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GUEST POST: HEROÍNAS DE AÇÃO, VIDEOGAMES E FEMINISMO
Uma das coisas que mais me fazem ver que pertenço a uma outra geração é que hoje em dia tant@s jovens jogam games, enquanto eu parei no Atari. Sei que muita, muita gente que lê o blog é fã de videogames, e quando vocês comentam sobre o tema, eu me sinto uma analfabeta. E é incrí
vel como boa parte das garotas que se assumem feministas costumam ser gamers. Portanto, fico muito feliz em publicar guest posts de quem entende do assunto (e gostaria de publicar mais).Apresentando Ana Bourg: ela tem 22 anos e acabou de se formar em História pela USP. Em suas palavras: "me considero uma grande nerd, que é esse termo importado para gente que gosta de ficção cientifica, videogames, Role Playing Games e outras coisas desse tipo. Também me considero feminista, socialista e ateia, então devo dizer que gosto muito do que você fala em seu blog". Eu só não falo de games, Ana! 
Oi Lola, obrigada por ter deixado que eu escrevesse sobre heroínas de ação, videogames e feminismo. Acredito que esse tema seja importante, pois jogos eletrônicos estão se tornando mais populares a cada nova geração e, nos últimos anos, deixando de ser um brinquedo exclusivo de garotos. Com isso, acredito que a representação das mulheres como personagens dos jogos -- e em séries e filmes de ação que exercem um papel complementar com os games -- permita discussões sobre tópicos de estudos de gênero, tais como male gaze, papéis comportamentais, empowerment (termo em inglês que significa o aumento da força política, econômica, espiritual, social, etc de um indivíduo ou grupo) e padrões estéticos.Não vou discutir aqui
se jogos são bons ou ruins; acredito que isso seja um julgamento de valor e, pessoalmente, me identifico como "gamer" e "nerd", então o post acabaria por se tornar um texto de uma fã de jogos defendendo seu hábito. Não acho que jogos incentivem comportamento violento mais do que a programação normal dos telejornais.Sobre minha experiência pessoal, comecei a me interessar por jogos em torno dos sete/oito anos de idade quando fui na casa de uma amiga da minha mãe cuja filha (sim, uma garota!) tinha um Super Nintendo. Nessa época, lembro bastante de dois jogos: um sobre sapos lutadores e o Super Mario World, no qual o encanador herói tinha que salvar a princesa que sempre estava em outro castelo. Nessa época, também comecei a assistir desenhos japoneses
e lembro que não gostava muito de alguns dos favoritos do meu irmão -- Cavaleiros do Zodiáco e Street Fighter -- pela quase total ausência de garotas nesses desenhos, ou de sua utilidade apenas como donzelas em perigo. Em outros desenhos que haviam garotas -- Power Rangers, por exemplo -- elas faziam parte de um time, eram minoria e coadjuvantes. Lembro de duas coisas marcantes sobre isso: havia apenas três garotas na minha turma da primeira série e tivemos uma briga porque, como havia só duas power rangers mulheres, uma de nós teria que fazer o papel de vilã.A outra lembrança é de um episódio do desenho Mortal Kombat em que a lutadora Sonya Blade reclamava que ela e a ninja Kitana eram as únicas mulheres da equipe de protagonistas. Dei razão para a queixa da personagem.
Numa das primeira
s vezes que fui a um fliperama, achei demais que em jogos como Metal Slug e Tekken 3 era possível escolher uma personagem mulher, e que elas eram tão boas quanto os personagens homens. Minha primeira "ídola" foi a Nina Willians (Tekken 3): ela era forte e bonita, usando suas pernas longas para desferir golpes mortais. Ainda assim, não era a protagonista do jogo, até porque esses jogos de luta têm enredos muito rasos, mais decorativos e, em geral, o protagonista é o lutador principal, geralmente um judoca asiático. Nesse ponto, acho importante falar que não era um problema que Nina possuísse uma aparência dentro do padrão estético, justamente por ela não ser real. A funçã
o dos jogos é possibilitar que o jogador faça coisas impossíveis na vida real, como voar ou pilotar naves espaciais e manusear armas laser. Da mesma forma que as mulheres eram representadas com pernas muito longas e grandes seios, os lutadores homens tinham uma musculatura que seria impossível de se obter, mesmo com uma dieta diária de anabolizantes. Eles eram realmente representações imaginárias, um "faz-de-conta" em minha percepção quando criança. Acredito ser importante dizer que o físico desses personagens é tão absurdo quanto suas habilidades em artes-marciais (pelo menos até hoje não vi alguém conseguindo soltar um Haduken). Para mim, era um alívio visual ver uma representação de um corpo feminino realizando saltos e golpes, pois eu não precisava me imaginar apenas como uma princesa em perigo.Pouco tempo d
epois, comecei a assistir o seriado Xena: A Princesa Guerreira. Diria que Xena foi minha segunda "ídola". E mais: ela era protagonista de uma história! Ela e sua amiga, Gabrielle (aliás, só fui saber depois de muito tempo que havia um romance implícito entre as duas), eram viajantes e independentes. Xena era capaz de defender-se em um cenário hostil e resolver problemas sozinha, sem precisar chamar um homem para abrir o pote de azeitonas ou matar uma hidra gigante! Ao assumir papéis considerados masculinos, acredito que essa personagem passava uma mensagem de que uma mulher não precisa confinar-se em estereótipos de feminilidade e pode sim ser forte e uma heroína. Nessa mesma época, comecei a notar em capas de caderno e cartazes de loj
as de informática -- embora computadores ainda fossem um sonho de consumo distante para a renda da minha família -- a presença de uma personagem de videogames: morena, roupas militarizadas e empunhando armas. Pensei: "Quem é essa mulher? Ela parece ser fodona!" Logo, mesmo sem nunca ter jogado Tomb Raider (o primeiro game da série foi lançado em 1996. Quando conheci o jogo, em 99, estavam lançando o quarto título), virei fã da Lara Croft. Ela era uma arqueóloga -- quase uma versão feminina do Indiana Jones -- e era a única protagonista da série, ou seja, os garotos teriam que jogar com uma personagem mulher, o inverso do que acontecia na maioria dos jogos! Lembro que gostei muito do filme e de ter torcido pela personagem no cinema. Esse trecho de um artigo acadêmico sobre a personagem resume minha visão sob
re a Lara:"Não há dúvidas que Tomb Raider marcou uma quebra significante do papel das mulheres dentro de jogos de computador populares. Apesar de inúmeros jogos de luta oferecerem a opção de personagems mulheres, o herói é tradicionalmente um homem, com mulheres atuando majoritariamente em papéis coadjuvantes. A esse respeito, Lara foi uma novidade bem vinda para jogadoras experientes. 'Havia um alívio no ato de olhar para a tela e ver a mim mesma como uma mulher. Ainda que estivesse realizando tarefas que eram pouco realistas... Eu sentia, Ei, essa é uma representação de mim, como eu mesma, uma mulher. Em um jogo. Por quanto tempo nós esperamos por isso?'" (Nikki Douglas in Cassell and Jenkins 1999).Sabemos que o male gaze -- olhar masculino -- obriga que as mulheres vejam filmes, interajam com jogos, leiam livros etc sob uma perspectiva "masculina". Isso quer dizer que mesmo ao buscar entretenimento, as pessoas são confinadas à perspectiva de u
m homem, em geral branco e heterossexual. Somos forçad@s a nos identificar com uma determinada representação de uma construção social que não permite que pessoas fora desses atributos tenham um papel ativo, sejam heróis ou sequer mereçam a empatia do público. A presença de um indivíduo de um grupo discriminado -- mulheres, negros, homessexuais, entre outros -- em um papel principal obriga o público a observar o mundo por outro ponto de vista que não o dominante. Acredito que Lara possa ser vista como um ícone da representação feminina em jogos porque ela realiza atividades fora dos papéis de gênero e é uma fuga ao male gaze, ao propor que um jogador homem experimente ver a si mesmo representado como uma mulher. Mais um trecho do artigo de Kennedy sobre a importância desse tipo de representação:"Thelma e
Louise, e outras heroínas de ação tais como a Trinity no filme Matrix, podem ser chamadas do que Mary Russo descreve como 'corpos de impacto': figuras femininas que, através da performance de habilidades extraordinárias, contestam os entendimentos convencionais do corpo feminino. Thelma e Louise, Trinity e Lara tomam o espaço em cenários particularmente masculinizados -- o deserto, paisagens urbanas escuras, cavernas e tumbas -- e, ao fazer isso, oferecem uma imagem poderosa da absoluta alteridade da feminidade dentro desses espaços. O gênero de ação é tipicamente masculino, então esse tipo de caracterização é celebrada por ao menos oferecer alguma compensação pela ubiquidade das representações opressivas de mulhers e a preponderância de corpos masculinos musculosos." Vale acrescentar que, em relação a jogos de videogame, Lara não foi a única personagem mulher a ter o próprio jogo. É possível citar alguns jogos com protagonistas mu
lheres (pode até servir de sugestão para as moças que nunca jogaram e estão interessadas!): Beyond Good And Evil, Portal (esses dois primeiros merecem menção honrosa porque as protagonistas não são sexualizadas. E, no caso do primeiro Portal, é como se todas as personagens fossem mulheres, pois temos a personagem Chell e a inteligência artificial GLAdOS), BloodRayne, Mirror's Edge, Venetica, Parasite Eve, American McGee's Alice, Metroid (Metroid é particularmente interessante porque a protagonista Samus Aran usa uma armadura pesada e muita gente só percebeu que se tratava de uma mulher no fim do jogo. Eu conheci essa personagem pelo jogo Smash Bros 64 em que ela aparece como um dos lutadores disponíveis, e só fui descobrir que ela era uma garota anos depois, em uma conversa com meu namorado). Acho que a lista é tão pequena quanto é pequena a lista de filmes premiados com protagonistas mulheres. Da mesma forma que diretores e roteiristas homens dominam a produçã
o cinematográfica, o setor de desenvolvimento de jogos é quase que totalmente composto por homens. Dessa forma, acredito ser uma pauta feminista a falta de representação de personagens mulheres nas produções artísticas e de entretenimento relacionada à própria necessidade de inclusão de mulheres profissionais nesses setores. Algumas vozes críticas reclamam que os jogos falham por representarem mulheres "masculinizadas". Questiono: por que saber lutar, atirar ou pilotar naves tem que ser algo considerado masculino? Uma menina não pode sonhar ser uma astronauta ou uma policial? Será que é algo tão fantasioso assim -- mulheres exercerem atividades consideradas masculinas e tornarem-se pioneiras, abrindo caminho para outras?Vou responder essa última pergunta finalizando o texto com uma lista de "her
oínas de ação" da vida real:- Joana D'arc (1412–1431) - considerada uma heroína nacional da França, liderou o exército francês em diversas campanhas vitoriosas durante a Guerra dos Cem Anos.- Anne Bonney (1702-1782) e Mary Read (?-1721) - piratas atuantes no Caribe, ficaram conhecidas por serem as únicas mulheres condenadas por pirataria no século XVIII.- Anita Garibaldi (1821–1849) - Líder na Revolução Farroupilha e na unificação italiana. - Hélène Dutrieu (1877–1961) - Campeã de ciclismo, motociclista, piloto de automobilismo, aviadora, piloto de ambulâncias durante as guerras mundiais e diretora de um hospital militar.- Amelia
Mary Earhart (1897-desaparecida em 1937) - Primeira piloto a cruzar o Oceano Atlântico, entre outros feitos de aviação. Segundo sua biografia, após visitar um campo de aviação com o pai em 1920 Amelia "soube que tinha que voar".- Lyudmila Mykhailivna Pavlichenko (1916–1974) - Lutou no front soviético durante a II Guerra Mundial, considerada a atiradora de elite mais bem sucedida, com 309 mortes catalogadas.- Valentina Tereshkova (1937 - ainda viva) - Paraquedista profissional e primeira mulher a viajar no espaço, pilotou a nave Vostok 6.- Keiko Fukuda (1913 - ainda viva) - Primeira mulher judoca a ser promovida ao 6º dan (rank de judô, no qual há uma restrição de gênero) e única mulher a ter recebido o 10º dan.Acho que por enquanto tá bom.
[Notas da Lolinha! Enquanto o incrível guest post da Ana estava sendo editado e aguardando publicação, apareceram dois complementos que preciso mencionar: o vídeo-manifesto das garotas gamers e este ótimo artigo sobre privilégio masculino no mundo geek. Ambos em inglês, sorry.]
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