Talvez você já tenha visto isso, pois aconteceu na semana passada. Uma marca americana de roupas com uma reputação nada boa (explicarei depois) finalmente decidiu que fabricaria alguns modelitos
maiores, e promoveu um concurso para encontrar uma modelo full-figure que a representasse. Uma atriz gordinha (pero no mucho) chamada Nancy não teve dúvida: chamou uma amiga fotógrafa e juntas fizeram umas fotos que satirizavam a indústria da moda. Nancy ficou bem famosa, criou um tumblr, deu várias entrevistas, e, como o concurso era decidido pelo número de votos dos internautas, acabou vencendo. Ela não tem a menor vontade de fechar o contrato com a marca, como explica neste artigo (em inglês) muito bem escrito.

Ela conta que sentiu-se ofendida com o modo engraçadinho/infantil que a marca promoveu o concurso. Era uma procura por uma modelo “booty-ful” (trocadilho entre beautiful, linda, e cheia de booty, ou seja, bunduda), perguntando “Are you the next BIG thing?” (“Você é a próxima grande novidade?”), anunciando que suas calças disco agora vinham e
m tamanho XL, “com espaço extra onde conta”, pedindo para modelos Xlelent (trocadalho entre tamanho XL e a palavra excelente) pra enviar fotos “de você e sua junk” pra marca (junk quer dizer carga, mas é um termo pejorativo, como quando se fala em junk food, comida lixo), e anunciando que a vencedora seria colocada num avião pra Los Angeles pra ser fotografada. Nancy tem razão: é gracinha demais pra tão poucas linhas. Claro que já vi gordas do movimento americano de fat acceptance (aceitação do corpo, mais especificamente, da gordura) usarem o termo bootylicious (algo como o nosso gordelícia), mas há diferença entre uma gorda
usar essas palavras, ou uma pessoa que gosta de gordas, e uma empresa que só passou a considerar investir em tamanhos grandes após quase ir à falência. Sim, porque a American Apparel tem perdido mercado a cada ano. E durante um tempão recusou-se a oferecer tamanhos grandes. Agora que tá com a água no pescoço...
Mas até aí, há uma enormidade de marcas que se negam a vestir cheinhas. A American Apparel é famosa por outros motivos. Primeiro, pelas campanhas que faz — quase sempre meninas muito jovens, que parecem mesmo menores de idade, em poses ahn, sexy, pra não dizer vulgares. Segundo, a marca é notória pela “excentricidade” — sejamos gentis —
do dono, que adora aparecer. Este perfil dele de 2004 é impressionante. Se Orson Welles estivesse vivo, poderia fazer um novo Cidadão Kane de um cara que gosta de dar entrevista pra repórteres mulheres enquanto se masturba, e não vê problema algum em sair com empregadas de sua fábrica (desnecessário dizer que ele enfrenta uma coleção de processos por abuso sexual).
Mas vamos falar de coisas boas, como a atitude de Nancy. Pessoalmente, adorei o que ela fez. Sou uma grande fã do humor e da ironia. Outro exemplo fantástico de como o humor pode subverter o lugar comum é o curta “Poses”, de Yolanda Domínguez, que parte de uma ideia simples (fazer com que mulheres em lugares públicos imitem as poses patéticas das tops)
para duvidar de um sonho adolescente: sério mesmo que alguém pode ambicionar ser modelo de uma indústria que trata as mulheres tão mal?
Nancy ajudou a chamar a atenção e mandou uma mensagem sobre o que acha da American Apparel e da sua tentativa de cativar o público GG. Quando perguntada por que ela fez isso com AA, e não com outras campanhas, ela respondeu que foi pela insinuação que uma gordinha só poderia ganhar um contrato pra trabalhar praquela marca se vencesse um concurso especificamente pra gordas (“a mensagem que uma garota submissa e seminua sempre cons
eguiu espaço sem dificuldade na publicidade da AA, mas para as mulheres maiores, seria preciso competir uma contra a outra para merecer a chance”).
Mas nem tudo são flores. Uma modelo que participou seriamente do concurso da AA detestou que Nancy arruinou sua chance. Pra essa moça, o concurso era uma oportunidade pra sua carreira. Imagino que algumas consumidoras também possam não ter gostado dessa transgressão. Afinal, logo quando uma marca opta por ser mais inclusiva, a gente tira sarro dela? E sempre havia o risco de pessoas não entenderem a brincadeira de Nancy.
Quer dizer, alguém podia levar as fotos a sério? Claro, podia. Mas pra quem conhece um pouco mais do conte
xto, fica difícil. Por exemplo, a gente sabe que é meio tabu ver mulher comendo em propaganda. Quando uma modelo come num comercial de chocolate, ela come escondido, como se fosse um pecado, e prova apenas um pedacinho minúsculo. Nada de comer uma barra inteira. E o chocolate nesses comerciais está quase sempre associado a sexo, ao prazer proibido. Portanto, ver uma mulher, ainda mais uma mulher acima do peso, colocar um frango inteiro na boca — ahn, só pode ser paródia. Mesmo.
Detalhe: Nancy é uma “size 12”, que equivale a 40 ou 42 no Brasil. Ou seja, ela só pode ser considerada gorda num mundo em que o size 0 é visto como desejável. O size 12, afinal, é a média das mulheres americanas. Ainda assim, só costuma ser vendido em lojas
especializadas em tamanhos grandes. Eu sempre pensei que o capitalismo fosse mais inteligente. Como que um padrão pode ser visto como fora do padrão? Tem alguma lógica nisso? Nenhuma, exceto que moda é sinônimo de elitismo. Logo, não quer ser associada a qualquer uma. E “qualquer uma”, no caso, somos praticamente todas nós.
Que venham mais rebeldias como a de Nancy.


Mas até aí, há uma enormidade de marcas que se negam a vestir cheinhas. A American Apparel é famosa por outros motivos. Primeiro, pelas campanhas que faz — quase sempre meninas muito jovens, que parecem mesmo menores de idade, em poses ahn, sexy, pra não dizer vulgares. Segundo, a marca é notória pela “excentricidade” — sejamos gentis —

Mas vamos falar de coisas boas, como a atitude de Nancy. Pessoalmente, adorei o que ela fez. Sou uma grande fã do humor e da ironia. Outro exemplo fantástico de como o humor pode subverter o lugar comum é o curta “Poses”, de Yolanda Domínguez, que parte de uma ideia simples (fazer com que mulheres em lugares públicos imitem as poses patéticas das tops)

Nancy ajudou a chamar a atenção e mandou uma mensagem sobre o que acha da American Apparel e da sua tentativa de cativar o público GG. Quando perguntada por que ela fez isso com AA, e não com outras campanhas, ela respondeu que foi pela insinuação que uma gordinha só poderia ganhar um contrato pra trabalhar praquela marca se vencesse um concurso especificamente pra gordas (“a mensagem que uma garota submissa e seminua sempre cons

Mas nem tudo são flores. Uma modelo que participou seriamente do concurso da AA detestou que Nancy arruinou sua chance. Pra essa moça, o concurso era uma oportunidade pra sua carreira. Imagino que algumas consumidoras também possam não ter gostado dessa transgressão. Afinal, logo quando uma marca opta por ser mais inclusiva, a gente tira sarro dela? E sempre havia o risco de pessoas não entenderem a brincadeira de Nancy.
Quer dizer, alguém podia levar as fotos a sério? Claro, podia. Mas pra quem conhece um pouco mais do conte

Detalhe: Nancy é uma “size 12”, que equivale a 40 ou 42 no Brasil. Ou seja, ela só pode ser considerada gorda num mundo em que o size 0 é visto como desejável. O size 12, afinal, é a média das mulheres americanas. Ainda assim, só costuma ser vendido em lojas

Que venham mais rebeldias como a de Nancy.
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