decorativa, e para sê-lo devemos estar dentro de um padrão de beleza e juventude, ao envelhecermos, e sairmos deste padrão, nos tornamos menos importantes. Perdemos nosso valor. Paramos de ser notadas. Num episódio da minha série preferida, A Sete Palmos, uma mulher com mais de 50 anos fala pra outra que a invisibilidade tem vantagens. Ela pode entrar numa loja e furtar pequenos objetos, porque ninguém vai olhar pra ela mesmo. Não estou incentivando o crime organizado, só comprovando que a invisibilidade não é fantasia da Sandra. O chato, porém, é que detestamos o olhar masculino (male gaze) quando ele nos objetifica, mas sentimos sua falta quando não somos “apreciadas” por ele! Ou seja, de um jeito ou de outro, somos reféns do olhar masculino (quero dizer, suponho que isso afete mais as mulheres solteiras ou separadas que estejam à procura de um novo relacionamento do que as casadas; a mim, pessoalmente, não afeta. Creio que sou invisível faz bastante tempo por ser gorda, mas enquanto o maridão esbarrar em mim de vez em quando, não me sinto nem um pouco mal). Bom, já falei demais. Fiquem com o guest post da Sandra.

Mais uma vez um post seu me comove. Eu finalmente consegui entender minha própria linha de raciocínio através do que você escreve, porque você o faz com uma clareza admirável. Obrigada, sempre vou ser grata a você por doar seu tempo pra escrever o “bloguinho”!
Seu post sobre cirurgia vaginal mexeu comigo de uma maneira particular. Eu tenho 37 anos, sou divorciada e tenho um filhinho de quatro anos. Quando ele nasceu, eu já estava separada do meu então marido fazia cinco meses e o processo todo foi muito triste, porque tive que enfrentar, ainda durante a gravidez, a realidade de que teria que cuidar sozinha do meu bebê. Agora ele está crescidinho e eu consegui conciliar, muito bem, aliás, a maternidade e o mestrado, que concluirei este ano. Admito que me sinto orgulhosa!
Depois dessa digressão, volto ao assunto do post: fiquei tocada e ele me fez pensar sobre mim mesma. Explico: dois anos e meio depois que meu filho nasceu, tomei uma atitude drástica que jamais imaginei ser capaz de tomar: fiz uma cirurgia plástica. Na verdade, uma não, mas três ― fiz lipoaspiração nos “flancos” e nas costas, diminuí e levantei os seios, e fiz um procedimento chamado abdominoplastia, que se pensarmos bem, é um absurdo em nome da estética, porque o cirurgião corta e descola toda a pele da barriga para tirar a flacidez e juntar a musculatura estirada com pontos, e assim a barriga fica lisinha e reta como uma tábua. Mesmo que isso implique em ter seu umbigo deslocado e remodelado...
Esses três procedimentos juntos levam no mínimo seis horas de cirurgia e por isso é necessário anestesia peridural, com sedação. Nós frequentemente ouvimos notícias escabrosas sobre mulheres que morrem ou ficam vegetando depois de uma “simples” lipo! Então no dia em fui ser operada, fiquei com tanto medo de morrer e deixar meu filhinho sozinho, que minha pressão subiu até a estratosfera e a operação teve que ser adiada. Depois de meses de dolorosa recuperação ― dolorosa não, excruciante ― fiquei magérrima e minha forma corporal passou a se encaixar no padrão de mulher perfeita. Cintura fininha, barriga que fica incrível em qualquer blusa, calça que fecha sem apertar, camiseta tamanho “P”. Tudo lindo, né?
Não, não ficou não! Na verdade, as cicatrizes ficaram IMENSAS, porque eu tinha muita pele excedente na barriga e muito peito “pra tirar”, então o médico teve que cortar muito. E minha cicatrização, que sempre foi muito boa, nesse caso foi péssima: as cicatrizes não apenas se alargaram, ficando enormes no sentido vertical, como ficaram muito escuras. Ou seja, vestida fica tudo maravilhoso, mas se eu precisar tirar a roupa, ou fazer algo trivial, como ir à praia, eu não terei coragem. No único relacionamento que tive depois da plástica, fiquei semanas transando de luz quase apagada e sem tirar o sutiã, com vergonha das cicatrizes.
Enfim, contei tudo isso para no fim te contar o que me fez entrar nessa roubada da cirurgia plástica: não me sentir vista! Não penso que eu tinha um problema de baixa autoestima, mas uma sensação que beirava a não-existência, porque fosse saindo com amig@s, fosse no ambiente da universidade, tudo o que eu percebia é que eu não era vista. E isso não era fantasia minha, era uma percepção real, e a prova de que o não-olhar de fato ocorria é que depois da plástica, magra e dentro dos padrões, tudo mudou. Eu passei a ser olhada/vista/percebida e não apenas pelos homens. Afinal de contas, somos constituíd@s pelo olhar do Outro. Eu aprendi que não ser vista DÓI, e dói muito! É quase uma exclusão social.
Talvez tenha sido um problema de autoestima, mas causado por essa “não-visibilidade” e no fim, como você diz no seu post, meu problema era não me sentir dentro de uma norma, não imposta somente a mim, mas a todas as mulheres. Quando eu engordei e quando meus seios ficaram flácidos depois de amamentar por dois anos, foi como se eu já soubesse que não seria mais vista. Simplesmente porque eu sabia que meu corpo não correspondia mais àquela imagem de corpo perfeito que nos massacra diariamente. Eu procurei me manter bem arrumada, bonita, cabelo sempre lindo, mas nada disso parecia ser suficiente, porque a forma do meu corpo não “estava boa”.
O que eu queria te dizer é que a norma nos atinge diariamente, como você sempre nos diz no blog, especialmente nas coisas triviais, no dia a dia, naquilo que quase não percebemos, como gastar tempo precioso com maquiagem ou com manicure. Mas para mim, que sempre me considerei “esperta”, que achava que não me deixaria ser pega pelo sistema, leitora de Susan Faludi, eu fui fraca, e cedi a essa norma. Mesmo que isso implicasse em colocar minha vida e o futuro do meu filho em risco. E no fim, os resultados nem foram assim tão satisfatórios... Se foi assim comigo, que leio e procuro ter uma postura crítica, imagine a insatisfação constante da maioria das mulheres, que não podem sequer saber que beleza e padrões estéticos do corpo são construções simbólicas, culturais? Como não se sentir inadequada?

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