Friday, October 28, 2011

COLHENDO LEITURAS

Série "Colhendo Leituras", inaugurada neste instante, traz relatos particulares e não acadêmicos sobre experiências de leituras literárias.


Cem anos de solidão em mim
 Por: Larissa Pereira


Muitos anos depois, diante da tela do computador, eu me lembraria do impacto causado pela leitura da saga dos Iguarán-Buendía. Foram dias e dias em que estive tomada pela aura daquela família, absorta em um mundo de peixes e galos, partos e viagens. Cores, sussurros e cheiros de tão fantásticos eram reais.
Os personagens de Cem anos de solidão se impregnaram de tal forma em minha vida que cheguei a assustar-me. Minha medula óssea teria sido tomada por aquelas minúsculas histórias? A espantosa simplicidade das confusas histórias de Macondo estava encravada em mim, conduzindo minha percepção do mundo. Os Aurelianos e os Josés Arcadios se faziam presente na matéria fluida de meu cotidiano, pressionando-me contra sucessivos muros. Não havia pelotões de fuzilamento tampouco coros de mulheres inférteis mortificadas pela beleza para me vigiar. Não obstante, eles estavam lá. Os diálogos de Cem anos de solidão sabiam de mim. O marrom e o rubro esmaecidos convocavam-me para também eu ser uma Remedios sem cabelo. Uma Amaranta sem piedade. Uma Úrsula sem descanso. Uma Pilar sem pudor. Uma Rebeca com dor.
Meme e Maurício Babilônia. Por: Carybé
Para o meu professor de teoria da literatura, da graduação em Letras, aquelas sensações atendiam pelo nome de realismo fantástico. A virgindade corrompida dos meus olhos aprendia, então, a olhar aquelas cenas em que a fronteira entre o vivido e o imaginado era mais do que tênues. Em vão busquei categorizar, definir, enquadrar. Em vão busquei aplicar fórmulas ao entendimento da diegese de Gabriel García Márquez. Fiz dela, na verdade, um prato perfeito, de culinária saborosa. Da diegese fiz digestão. Tomei para mim a lucidez dos que se amarram em árvores e esperam a visita de ciganos profetas. Teci tantas mortalhas quanto fosse possível. No caminho, só recordava e só vivia.
 Melquíades, o cigano. Por Carybé

Avessa às polarizações, me encontrei na umidade de uma casa impúbere, embora marcada pelo frescor da novidade cíclica dos sentidos que são sentidos. Tal foi a minha marca depois da leitura de Cem anos de solidão. Minha condição de gente, mulher, nordestina, professora, pesquisadora de almas e sonhos, desde sempre transfigurada pela reinvenção diária de infinitas macondos.Muitos anos depois, quando desejei escrever este texto e reli em mim tantas personagens, tive medo, mas também tive beleza. A persistente inquietude literária ainda fazia parte de mim. O mundo me parecia dolorosamente mais vivo depois da literatura.

Úrsula Iguarán e José Arcádio Buendía (núpcias). Por Carybé.

José Arcadio Buendía, enlouquecido, sob o castanheiro. Por: Carybé

Úrsula Iguarán (centenária). Por Carybé







Larissa Pereira é natural da lendária e mítica cidade de Ipiaú-BA. Professora da rede pública de ensino, Mestre em Estudo de Linguagens pela UNEB.

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