Monday, January 16, 2012

GUEST POST: EM VÁRIOS PROCEDIMENTOS, SÓ O SUS SALVA

Vivi em Joinville durante quinze anos sem ter plano de saúde e, nos (poucos) momentos em que eu e o maridão precisamos de atendimento, fomos muito bem atendidos (o maridão, inclusive, teve retirado um tumor maligno -- câncer de pele mesmo -- das costas, pelo SUS). Chegando a Fortaleza, todos me disseram que eu não poderia depender de saúde pública, que seria temerária. Contratamos um plano de saúde. E não estamos felizes com ele. Ele é caro pacas e não para de aumentar. Tem um outro lado. Pra mim, saúde é um direito. Ninguém deveria ter que pagar por direitos. E, se eu acho que saúde deve ser pública, é contraditório que eu pague um plano particular.
Sem falar que a saúde particular usa muitos recursos do SUS, como apontou a Carolina num ótimo guest post de dezembro. Agora quero publicar, com muito orgulho, este texto da Bruna, de Belo Horizonte, estudante no décimo período de Medicina na UFMG. Diferente da maioria dos seus colegas, ela não vem de família rica, e, talvez por isso, quer ser uma das exceções e se dedicar integralmente à saúde pública. Diz ela: "Quero fazer residência em saúde da família e trabalhar sempre em Centros de Saúde, na Atenção Primária: sem consultório, sem ter que me submeter aos convênios e nem ser constrangida a cobrar por um atendimento particular. Além disso, mobilizo-me muito pela causa ambientalista e sou vegetariana. Meu hobby é defender meus ideais". O meu também, Bruna! Veja se ela te convence a lutar pelos seus.

A “campanha” nas redes sociais que pedia ao ex-presidente Lula que tratasse seu câncer no SUS causou um grande alvoroço virtual. E com ele, alguma dose de discussão. Da minha parte, muitos devaneios. Primeiro, devo informar que, de início, aderi à “campanha” sim, mas com uma visão de quem está do “outro lado da mesa” no SUS. Com o seguinte pensamento: serviços públicos são feitos para cidadãos de uma nação, pelos cidadãos dessa mesma nação –- ao menos, deveria assim ser. Logo, nossos políticos, como oriundos do seio do nosso próprio povo, se fossem de fato usuários dos serviços de que são incumbidos de gerir, defenderiam melhorias nesses mesmo serviços como interessados diretos nos benefícios proporcionados, em vez de visar ganhos secundários. Portanto, se não existisse Sírio Libanês e cia, os hospitais públicos seriam bem melhores, com a capacidade de acomodar também “gente do escopo” dos nossos “ilustres” governantes (só pra citar como exemplo, a ex-senadora Marina Silva já foi usuária do Sistema Único de Saúde, quando ela foi vítima de Malária. E sim, ela sobreviveu a ambos, à doença e ao tenebroso SUS).
Então, começou a contra-campanha. Gente que achava uma desumanidade tremenda querer desejar para alguém um tratamento na rede pública, que o certo era torcer pela sua melhora. Aí que caiu minha ficha, que muitas pessoas que aderiram à “campanha” tinham era exatamente a tal intenção de que o político supracitado recebesse um tratamento de má qualidade.
Fiquei indignadíssima. Os hospitais-escola de que faço uso são excelentes. Os atendimentos que os pacientes recebem estão anos-luz à frente de muitas consultas por convênio. Considerei como ofensa pessoal frases do tipo “Sou contra quem faz piadas com câncer e quero que o ex-presidente fique bem”. Pois nessa frase está implícito que hospitais públicos jamais trariam bem estar a pacientes lá internados, e isso está na contramão de tudo que tenho visto. E também dos atendimentos que tenho prestado. Como se minha competência, e a de diversos colegas, tivesse sido insultada.
Antes de ser aluna de medicina, eu também tinha a ideia do SUS como esse caos tremendo -– eu, que sempre fora usuária de planos de saúde. Mas é bem diferente. Há muitos avanços inimagináveis. Claro que a maioria deles estão no sudeste, nas regiões e cidades mais ricas. Mas é preciso desmitificar o sistema público.
Pra início de conversa, um breve histórico: o SUS surgiu em 1988, com a nova Constituição. Antes, as políticas de saúde pública eram esparsas, não unificadas e, principalmente, não universais. Sim, porque o SUS foi construído sob o alicerce de três princípios básicos: universalidade, equidade e integralidade. Até o início do século passado, pobre era tratado nas santas casas, por caridade. Com Getúlio Vargas, começou um embriãozinho da saúde pública, mas só tinha acesso quem tivesse carteira assinada, e os camponeses eram excluídos também. Cada trabalhador -– dentre os contemplados -- contribuía à IAP (Instituto de Aposentadoria e Pensões) de sua categoria.
No regime militar, as IAPs foram unificadas num sistema maior, o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Ainda, a assistência era restrita ao contribuinte dos setores secundário e terciário -– quando no mercado formal: ou seja, uma minoria. E o sistema unificava saúde e previdência. Como o número de aposentados ainda era muito pequeno, o dinheiro arrecadado foi muito mal investido.
Grande parte foi drenada pela construção de hospitais... privados! (supostamente, em troca de alguns atendimentos via rede pública). E graças a isso, o modelo de assistência médica no Brasil fora desde então calcado na assistência hospitalar e especializada (o que é ruim, pois não se baseia na prevenção, é mais caro, e mais sofrível para os usuários, que entram no sistema a partir de uma doença). Só recentemente tem se investido em um novo modelo baseado na assistência primária (focado na prevenção, muito mais custo-efetivo e mais agradável para o usuário, já que evita o adoecimento; sem, contudo, prescindir da atenção especializada, quando necessária).
Foi isso. Foi assim que começou o embrião do rombo da previdência: dinheiro público empregado em obras particulares.
E então, o que acontece hoje?
O SUS é financiado com recursos destinados à Seguridade Social. Assim como a Previdência. Mas nossa Constituição não prevê nenhum tipo de alíquota mínima, do PIB ou do que for, para o SUS. Então, adivinha só, a Previdência drena a maior parte dos recursos, sobrando muito pouco para a nossa combalida saúde pública.
Lógico que a corrupção também desvia muito, e não só da saúde. Mas dentro do que seria formalmente disponibilizado para a saúde, muita coisa acaba tendo que ser usada para tapar os buracos da Previdência.
Porém, há muitos espetáculos que o sistema promove, ainda mais tendo-se em vista a demanda de recursos que não é adequadamente suprida.
Você sabia, por exemplo, que nenhum plano de saúde cobre qualquer tipo de transplante? E que, quanto a atendimento de urgência, em caso de politraumatizados, os serviços de referência são da rede pública? (cito o Hospital João XXIII, de Belo Horizonte, como referência no estado de Minas). Ainda, sabia que doenças raras que exigem medicamentos de custo muito elevado têm seu tratamento custeado pelo SUS? E, caso não se lembre, ainda, o Brasil é referência mundial em tratamento de HIV/AIDS; isso eu afirmo com experiência pessoal de quem vem acompanhando pacientes soropositivos. São gente como a gente, de todos os matizes, todos os biótipos. Contraíram o vírus, mas uma vez diagnosticados, são acompanhados e levam uma vida tão saudável como a de quem é soronegativo. Com todo o suporte de equipes multidisciplinares de saúde e amplo acesso a anti-retrovirais.
Mais um exemplo: se você, acidentalmente, ingerisse algum veneno, ácido, produto de limpeza; se tomasse remédios em excesso e, em sequência, desistisse do suicídio, sabe a quem iria recorrer? A um serviço de toxicologia. Novamente, o Hospital João XXIII é uma das referências nacionais. Quem está em Belo Horizonte é atendido no plantão; quem está no interior de Minas, ou mesmo em outros estados que não dispõem desse serviço, será atendido por um médico local que agirá sob a orientação de um dos serviços de toxicologia. Não, hospitais particulares não dão conta do recado.
Fechando a conta: nós, o grosso da classe média pra cima, acompanhamos nossa saúde através do sistema particular. E deduzimos os gastos com planos no cálculo do imposto de renda, de maneira que esses gastos significam, por outro lado, menos arrecadação para financiar a saúde pública. Porém, quando precisamos das operações, dos procedimentos, dos remédios mais caros, nada de convênios: só o SUS salva.
Para se ter uma ideia, nos EUA não existe saúde pública, e os convênios dominam o mercado, sempre com uma ótima margem de lucro, e péssima assistência, claro. (Insisto, para quem ainda não assistiu, que assista ao documentário Sicko – SOS Saúde, do americano Michael Moore). No Brasil, a ascensão econômica das classes C e D tem contribuído para aumentar o número de usuários dos planos particulares. E tenho muito medo, baseado em dados concretos, que isso leve o SUS a minguar, e que nossa situação chegue a ficar calamitosa como na terra do Tio Sam.
Por fim, gostaria de concluir minhas ideias não só como estudante de medicina, mas, como já disse, entusiasta e futura profissional do SUS, e, principalmente como cidadã brasileira. Será que vale a pena simplesmente nos acomodarmos em nossos convênios e consultas particulares? Gostaria que começássemos a buscar -– ao menos, experimentar para conhecer -– atendimento pela nossa saúde pública, para que, sendo parte dela, pudéssemos sustentar essa bandeira. Deixar de lado essa ideia de deixar para quem não pode e vestir a camisa. O sistema propõe-se universal, não caritativo, não para “quem não pode”. Saúde não é bem de mercado, item vendável a quem puder pagar melhor. É um direito inalienável a qualquer cidadão.

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