Por: Egnaldo Ferreira França
Em 2003 e 2008 os movimentos negro e indígena brasileiros conseguiram uma grande vitória, com a aprovação da Lei 10.639/03 e 11.645/08, respectivamente. Estas Leis tornam “obrigatório” o ensino da História e Cultura da África e dos afrobrasileiros nas escolas de Educação Básica, em todo o território nacional.
Em termos historiográficos estas leis representam uma vitória, visto que o Brasil possui o maior contingente de pessoas oriundas da diáspora africana e estas, demograficamente, representam mais de 48% da população, com um rico e importante legado na construção da identidade nacional. No entanto, estes fatores, ao longo da História, foram ignorados nos livros didáticos, e inclusive no nosso modelo de educação, que traduz valores estéticos e ideológicos da cultura européia.
Comemorar o marco da criação e regulamentação dessas Leis não basta. O efeito mais imediato, sem dúvida, foi fim das louvações à Princesa Isabel e ao 13 de maio e uma maior valorização da figura de Zumbi dos Palmares e do 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. Ainda assim, os resquícios de uma sociedade preconceituosa e de uma mentalidade disfarçadamente racista ainda persistem em ilustrar a figura dos negros numa condição de inferioridade.
Na “melhor” das intenções, o Grupo Escolar Pedro Jerônimo, no desfile cívico de 7 de setembro de 2011, em Itabuna (Bahia), homenageou Castro Alves, o “poeta dos escravos”, e ilustrou o desfile com o Navio Negreiro. E quando se esperava que as Leis acima citadas representassem uma vitória, notamos que muito ainda há de se discutir. Essa escola mostrou sua face colocando, na Avenida do Cinquentenário, as crianças negras e magras com uma corrente no pescoço, andando atrás do navio, enquanto o “sinhozinho e a sinhazinha”, sentados no conforto do navio, esnobavam outros pretinhos que empurravam a embarcação.
Nesta lógica, podemos afirmar que o tiro saiu pela culatra. A escola se esconde nas brechas da Lei pra dizer que está trazendo a discussão, mas, de certa forma, está contribuindo para cristalização dos estereótipos.
Apenas uma mãe retirou seu filho e não permitiu que ele desfilasse. Outra mãe comentou que se alguém perguntasse quem era o seu filho, ela não teria coragem de mostrar. Uma terceira mãe exigiu que seu filho calçasse as sandálias. As demais, imediatamente calçaram seus filhos. Pior foi o desabafo de uma das crianças, ao final do desfile: o menino disse para a mãe que no ano que vem não quer desfilar. Vai apenas assistir. Isso porque, certamente, se sentiu envergonhado com a forma como foi exposto. Essas crianças poderão, inclusive, ser vítimas das “brincadeirinhas racistas”, hoje disfarçadas de bullying.
Como essa escola, muitas outras, dizendo que estão cumprindo o previsto na Lei, optam por “pintar crianças de orixás” ou colocá-las em situações constrangedoras, fortalecendo ainda mais os preconceitos e estereótipos. Isso comprova o despreparo da maioria desses professores. Não pretendo, aqui, afirmar que essa História precisa ser negada, mas ela precisa ser interpretada de um outro ponto de vista. Da forma como foi colocada no desfile dá a impressão de que nesse período não houve resistência ou que para a liberdade foi necessária, unicamente, a boa vontade dos brancos abolicionistas.
Se foi a intenção da escola “homenagear” o negro, porque não utilizou Luis Gama como abolicionista? Por que não lembrou o Levante dos Malês? Por que não citou Luiza Mahin, Abdias do Nascimento, Mestre Pastinha, Mestre Bimba, Mario Gusmão e tantos outros ícones do passado e do presente?
Itabuna já possui uma Diretoria de Relações Etnicorraciais na Secretaria Municipal de Educação e conta também com uma Comissão Mista que discute, no Conselho Municipal de Educação, as Diretrizes Curriculares para o Ensino da História e Cultura Afro. Apesar disso percebemos que tais ações não tem sido o suficiente. Podemos dizer que o empenho da Secretaria de Educação ainda é tímido, visto que quando o tema dos encontros de formação docente é a questão racial, geralmente conta-se com a participação de um ou dois professores por escola, como se essa questão interessasse apenas àminoria.
Os professores precisam ter acesso ao debate, independente dos seus conceitos ou preconceitos. Os encontros de formação devem ser para todos os professores e não apenas para os que se interessam ou para os indicados pela direção da escola. Os grupos organizados de combate ao racismo e à discriminação racial ainda são pouco requisitados pelas escolas para debater tais assuntos, eles precisam ter uma ação mais enérgica, no sentido de exigir uma educação anti-racista.
Do contrário, o uso indevido de Lei (que deveria servir de base para uma educação de respeito às diferenças) servirá apenas para constranger, estereotipar e exemplos como o do Grupo Escolar Pedro Jerônimo perpetuar-se-ão, sobre o disfarce de que se está trabalhando a questão racial e será, assim, um tiro a sair pela culatra.
Egnaldo Ferreira França é itabunense. Graduando em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
Fundador do Projeto Encantarte e do Pré - universitário para Afrodescendentes - PREAFRO
Email: egnegao@hotmail.com
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