Como eu já disse diversas vezes -– nunca para me vangloriar; apenas porque é minha experiência de vida -–, eu me considero feminista desde os oito anos. Uma das minhas influências, além das ideias dos meus pais, que acreditavam plenamente
que mulheres e homens deveriam ter direitos iguais, foi a revista americana Ms. (pronuncia-se miz), que entrava em casa em meados dos anos 70. Meu inglês estava longe de ser fluente na ocasião, mas eu compreendia a mensagem geral e adorava as fotos e desenhos. Minha seção favorita? Uma que denunciava o machismo na mídia.
A Ms. foi a primeira revista feminista já feita, e completa agora quarenta anos de vida. Ela segue firme até hoje, mas sem a mesma força, pois atualmente várias outras publicações (e não apenas as voltadas para o público feminino) e sites e blogs protestam
contra a discriminação, reivindicam direitos, e promovem o empoderamento (palavrinha horrível, mal traduzida do inglês empowerment, mas é a que temos) das mulheres.
E a Ms. foi também uma pioneira em ter uma redação inteiramente feminina, a primeira revista criada, mantida, e operada por mulheres, segundo a reportagem da New York Magazine. Nos anos que antecederam a Ms., as mulheres não podiam ter um cartão de crédito ou abrir uma conta bancária sem a autorização de um homem. Não havia delegacias das mulheres, nem abrigos para fugir de maridos violentos. Aliás, não havia nem termos como assédio sexual e violência doméstica. E se você não tem nem v
ocábulo pro problema, não vai poder referir-se a ele -- a um problema que obviamente já existia.
Em 1970, cerca de cem mulheres invadiram o escritório de uma tradicional revista feminina, a Ladies' Home Journal, e ocuparam o lugar (dirigido por homens) por onze dias. Naquele tempo, simplesmente não havia espaço para outros “assuntos femininos” que não fossem moda, culinária, maquiagem, cabelo, ser mãe -– basicamente o que várias revistas pra mulheres e suplementos femininos de jornais continuam mostrando ainda hoje. Es
sa ocupação simbólica foi fundamental para mostrar a força da mobilização das feministas.
O principal nome por trás da Ms. sempre foi o de Gloria Steinem, um dos ícones do feminismo. Em 1963, contrariando o preconceito infundado que feministas são bigodudas peludas, Steinem era suficientemente linda (dentro do padrão) para se disfarçar de coelhinha da Playboy, invadir a mansão de Hugh Hefner, e escrever sobre o que passou (leia aqui, em inglês). Era um tipo de feminismo de guerrilha que alguns viam com desdém. Gloria certamente sofreu preconceito por ser bonita. Por outro lado, ela também recebia mais destaque da mídia que outras feministas por causa de sua aparência.
Os títulos suge
ridos para a revista foram “Toda Mulher”, “Irmãs”, “Fêmea”, “Lugar de Mulher”, “O Primeiro Sexo”, “A Maioria”, e “Lilith” (a primeira mulher de Adão; ao contrário de Eva, ela não veio da costela do macho, e recusou-se a ser subserviente a ele). Escolheram Ms. Ainda hoje, quem opta por essa forma de tratamento praticamente se declara feminista. Nos EUA, em 2008, lembro de ter preenchido formulários que perguntavam como eu queria ser chamada, Miss, Mrs, ou Ms. Pra quem não sabe, as mulheres que adotam Ms. não têm seu status matrimonial definido de cara –- ninguém precisa saber se você é Miss (senhorita, solteira), ou Mrs (senhora, casada). Afinal, não existem formas diferenciadas pra se dizer senhor, Mr. Por que importa saber se uma mulher é solteira ou casada?
Quando a revista foi lançada no início dos anos 70, um jornalista vaticinou: “
Dou-lhes seis meses até que elas fiquem sem assunto”. Mas a Ms. foi um sucesso de vendas. O primeiro número, que trazia 53 nomes de mulheres que declararam ter feito aborto, se esgotou já na costa leste, antes de chegar a Califórnia. A maior dificuldade, porém, era conseguir anunciantes num mundo em que os chefes das empresas eram homens (e continuam sendo -– no Brasil, apenas 3% das quinhentas maiores empresas são chefiadas por mulheres). Por exemplo, as responsáveis pela Ms. iam a Detroit falar com os fabricantes de automóveis, e eles respondiam
, “Ah, mulher não compra carro”. Elas mostravam pesquisas indicando que sim, compravam, mas eles ainda assim se recusavam a anunciar.
Outra dificuldade (muito menor) era que as feministas mais radicais não gostaram da Ms. Elas eram contra a maternidade e o casamento, e prefeririam uma revista com essa cara. Não era isso que Steinem queria. Desnecessário dizer que, comparada a outras publicações, não havia nada mais radical que a Ms. Mas uma feminista radical dizia que a revista promovia uma ideia sentimental de “irmandade” que escondia os conflitos políticos entre as mulheres, e que a Ms. não recrutava acadêmicas ou ativistas. A revista afirmava que as convidava, mas as radicais não aceitavam. O fato é que havia gente que considerava a revista uma
inimiga do movimento feminista! (Algumas feministas liberais, ou seja, não-radicais, como Betty Friedan, autora-ícone da Mística Feminina, também odiavam Steinem).
Uma coisa é certa como água: toda vez que houver alguma feminista que tenha divulgação e uma certa popularidade, haverá feministas desqualificando aquela feminista e dizendo que ela representa um desserviço ao feminismo. Não falha nunca.
A Ms. também
foi criticada por falar muito pouco de lesbianismo (apesar que já no primeiro número havia um artigo perguntando “Mulheres podem amar outras mulheres?”). Assim como outras feministas que queriam distanciar-se das lésbicas (preocupando-se que os detratores acham que feminista e lésbica são sinônimos), a Ms. repetiu o erro. Mas toda vez que perguntavam pra Steinem se ela era lésbica, ela respondia “Ainda não”. É uma excelente resposta. Vou adotar! Só que, pensando bem
, poucos perguntam pra feministas se elas são lésbicas. Só dizem que são, e acabou.
Goste-se ou não da Ms. (e eu gostava, e muito!), não se pode negar: ela foi marcante.
P.S.: Essa capa com a Bette Midler que coloquei mais em cima deve ser a que mais me lembro de toda a minha vida. Mas a Ms. teve inúmeras capas que ficaram na memória. Esta mais recente comemorando a eleição do Obama é uma delas.

A Ms. foi a primeira revista feminista já feita, e completa agora quarenta anos de vida. Ela segue firme até hoje, mas sem a mesma força, pois atualmente várias outras publicações (e não apenas as voltadas para o público feminino) e sites e blogs protestam

E a Ms. foi também uma pioneira em ter uma redação inteiramente feminina, a primeira revista criada, mantida, e operada por mulheres, segundo a reportagem da New York Magazine. Nos anos que antecederam a Ms., as mulheres não podiam ter um cartão de crédito ou abrir uma conta bancária sem a autorização de um homem. Não havia delegacias das mulheres, nem abrigos para fugir de maridos violentos. Aliás, não havia nem termos como assédio sexual e violência doméstica. E se você não tem nem v

Em 1970, cerca de cem mulheres invadiram o escritório de uma tradicional revista feminina, a Ladies' Home Journal, e ocuparam o lugar (dirigido por homens) por onze dias. Naquele tempo, simplesmente não havia espaço para outros “assuntos femininos” que não fossem moda, culinária, maquiagem, cabelo, ser mãe -– basicamente o que várias revistas pra mulheres e suplementos femininos de jornais continuam mostrando ainda hoje. Es

O principal nome por trás da Ms. sempre foi o de Gloria Steinem, um dos ícones do feminismo. Em 1963, contrariando o preconceito infundado que feministas são bigodudas peludas, Steinem era suficientemente linda (dentro do padrão) para se disfarçar de coelhinha da Playboy, invadir a mansão de Hugh Hefner, e escrever sobre o que passou (leia aqui, em inglês). Era um tipo de feminismo de guerrilha que alguns viam com desdém. Gloria certamente sofreu preconceito por ser bonita. Por outro lado, ela também recebia mais destaque da mídia que outras feministas por causa de sua aparência.
Os títulos suge

Quando a revista foi lançada no início dos anos 70, um jornalista vaticinou: “


Outra dificuldade (muito menor) era que as feministas mais radicais não gostaram da Ms. Elas eram contra a maternidade e o casamento, e prefeririam uma revista com essa cara. Não era isso que Steinem queria. Desnecessário dizer que, comparada a outras publicações, não havia nada mais radical que a Ms. Mas uma feminista radical dizia que a revista promovia uma ideia sentimental de “irmandade” que escondia os conflitos políticos entre as mulheres, e que a Ms. não recrutava acadêmicas ou ativistas. A revista afirmava que as convidava, mas as radicais não aceitavam. O fato é que havia gente que considerava a revista uma

Uma coisa é certa como água: toda vez que houver alguma feminista que tenha divulgação e uma certa popularidade, haverá feministas desqualificando aquela feminista e dizendo que ela representa um desserviço ao feminismo. Não falha nunca.
A Ms. também


Goste-se ou não da Ms. (e eu gostava, e muito!), não se pode negar: ela foi marcante.
P.S.: Essa capa com a Bette Midler que coloquei mais em cima deve ser a que mais me lembro de toda a minha vida. Mas a Ms. teve inúmeras capas que ficaram na memória. Esta mais recente comemorando a eleição do Obama é uma delas.
No comments:
Post a Comment