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GUEST POST: INVADINDO UM ESPAÇO QUE NÃO ME PERTENCE
Finalmente tive a chance de conhecer a Déborah Sá quando, em agosto, estive na USP da Zona Leste para uma mesa redonda. Ela, muito doce e tímida, veio falar co
migo. Como ativista vegana que é, ainda me presenteou com um delicioso bombom vegano e tofu. O que ela me disse, sobre muitas vezes se sentir excluída em ambientes universitários por ter apenas o ensino médio, me pareceu tão instigante que eu pedi a ela que escrevesse um guest post. E ei-lo aqui. Eu considero este um ponto primordial: como fazer com que a universidade seja vista como um espaço de todos?Ter um diploma
universitário era um fator indiferente na minha família. A maioria dos adultos ao meu redor não possuía sequer o Ensino Médio, incluindo meus pais. Minha mãe sempre valorizou os estudos como uma possibilidade de crescimento pessoal, meu pai por sua vez tratava com desdém essa busca desenfreada de fazer supletivo e almejar o ensino superior. Quando decidi interromper meus estudos na oitava série minha mãe ficou desapontada e não compreendeu minha decisão. Eu passava por um momento de reestruturação interior; sofria bullying em toda parte, os discursos da igreja me faziam sentir uma pecadora e ainda era atormentada pelas lembranças do abu
so sexual que meu avô cometera. Interromper ao menos uma coisa que me fazia infeliz era uma tentativa de tomar as rédeas da situação, tanto é que assim que saí da escola comecei um regime insano beirando a anemia. Foi um começo errôneo e desesperado, mas de alguma forma, uma maneira de reconstruir minha vida.Esse tempo de afastamento do ambiente escolar me fez muito bem. Seguindo a sugestão de um cunhado retornei a escrita (uma das poucas coisas que me davam prazer). Foi o ponto de partida para auto-análise, com a qual gradativamente permiti me libertar de temores. Um dos maiores seria encarar as consequências de falar abertamente meus questionamentos. Por razões incógnitas as pessoas (mesmo desconhecidas) me agrediam com tapas, beliscões, assédios e xingamentos, na rua, em casa, na escola, na igr
eja, pouco importava o local; eu era refém da passividade. E as pessoas se aproveitavam da minha inércia. Quão piores seriam as agressões se eu revidasse? Eu me resguardei sem mostrar quem era “de verdade”, e foi só ao verbalizar por extenso minhas inseguranças que elas se tornaram compreensíveis.Anos depois fiz supletivo no período noturno. O cenário parecia igual, mas dessa vez me sentia mais corajosa e segura. Se @ professor@ fazia uma pergunta que eu sabia a resposta a postura era esperar alguém falar para depois me posicionar. O que ocorria quase sempre era o silêncio da classe e eu, respondendo isolada e incomodando alguns, em especial um aluno do fundão (sempre eles), me chamava de “metida que quer saber mais que @ pr
ofessor@”. Notando minha indiferença, ele tentou outra tática: a cada vez que eu abria a boca na sala de aula ele puxava uma salva de palmas. Foi em vão. Eu esperava terminar, fazia uma reverência e me pronunciava. Esse mesmo aluno certa vez expôs ao ridículo outro que teve um aneurisma e tomava remédios psiquiátricos. Entrei na sala e o moço estava encolhido no canto envergonhado dos risos coletivos. Foi uma das primeiras vezes que passei um sermão público defendendo o rapaz caluniado e tornando evidente a ignorância e prepotência de julgar quem consulta um psiquiatra. A ideia de conversar entre acadêmicos, porém, me deixava receosa. Eu poderia ser considerada “inteligente” para os parâmetros de escola pública, deixar meus pais e algum@s professor@s orgulhos@s (com exceção dos de matemática), mas percebia que ao ser exposta a universitários “de v
erdade”, muito provavelmente meus argumentos valeriam coisa alguma. De todo modo, quais seriam as chances disso ocorrer? Praticamente nulas. Correto? Errado.Quando conheci meu atual namorado, Yuri (faz cinco anos), éramos uma combinação de antagonismos: Ele, negro de classe média, estudante de colégios particulares; eu, branca, também de classe média, sem carro na garagem e concluindo o ensino médio numa escola pública. Seus pais são um fisioterapeuta e uma professora de Física. Minha mãe cursa atualmente (aos 45 anos) a primeira faculdade (Serviço Social); meu pai fez até a terceira série do Ensino Fundamental e não tem planos de concluir. Coincidentemente nossas avós maternas vieram de Pernambuco para São Paulo, só que enquanto meus pais me levavam desde pequena para igreja, meu companheiro era levado para passeatas e protestos.
Quando iniciamos um relacionamento é comum existir insegurança da expectativa que noss@s companheir@s fazem sobre nós, inclusive intelectualmente. Os alunos que eram de escolas particulares no tempo do meu ensino médio diziam que éramos “favelados que usavam saco de batatas" (se referindo ao uniforme), e os garotos do colégio cobiçavam as garotas das escolas privadas, quase sempre mais brancas e “femininas”. Felizmente minhas expectativas não se concretizaram e, além do meu namorado, seus amigos e familiares me acolheram maravilhosamente bem.Contudo, não havia a certeza se valia a tentativa de ingressar em uma faculdade pública ou federal. Sobretudo me desanimava a falta de perspectiva em estudar algo além da “História dos Vencedor
es”; ouvir e reproduzir feitos de homens brancos e líderes religiosos não me entusiasmava. Mudei ao ver uma palestra da Margareth Rago na União de Mulheres de São Paulo. De modo extremamente pessoal contei brevemente o quanto a escrita mudou minha vida. Ela mostrou-se interessada e me senti lisonjeada -- ela fora capaz de me ouvir sem me rebaixar pela minha formação (ou suas lacunas). Compreendi ser possível ir além do que interpretamos como “História”.Meu companheiro também cursava História e foi através dele que pela primeira vez assisti a um conteúdo universitário na Unifesp de Guarulhos, no Bairro dos Pimentas. Professores e colegas me trataram com cortesia, e achei simpáticos os cães que transitavam no
Campus. O clima foi amistoso, diferente da série de palestras que me dispus a frequentar com o passar do tempo, me familiarizando com o meio universitário, seus jargões e arrogâncias.Um dos comportamentos mais curiosos é o espanto quando eu digo que não possuo nenhuma formação, já que em algumas palestras as pessoas se apresentam com o nome e em seguida com a graduação ou coletivo que fazem parte, pressupondo que todos ali são “entendidos da área”, usando o pronome “Nós”: "Nós nessa sala, bem sabemos que Robespierre...” Outra constatação peculiar são alguns integrantes do Movimento Estudantil sentirem-se legítimos representantes do proletariado organizando protestos em uma terça-feira no meio da tarde em local de difícil a
cesso (quem não comparece é taxado de pelego). Todavia, uma das cenas mais constrangedoras que presenciei foi um aluno reconhecido como de “esquerda” escrever na bochecha de uma recém formada o nome de uma universidade paga, em tom vexatório. Ele deveria antes de qualquer consideração reconhecer seus privilégios diante da estrutura elitista e excludente na qual é baseada a educação nesse país. Se não há mais alunos negros e/ou de escolas públicas nos ambientes universitários não é por má vontade nossa -- nos é extirpado o acesso à teoria exigida nos concorridos vestibulares.Não lhe cabe outorgar quem é digno de exprimir idéias, não inter
essa o tamanho do seu Lattes. Se o recorte de classe, gênero e raça perpassa os ambientes de interação social e construção do senso crítico, a redoma que envolve a bolha universitária se torna ainda mais reluzente. Sem tal lustre os deixados atrás dos muros são opacos não-sujeitos, esforçando-se para reacender fagulhas dispersas.Se em outro momento a hostilidade e a sensação de não pertencer entre universitários me causava retração, hoje vejo como uma retomada do que me é de direito.
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