Talvez até não seja uma boa amostra, mas parte de um vídeo com candidatas a Miss USA deste ano é estarrecedora. É quando as cinquenta candidatas (justiça seja feita: tem muito
mais diversidade racial nesse concurso que no nosso Miss Brasil, que não contou com uma única negra) respondem à pergunta “Evolução deve ser ensinada nas escolas?” Imagino que aqui no Brasil, se essa pergunta fosse feita a misses, a resposta seria de total incredulidade, algo como “Ué? Isso tá em discussão?”. Mas nos EUA é diferente. Ensinar evolução nas escolas é um dos motivos que mais fazem pais religiosos não deixarem seus filhos estudar fora, preferindo ensiná-los em casa para que não sejam “contaminados” por uma educação secular. Até uns quinze anos atrás, uma indagação dessas seria v
ista com estranheza até nos EUA. Mas hoje, é apenas vista como “uma pergunta difícil”. O que mostra que os religiosos ganharam: a evolução é considerada só uma teoria, com menos provas que o criacionismo (que tá na bíblia). Leia o que algumas misses responderam (minha tradução):
Miss Alabama: “Evolução? Não. Eu não acredito em evolução, não acho que deveria ser lecionada nas escolas, e eu não encorajaria isso”.
Miss Alasca: “É importante lecionar, porque faz parte das nossas crenças, mas pessoalmente, não acredito em evolução, acho que cada um de nós foi criado com um propósito, por deus, e isso dá a minha vida mais sentido”.
Miss Indiana: “Eu não sei. Vamos deixar isso pro governo. Muita gente seria contra se evolução fosse ensinada nas escolas”.
Miss Kentucky: “Informação sobre um assunto nunca é demais, mas eu acho que evolução não deveria ser ensinada nas escolas, porque há tantas opiniões, tantas definições. Como ensinar uma criança sobre a
definição verdadeira de evolução quando tantas culturas têm suas teorias diferentes? Não é um bom assunto, as pessoas não vão chegar a um acordo”.
Miss Lousiana: “Eu acho que sim. Eu acho... Oh deus!”
Miss Massachussetts: “Acho que sim. Eu aprendi a teoria da evolução, mesmo estudando numa escola religiosa”.
Miss Michigan: “Deve ser ensinado nas escolas, porque é bobagem não conhecer os dois lados”.
Miss New York: “Eu pessoalmente acredito que evolução deve ser ensinada nas escolas, e também que religião seja ensinada”.
Miss South Carolina: “Se os pais estiverem de acordo, por que não?”
Miss Utah: “É difícil. De toda forma, alguém vai se ofender”.
A pergunta é tão cabeluda pras candidatas americanas (e não vale dizer que misses são burras; uma miss de um estado provavelmente já é celebridade faz tempo, tem muito treinamento, horas e horas de entrevistas. Não há espaço pra amadoras num Miss
America) que as melhores respostas acabam sendo as mais tolerantes, do tipo “Sim, por que não? É uma das crenças”. Como o ótimo blog Sociological Images explica, este é um bom exemplo da normatização da ideia de que a evolução é “um lado da história, a religião sendo o outro lado, e que nós deveríamos simplesmente escolher entre essas duas histórias baseado no lado que nos faz sentir mais confortável”. Pra mim é um exemplo do perigo que é um estado não-laico, algo que sempre ameaça ganhar força em muitas partes dos EUA.
É também um problema de quem pensa que teoria é uma opinião, algo sem ba
se nenhuma, como se dizer que o Big Bang aconteceu equivalesse a dizer “eu gosto de chocolate”. Lógico que a ciência deve ser questionada, ou senão vira uma outra religião, acima do bem e do mal. Mas há tantas evidências comprovando que dinossauros viveram (bem) antes da gente, e que os bichos se transformam e se adaptam ao longo dos tempos, que é duro levar a sério o pessoal que vê nos Flintstones um documentário.
Querer que “dois lados” expliquem nossas origens me fez pensar em como os saudosistas (pra usar uma palavra gentil) gostariam que o golpe militar de 1964 fosse ensinado no Brasil como “revolução” (
aquela ladainha que, se não fossem os militares que salvaram o país, os comunistas brasileiros ― que eram tantos e tão organizados, como sabemos, e liderados por Jango, aquele comuna-mor ― o Brasil teria virado Cuba), e como golpe de estado que nos mergulhou numa ditadura sanguinária e de direita que durou 21 anos. Bom, talvez o lado da “revolução de 64” prefira que o lado do golpe militar seja esquecido.
Mas tem sempre a história dos “dois lados”. Já cansei de ouvir que feministas seriam chamadas prum determinado debate, desde que “o outro lado” também fosse ouvido. Quem? Os machistas? Conheço bastante gente que até acharia
aceitável que tolerância aos homossexuais fosse ensinada nas escolas, desde que “o outro lado” também fosse. Ué, qual é o outro lado da tolerância? Intolerância? (e a gente realmente quer ensinar isso nas escolas? E precisa?). Homofobia? Ou simplesmente espalhar que a heterossexualidade é a única forma sexual aceitável e legítima? (e espalhar isso, pelo jeito, não é homofobia!). Isso de “dois lados” é uma falácia. Primeiro que existem sempre muito mais que dois lados. Depois que, desculpe dizer, alguns lados simplesmente não merecem ser ouvidos. É como fazer uma mesa redonda sobre o holocausto e chamar pra participar neonazistas que negam o massacre de judeus. É como organizar um debate sobre discr
iminação racial e abrir espaço pra Ku Klux Klan (ou pro pessoal que nega que exista racismo no Brasil, apesar de todas as evidências). Francamente, é como a faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense fazer um debate sobre homoafetividade e chamar o deputado Bolsonaro pra pregar preconceitos e negar direitos humanos. O lado da inclusão, da tolerância, dos direitos para todos, vive sendo deixado de fora. Por que dar voz aos que já fazem tanto barulho numa sociedade preconceituosa como a nossa?
Sobre essa briga entre criacionismo e evolucionismo, lembro de quando eu era coordenadora acadêmica e professora numa escola de idiomas, em Joinville. Na
escola havia vários professores de um grupo cristão que formava uma comunidade fechada (de missionários), adotava o homeschooling (os filhos eram ensinados na comunidade, não na escola), e pregava que os membros só deveriam se casar entre si. Eu me dava incrivelmente bem com eles. De vez em quando eles diziam pra dona da escola que o fato da escola estar indo mal era porque a coordenadora era uma ateia (moizinha), o que impedia que deus abençoasse as instalações, mas na maior parte do tempo a gente só evitava esses assuntos espinhosos de religião, papel da mulher na sociedade, estado laico etc, e convivia numa boa. No entanto, um dia lá estava eu, na sala dos professores, preparando uma atividade que iria usar para uma aula de conversação numa t
urma de inglês avançado. E parte da atividade incluiria as cenas iniciais de 2001, Uma Odisseia no Espaço, aquelas em que os macacos territoriais e agressivos descobrem as armas (ossos de animais mortos) e tornam-se guerreiros muitos mais opressores e agressivos. Acho, não lembro bem, que o exercício inicial era só que os alunos “dublassem” os macacos, algo como “If my monkey could speak” (se meu macaco pudesse falar, o que ele diria?), e depois é que a gente partiria pra um debate sobre território, armas, e inclusive evolução. Mas a questão é que
um professor do grupo cristão viu o que eu estava preparando e perguntou: “Você vai falar sobre evolução numa aula? Sério? Ninguém mais acredita nisso hoje em dia!”. Eu pensei que ele estivesse brincando. Não: ele acreditava literalmente em Adão e Eva (nessa ordem, lógico), e realmente acreditava que Darwin, evolução e tudo o mais fossem conceitos ultrapassados. Isso deve fazer quase quinze anos. As candidatas do Miss América mal tinham nascido. Um visionário, esse rapaz!
P.S.: E o Sociological Images também linka uma paródia hilária de “Matemática deve ser ensinada nas escolas?”
, com respostas como “Matemática é só números. Uma criança de 7 anos deve poder decidir se quer ou não aprender matemática. Ninguém realmente sabe qual é a raiz quadrada de 16. Vivemos na América, não na Rússia, sabe? As crianças devem aprender números, mas também... cores... cheiros... vibrações”.


Miss Alabama: “Evolução? Não. Eu não acredito em evolução, não acho que deveria ser lecionada nas escolas, e eu não encorajaria isso”.

Miss Alasca: “É importante lecionar, porque faz parte das nossas crenças, mas pessoalmente, não acredito em evolução, acho que cada um de nós foi criado com um propósito, por deus, e isso dá a minha vida mais sentido”.
Miss Indiana: “Eu não sei. Vamos deixar isso pro governo. Muita gente seria contra se evolução fosse ensinada nas escolas”.
Miss Kentucky: “Informação sobre um assunto nunca é demais, mas eu acho que evolução não deveria ser ensinada nas escolas, porque há tantas opiniões, tantas definições. Como ensinar uma criança sobre a

Miss Lousiana: “Eu acho que sim. Eu acho... Oh deus!”
Miss Massachussetts: “Acho que sim. Eu aprendi a teoria da evolução, mesmo estudando numa escola religiosa”.
Miss Michigan: “Deve ser ensinado nas escolas, porque é bobagem não conhecer os dois lados”.
Miss New York: “Eu pessoalmente acredito que evolução deve ser ensinada nas escolas, e também que religião seja ensinada”.

Miss South Carolina: “Se os pais estiverem de acordo, por que não?”
Miss Utah: “É difícil. De toda forma, alguém vai se ofender”.
A pergunta é tão cabeluda pras candidatas americanas (e não vale dizer que misses são burras; uma miss de um estado provavelmente já é celebridade faz tempo, tem muito treinamento, horas e horas de entrevistas. Não há espaço pra amadoras num Miss

É também um problema de quem pensa que teoria é uma opinião, algo sem ba

Querer que “dois lados” expliquem nossas origens me fez pensar em como os saudosistas (pra usar uma palavra gentil) gostariam que o golpe militar de 1964 fosse ensinado no Brasil como “revolução” (

Mas tem sempre a história dos “dois lados”. Já cansei de ouvir que feministas seriam chamadas prum determinado debate, desde que “o outro lado” também fosse ouvido. Quem? Os machistas? Conheço bastante gente que até acharia


Sobre essa briga entre criacionismo e evolucionismo, lembro de quando eu era coordenadora acadêmica e professora numa escola de idiomas, em Joinville. Na



P.S.: E o Sociological Images também linka uma paródia hilária de “Matemática deve ser ensinada nas escolas?”

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