Saturday, January 28, 2012

GUEST POST: UM OUTRO MUNDO NA ÍNDIA

Conheci Jamie em Fortaleza em 2010, já que ela foi uma das tutoras de uma disciplina que coordenei na Educação a Distância. E de repente a Jamie estava na Índia (é ela na foto ao lado, com um saree emprestado)! Ela publicou este post no seu blog e o mandou pra mim. Eu o achei muito interessante e pedi autorização pra colocá-lo aqui, já que ele trata de um choque de culturas que é sempre polêmico. Tendemos a achar que estamos em outro patamar de "evolução", de "civilização", mas Jamie faz a ponte necessária para nos trazer de volta à realidade: até que ponto somos tão menos machistas no Brasil em comparação com a Índia?

Noite de Sábado. Meia noite. Quatro moças e um rapaz ocidentais voltam para casa apertados em um tuk-tuk. As mulheres usam leggings por debaixo das blusas que, em seus países de origem, são vestidos e cobrem os ombros com lenços, embora não esteja frio. O motorista do tuk-tuk resolve animar os passageiros com música tecno no último volume. Um pouco bêbados e bastante animados pela salsa do clube de onde estão vindo (que fecha à meia-noite, como todas as casas noturnas aqui na Índia), todos se divertem com o repertório antiquado, mas divertido, do motorista. As ruas estão praticamente vazias, mas alguns carros e motos ainda circulam pelas ruas. O tuk-tuk cheio de pessoas ocidentais e com música alta chama a atenção e logo motociclistas acompanham o tuk-tuk rindo e dançando. Uma moto acompanha o grupo por mais tempo. O piloto parece ter o mesmo destino do tuk-tuk lotado. O rapaz do grupo começa a prestar atenção à moto que os acompanha e percebe que o piloto pilota com apenas uma mão -- com a outra, se masturba desejando as mulheres do tuk-tuk. O rapaz informa às demais moças do tuk-tuk o que está acontecendo e pede ao motorista que desligue a música, mas ele não o faz. As moças, indignadas, param de rir e evitam olhar para fora do tuk-tuk. O clima, que era descontraído, fica pesado e todos ficam preocupados, pois o piloto continua a segui-los. O alívio só vem quando o piloto desiste e segue outro caminho.
A cena narrada acima não é de um filme ou de ouvir dizer. Eu era uma das moças no tuk-tuk, o rapaz era [meu noivo] Val e somente após muito refletir, resolvi dividir essa história com os leitores do blog. Não dividi antes (isso aconteceu em outubro) pois não queria que vocês tivessem uma ideia equivocada do que aconteceu, que um fato pontual acabasse estereotipando um país inteiro. Preciso explicar, antes que conclusões precipitadas sejam tiradas, que os intercâmbios para cá parem e que minha mãe me mande voltar para casa no próximo voo.
Uma palavra descreve o motociclista que se masturba, a necessidade doentia das mulheres de se cobrirem com todo o pano possível, os assentos dos ônibus separados por gênero, o quão jovem as mulheres precisam se casar, os casamentos arranjados, a presença quase absoluta de apenas homens nas ruas: machismo. Óbvio, constante, alimentado e passado de geração para geração. Sem sequer conversar com as pessoas é possível entender a supremacia masculina. As mulheres daqui são lindas, maquiadas, repletas de joias, sejam bijuteria ou ouro puro. Podem passar fome, podem nem sonhar com estudos, trabalho, viagem, mas não deixam faltar o óleo de amêndoas que passam no cabelo para que ele cresça e fique enorme e brilhante. É claro que falo da maioria, das pessoas nas ruas, das mulheres e de suas filhas dentro de casa e, infelizmente, das pessoas mais pobres, mas não é assim tão diferente na escola em que trabalho. Mulheres que estudaram, que trabalham, que não são inteiramente dependentes de seus futuros ou atuais maridos, demonstram e cultivam um comportamento machista e sequer percebem. Certas mulheres na escola insistem diariamente no uso do saree, roupa tradicional sobre a qual já falei, como se minhas calças ofendessem, como se eu não fosse uma mulher completa caso não me enrole no pano muitas vezes grosso, quente e desconfortável. Para mim, o saree é lindo por ser diferente, brilhoso, roupa de festa cara e por ser a única possibilidade de mostrar um pouco de pele por aqui sem lidar com os olhares tarados dos homens nas ruas, mas está bem longe de ser tão confortável quanto um vestidinho arejado. Porém, o saree, para as gerações atuais, é veementemente recusado. Ele representa o domínio do homem sobre a mulher, é uma exigência dos pais sobre as filhas, dos maridos sobre as esposas. Depende do pai ou do marido a liberação para que a mulher use Churidars ou roupas ocidentais, pois a mulher honrada, digna e, acima de tudo, submissa às vontades da religião, dos gurus e dos homens de suas sociedade, tem como vestimenta diária o saree. É fomentado nas meninas desde pequenininhas a ideia de que precisam ser bonitas, radiantes, pois somente assim serão mulheres de verdade. Não é para elas, não é para que se sintam bonitas, para que se amem -- é para não ficarem para titia.
Exigência alguma é feita aos homens. Eles andam como querem, com as cores que querem, quase sempre fedendo, bebem quando querem, fumam quando querem, olham descaradamente para qualquer insinuação do corpo feminino. A curiosidade para entender como funciona a mente desses homens é tão grande que puxei conversa com um membro da AIESEC (Association Internationale des Etudiants en Sciences Economiques et Commerciales), amigo das meninas do flat que um dia veio por aqui. Ele tentou me explicar e justificar o comportamento dos homens da rua e eu segurei meu nojo em nome de uma mente aberta a opiniões diferentes de um país diferente, mas às vezes dói na alma. A justificativa dele é, se a mulher mostra, o homem tem o direito de olhar, desejar e até tocar. É dever da mulher guardar o corpo, disfarçar as curvas, pois o homem é incapaz de controlar seus instintos sexuais. Essas palavras vieram da boca de uma pessoa razoável, um universitário, um intercambista que já viajou para outros países. Ele diz que, por ter conhecido outras culturas, entende que nem todos os homens do mundo pensam assim e que tal comportamento não é tão forte em outros países, mas não lhes tira a razão. Tentei, em vão, mostrar meu ponto de vista, tentei explicar que não somos animais no cio, tentei questionar o porquê das mesmas exigências não serem feitas aos homens, mas, embora ele ouvisse atentamente e buscasse, assim como eu, entender que venho de uma outra cultura, foi nos olhos dele que vi que nada do que eu dizia fazia muito sentido e, sem perceber, eu já tinha coberto meus ombros que no início da conversa estavam expostos.
Não há um dia sequer em que não me perguntem a razão pela qual ainda não me casei com o Val, quando será a festa, quantos filhos terei. Se elas sonhassem que já fui casada, não teria paz um segundo. Atualmente, estou trabalhando no laboratório de Língua Inglesa. Assumi esse cargo pois a professora anteriormente responsável pela sala precisou demitir-se, e por três dias ela me treinou para o trabalho que eu precisava desenvolver. Ela disse para todos que o motivo pelo qual estava saindo da escola era por seu marido ter conseguido um emprego nos Estados Unidos e que ela precisava ir com ele. A real razão eu só descobri depois quando, angustiada, ela me confessou que, na verdade, estava saindo de um casamento arranjado de 7 anos no qual seu marido a batia, a tratava mal, e estava influenciando seriamente o comportamento de seu filho de 5 anos, que já destratava a mãe como o pai o faz. Ela somente me contou pelo que estava passando por eu vir do outro lado do mundo e depois que comentei com ela que já havia sido casada. Eu sou a primeira pessoa separada que ela conheceu na vida e foi difícil para ela entender que meu casamento não acabou por nenhum dos motivos que ela listou. A família dela não a entende e não aceita a separação, o marido recusa-se a dar o divórcio e apenas um de seus amigos a apoia. O processo de separação por aqui é demorado e doloroso e foi apenas voltando para a casa dos pais, contra a vontade deles, que ela conseguiu ontem separar-se, pelo menos fisicamente, do marido que a subjulgava.
Machismo. Essa palavra, para a maioria das pessoas no Brasil, parece exagero de feministas. Nós, mulheres, alcançamos muito nas últimas décadas, ocupamos cargos de chefia (temos uma mulher no comando no país), temos voz na sociedade, e isso nos dá a impressão de que há igualdade de gênero, mas na verdade, se a gente pensar bem, não há. Ainda ganhamos menos, ainda somos tratadas (e muitas vezes nos tratamos) como produtos eróticos, dançamos na boquinha da garrafa e somos "boladonas". Assim como as indianas, exageramos nos cuidados estéticos, nos desconfortáveis saltos, no gasto absurdo com cosméticos, maquiagem, silicione, academia. Não temos a exigência do casamento tão explícita, mas a exigência existe e é com indignação que muitos reagem diante da afirmação “não quero ter filhos”. E dessa forma, assim como muita gente ainda acredita que racismo no Brasil não existe, seguimos acreditando que está tudo bem, obrigada. Diante de uma sociedade com o machismo tão descarado, reflito sobre o nosso machismo mascarado. Será que estamos realmente tão longe da Índia, tão modernos, tão "evoluídos"? Um homem se masturbando diante de mulheres que estavam apenas se divertindo, mas que para ele estavam passando dos limites e dando “cabimento” para que suas vontades sexuais fossem expostas, é algo que certamente não veríamos no Brasil, mas vi o mesmo espanto nos olhos das estrangeiras que moram comigo quando mostrei os vídeos do É o tchan e das Tequileiras. É degradante, mas a gente, no Brasil, nem nota mais, assim como não é absurdo para ninguém por aqui uma mulher coberta com um grosso pano preto em pleno sol do meio-dia, apenas com os olhos à mostra.

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